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"Patroa e Patrão": casal acusado de comandar tráfico pelos portos brasileiros
Reportagem Seriada

"Patroa e Patrão": casal acusado de comandar tráfico pelos portos brasileiros

Foragidos, os dois chefes do que seria um dos principais esquemas do tráfico marítimo no Brasil têm longo histórico no crime. Naturais do Mato Grosso do Sul, seus nomes aparecem em várias ações vultosas, incluindo remessas pelos portos do Ceará
Episódio 6

"Patroa e Patrão": casal acusado de comandar tráfico pelos portos brasileiros

Foragidos, os dois chefes do que seria um dos principais esquemas do tráfico marítimo no Brasil têm longo histórico no crime. Naturais do Mato Grosso do Sul, seus nomes aparecem em várias ações vultosas, incluindo remessas pelos portos do Ceará
Episódio 6
Tipo Notícia Por

 

 

Karine de Oliveira Campos, a "Patroa" (ou "Pérola", "Minnie", "Esmeralda" ou "Rubi"), 46 anos, e Marcelo Mendes Ferreira, o “Patrão” (ou “Roku”), 43. Nada acontece sem que os dois saibam na organização criminosa investigada pelo tráfico de cocaína nos portos cearenses. É o que destacam os autos do processo que tramita na Justiça Federal.

O último rastreamento apontou que estariam em Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, escondidos em outras identidades. Há imagens na internet com simulações de possíveis disfarces, novas aparências. Os dois seriam naturais de Mato Grosso do Sul, fronteira com o país andino. Apesar de notados em quebras de sigilo telefônico e telemático de outros personagens da mesma história, não foram alcançados.

De lá ou de onde estejam, ela e ele mandam, desmandam, negociam encomendas, recompensam os recrutados ao esquema, lucram com toda a operação, segundo consta no processo. Cobram obediência à hierarquia. Há ligações e ordens registradas em relatórios policiais de que gente do mesmo grupo ainda se movimentava no primeiro semestre de 2024.

Ele e ela são apontados como os principais nomes da rede que se espraia por pelo menos nove estados. Coincidência ou não, sempre Karine citada antes de Marcelo, mais menções a ela do que a ele. No início de suas trajetórias, ela teria os contatos de quem produz a cocaína, ele saberia o nome de quem distribui a droga. 

Marcelo "Patrão" e Karine "Patroa" têm paradeiro desconhecido, possivelmente escondidos na Bolívia ou Paraguai, de onde chefiam uma rede de tráfico internacional de cocaína pelos portos(Foto: REPRODUÇÃO WEB)
Foto: REPRODUÇÃO WEB Marcelo "Patrão" e Karine "Patroa" têm paradeiro desconhecido, possivelmente escondidos na Bolívia ou Paraguai, de onde chefiam uma rede de tráfico internacional de cocaína pelos portos

A investigação desencadeada a partir da operação Néctar, deflagrada em 2019 no Ceará, mostra que o casal teria poder, fama e expertise muito anteriores das águas e rotas do Ceará. Ela e ele já eram citados em pelo menos outras seis operações policiais, sempre pelo mesmo crime.

Para andamento mais célere ao caso da operação Néctar, recentemente a Justiça Federal desmembrou as acusações do processo contra o casal. Eles são considerados foragidos desde 2021. O POVO não conseguiu contato dos advogados de Karine e Marcelo que aparecem no processo.

Em 12 de maio último, a Justiça Federal enviou intimações a Marcelo "Patrão" em dois endereços informados pelo MPF. Os imóveis ficam nas cidades baianas de Alagoinhas e Dias Dávila. São cartas precatórias para que preste depoimento sobre as acusações, mas não foram atendidas. Ele já havia sido notificado para o mesmo fim em outros dois endereços em Campo Grande (MS), igualmente devolvidas.

 

Organograma do crime

 

Patroa e Patrão são citados em inquéritos há mais de uma década e meia, sobre crimes relacionados ao tráfico e associação para o tráfico internacional de entorpecentes. A mais antiga dessas operações data de janeiro de 2009. Foi quando a Polícia Civil da Bahia investigou Karine e Marcelo como chefes de uma quadrilha de traficantes de drogas, conhecida como "Os Maias”, atuante em cidades do interior baiano.

