Mais de um mês havia se passado desde o início da transição em Fortaleza, quando representantes da equipe do prefeito eleito, Evandro Leitão (PT) iniciaram uma vistoria no Instituto José Frota (IJF), no Centro da Capital. Era terça-feira, 3 de dezembro de 2024. A eleição foi definida em 27 de outubro.
Pouco antes do fim da visita, as duas equipes, de Evandro e do prefeito José Sarto (PDT) concederam uma entrevista coletiva. O superintendente do IJF, José Maria Sampaio Menezes Junior, disse que o encontro foi “amistoso”.
A vice-prefeita eleita e coordenadora da transição de Evandro, Gabriella Aguiar (PSD), também demonstrou cordialidade, apesar de alegar preocupação com a “situação dos medicamentos e escalas” dos funcionários.
A cordialidade entre os dois vem em um contexto de uma transição marcada pelo desencontro de informações. Conjuntura existia na relação entre Prefeitura e Governo do Estado e, agora, estendeu-se para o governante atual e o eleito de Fortaleza. Ao longo das semanas pós-eleição, houve relatos de falta de dados entre as Comissões e dos gestores com os órgãos fiscalizadores.
Em paralelo, a saúde municipal ganhou destaque pela eclosão de problemáticas, há um tempo existentes, mas reforçadas nestes meses finais do ano. O IJF, palco da vistoria, ganhou protagonismo na transição. O equipamento municipal foi alvo de uma recomendação e uma ação civil do Ministério Público, após denúncias de faltas de insumos e déficit de funcionários.
A perspectiva estendeu-se a demais aparelhos. As reclamações da população referentes a este tema aumentaram exorbitantemente no Ministério Público e uma transição com promessas de tranquilidade, foi tornando-se cada dia menos tranquila.
Nesta reportagem, O POVO+ faz um apanhado dos ocorridos e conflitos pós-eleições, com o intuito de responder às perguntas: afinal, o que está acontecendo na transição de Fortaleza e como a falta de comunicação e questões políticas podem comprometer serviços básicos?
Primeiro, vamos entender qual o real estado do IJF e da saúde municipal.
A vistoria no IJF durou cerca de duas horas. No entorno, alguns funcionários conversavam ou lanchavam nos carrinhos da calçada. Mostraram-se resistentes em comentar qualquer coisa sobre a situação do equipamento.
Funcionárias da limpeza disseram não ter notado aumento em problemáticas já que “todos os dias são lotados mesmo”. Sobre a diminuição nos insumos, um maqueiro disse, simplesmente: “É o que estão dizendo, mas estamos evitando falar sobre”.
Dois grandes problemas rondam o hospital neste período: a carência de insumos e o déficit de profissionais. Na terça da visita, profissionais da saúde relataram falta de esparadrapo, gazes acolchoadas, antibióticos e medicações de sedoanalgesia.
Uma enfermeira relatou trabalhar há 20 anos no Sistema Único de Saúde e há seis no IJF. Segundo ela, houve uma piora nos últimos três meses e, em tantos anos na área, “nunca viveu uma situação” como a de agora. “Ficamos tristes em não podermos oferecer o básico para os pacientes”, disse.
No dia anterior, 2 de dezembro, o Sindicato dos Médicos do Ceará (Simec) relatou que o aparelho de arteriografia do IJF está inoperante. O equipamento é voltado especialmente para casos de doenças cerebrovasculares, como aneurismas cerebrais. Funciona como método de diagnóstico e terapêutico.
Só existem dois desse equipamento no Ceará: um no Hospital Geral de Fortaleza (HGF) e o outro, justamente, no IJF. “A estimativa é que somente para tratamento de aneurismas cerebrais