O apelido deu nome à operação da Polícia baiana. Os dois chegaram a ser presos em Aracaju, então com "apenas" 5 kg de cocaína. A droga pura era trazida da Bolívia. Por isso o caso migrou para a esfera federal. À época, Karine "Patroa" ainda era conhecida como "Maninha".

Em julho de 2022, a PF deflagrou a operação Maritimum, que teria sido a "primeira" proximidade identificada entre Karine e os portos cearenses. As investigações, iniciadas em 2021, expuseram organização criminosa especializada atuando em vários terminais portuários. O modus operandi era semelhante ao descoberto na operação Néctar.

Cerca de 380 agentes cumpriram 46 mandados de prisão preventiva e 90 de busca e apreensão em sete estados: Ceará, São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Pará. O dinheiro bloqueado em contas bancárias dos investigados somou quase R$ 170 milhões.

Na ação, os policiais federais apreenderam quatro toneladas de cocaína em Areia Branca, no Rio Grande do Norte, e cerca de uma tonelada e um fuzil no Guarujá (SP).

Em 2014, novamente na Bahia, Karine e Marcelo foram investigados na operação Twister, da PF. Em 2019, foram os alvos principais da operação Alba Vírus (menção a veneno branco), da PF. Teriam exportado quase 4 toneladas pelo porto de Santos (SP), do que a investigação alcançou.

Relatórios desta operação apontam que o grupo arrecadou quase R$ 1 bilhão com a venda sistemática e volumosa de drogas. Pelo caso, estão condenados desde 2020, ela a 17 anos e dois meses, ele a 15 anos e dois meses de prisão, por tráfico internacional e associação criminosa.

 

 

Habeas Pater: traficante teria pago por sentença

Em março de 2023, a operação Habeas Pater, também com citação à "Patroa", teve caráter diferente. Ela foi investigada em suposta compra de sentença no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1). Teria sido a financiadora de uma propina de R$ 3,5 milhões em troca da soltura de um integrante da quadrilha.

Um juiz federal e seu filho advogado foram investigados por corrupção ativa e passiva. O pedido de prisão do magistrado foi indeferido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). A investigação partiu de uma apreensão de 175 kg de cocaína realizada no porto de Lisboa, Portugal.

Ainda em 2019, Karine teria sido investigada na operação Alba Branca, que investigou desvio de dinheiro público destinado a merendas escolares. O POVO não conseguiu detalhes sobre o suposto envolvimento dela no processo. 

 

 

“Baixinho”: homem de confiança, “bolos” de dinheiro e os contatos lá fora

O casal Karine “Patroa” e Marcelo “Patrão”, enquanto foragidos, tinha um homem de confiança, apontado como o gerente do esquema. Antônio Amâncio da Silva, o "Baixinho", 39 anos, teria estado várias vezes no Ceará conduzindo diretamente as ações criminosas — "atividades como adquirir e manter bens, providenciar abertura, aquisição e manutenção de empresas, determinar movimentações bancárias, recrutar membros para a organização e supervisionar a atuação de tais membros". Tratava diretamente com quem atuava como o "contaminador de contêiner".

A investigação apontou Amâncio vinculado a pelo menos 18 contas bancárias, em algumas aparecendo como procurador de contas de pessoas jurídicas. Em seis dessas em seu nome, segundo relatórios de investigação financeira, movimentou R$ 3.093.149,65 entre janeiro de 2018 e março de 2020 (período da quebra de sigilo).

Áudios interceptados de conversas entre ele e uma das mulheres que seria participante do núcleo da logística financeira da quadrilha, às 23h50min de 15/12/2019, mostram valores movimentados em espécie. O réu fala sobre “bolos” de cédulas de 50 e de 100 reais que deveriam ser manuseados. 

Investigação aponta o transporte de drogas por containeres(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Investigação aponta o transporte de drogas por containeres

"Esse último dinheiro você não conferiu não né, meu amor? Não é pra conferir uma por uma não tá. Você confere bolo por bolo, uma por uma dá muito trabalho. Esse último dinheiro tem que ter 1.710 [um milhão setecentos e dez mil reais] nas minhas contas... por que é 1.710.”

Os autos do processo contam que “o gerente” mantinha diálogo frequente com os chefes na Bolívia. Tanto em ligações como em viagens ao país vizinho para reuniões presenciais com Patroa e Patrão. Coordenava tudo e sempre se reportava aos dois. É destacado na investigação que ele também manteria contatos com criminosos lá fora.

"Foi detectado relacionamento dos investigados, especialmente de Antônio Amâncio da Silva com traficantes e criminosos internacionais do Reino Unido, Albânia, Itália e França, inclusive, no primeiro caso com registro de entrada no porto do Pecém", descreve o documento. Baixinho foi preso dia 5 de março de 2024, em Brasília, onde está recolhido no Complexo Penitenciário da Papuda.

Nos autos, a defesa de Amâncio se manifestou apontando que a denúncia do MPF seria inepta, alegando a coleta de provas inválidas, contradições, falta de detalhamento sobre o suposto posto de comando do seu cliente. "Expõe o fato criminoso de forma confusa e contraditória à imputação que pesa sobre o defendente, especialmente em relação ao suposto exercício da posição de comando na organização criminosa". 

 

 

Com várias apreensões, Porto do Mucuripe não é destacado nem descartado nas investigações

O porto do Mucuripe, em Fortaleza, não teve menção específica nas investigações que se desdobraram da operação Néctar, onde grupo criminoso tentou despachar cocaína num carregamento de mel em agosto de 2019. As evidências apontam a quadrilha mais estruturada para uso do porto do Pecém. Não há indicações, porém, que o equipamento da Capital tenha passado ileso ao esquema.

Nos últimos anos, várias apreensões foram registradas no local, na mesma época que a investigação da Néctar seguia silenciosamente em andamento. Em 14/12/2021, quando a Polícia Federal investigava a organização criminosa, agentes da Receita Federal descobriram 487 kg de cocaína escondidos numa carga de alga marinha em pó. O entorpecente sairia do Mucuripe para o porto de Roterdã, na Holanda. À época, a quantia foi avaliada em R$ 250 milhões pelos agentes federais.

Pátio do porto do Mucuripe, em Fortaleza, também cenário de grandes apreensões de cocaína (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Pátio do porto do Mucuripe, em Fortaleza, também cenário de grandes apreensões de cocaína

No dia 21/12/2023, os cães farejadores da Receita ajudaram a detectar cerca de 140 kg de cocaína no Mucuripe. A droga estava em quatro bolsas e tinha a França como destino final. Ninguém foi preso.

Em 11/10/2018, técnicos de manutenção encontraram, acidentalmente no pátio de cargas, 20 kg de cocaína dentro do motor de um contêiner refrigerado. Até então não havia registro de apreensões no local. O caso foi divulgado pelo O POVO em janeiro de 2019.

Na única apreensão anotada em 2025, no dia 6 de fevereiro, uma operação da Receita Federal apreendeu 416 kg de cocaína escondidos num contêiner que transportava cera de carnaúba. A carga tinha como destino final o Japão, mas seria desembarcada, segundo os agentes da Receita, durante uma parada do navio no porto de Le Havre, na França. 

A maior quantidade de cocaína já apreendida no Ceará associada ao tráfico marítimo, 1.216,80 kg, zarpou do Porto do Mucuripe. O caso foi registrado em 20/8/2022. A droga estava em uma embarcação pesqueira que saiu uma semana antes do porto de Fortaleza.

Embarcação pesqueira, onde foram encontrados 1.216,80 kg de cocaína, esteve ancorada no cais do Mucuripe, antes de ser perseguida e apreendida pelas autoridades policiais e marítimas brasileiras em águas internacionais(Foto: Divulgação Polícia Federal)
Foto: Divulgação Polícia Federal Embarcação pesqueira, onde foram encontrados 1.216,80 kg de cocaína, esteve ancorada no cais do Mucuripe, antes de ser perseguida e apreendida pelas autoridades policiais e marítimas brasileiras em águas internacionais

O barco já estava em águas internacionais quando foi interceptado. A abordagem policial foi possível graças a acordos internacionais. A PF-Ceará recebeu ajuda da Marinha, da Coordenadoria de Inteligência da SSPDS e de agentes federais do Rio Grande do Norte e Paraíba. Seis pessoas foram presas.

A menor quantidade apreendida no Mucuripe foram 10 kg de cocaína, achados no casco de um cargueiro no dia 28/1/2023. O navio havia saído do porto de Vila do Conde, no Pará, e atracado no porto de Fortaleza. Iria para Natal (RN), depois Europa. A droga foi achada pela tripulação numa inspeção de rotina, envolta em malotes de papelão. Ninguém foi preso.

 

 

Companhia Docas: certificado internacional e licitação para triplicar câmeras

Em nota, a Companhia Docas do Ceará (CDC), que administra o porto do Mucuripe, informa que "os dados relacionados às apreensões de drogas realizadas no Porto de Fortaleza são de responsabilidade da Polícia Federal e da Receita Federal".

Segundo a CDC, o porto alcançou o Certificado Internacional de Segurança, emitido pela Comissão Nacional de Segurança Pública nos Portos, Terminais e Vias Navegáveis (Conportos). Há 57 guardas portuários, mais 52 colaboradores atuando no controle de acessos de pessoas e veículos.

Companhia Docas do Ceará, no bairro Mucuripe, em Fortaleza(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Companhia Docas do Ceará, no bairro Mucuripe, em Fortaleza

O porto conta com 100 câmeras de alta resolução e tem licitação, em fase final, para triplicar o número desses equipamentos. "O número de scanners foi triplicado na atual gestão".

Nas medidas adotadas para a segurança das instalações, a estatal federal recentemente restringiu a entrada de veículos particulares na área alfandegada. Apenas carros utilizados nas operações portuárias estão com acesso, segundo a administração, e todos só podem trafegar devidamente identificados com mantas magnéticas com os nomes das empresas para as quais prestam serviços".

 

 

Apreensão em Fortaleza gerou Operação Maritimum

A origem da operação Maritimum, uma das maiores investigações já conduzidas no Brasil sobre o tráfico marítimo, foi a apreensão de 487 kg de cocaína no porto do Mucuripe. A droga foi interceptada numa carga de alga marinha em pó, prestes a ser embarcada para o porto de Roterdã, nos Países Baixos. Os nomes de Karine de Oliveira Campos e Marcelo Mendes Ferreira estariam entre os investigados.

O POVO contou detalhes do caso em série de reportagens sobre o tráfico pelos portos brasileiros. A confirmação de que o entorpecente estava no contêiner se deu no dia 14/12/2021, mas os agentes da Receita Federal levaram três dias para concluir a análise de risco. Era, até então, a maior apreensão de drogas realizada num porto cearense.

Agentes da Receita Federal e cão farejador na inspeção de contêiner onde foram encontrados 487 kg de cocaína, em 14 de dezembro de 2021, no porto do Mucuripe(Foto: DIVULGAÇAÕ RECEITA FEDERAL)
Foto: DIVULGAÇAÕ RECEITA FEDERAL Agentes da Receita Federal e cão farejador na inspeção de contêiner onde foram encontrados 487 kg de cocaína, em 14 de dezembro de 2021, no porto do Mucuripe

A suspeita surgiu na verificação dos dados do motorista do caminhão com o contêiner. Ele já respondia criminalmente por outro episódio de embarque ilícito de cocaína. Os agentes chegaram a rastrear a rota de 15 caminhões que levavam o mesmo produto ao porto, saído da cidade de Tuntum, no Maranhão. Só aquele havia seguido por um percurso diferente, segundo o levantamento da Polícia Rodoviária Federal à época.

Em maio daquele mesmo ano, o caminhoneiro fôra o mesmo que embarcou 640 kg de cocaína escondidos numa carga de mangas. A droga passou "despercebida no porto cearense e só foi descoberta no porto de Le Havre, na França.

 

Linha do tempo de apreensões realizadas e outras cargas que foram vinculadas ao tráfico pelo Porto do Pecém

  • Concepção, apuração e textos Cláudio Ribeiro
  • Edição impressa Ana Rute Ramires e Tânia Alves
  • Edição digital Catalina Leite e Fátima Sudário
  • Identidade visual Cristiane Frota
  • Imagens Fábio Lima, Fco Fontenele e Acervo da Polícia Federal
  • Recursos digitais Catalina Leite
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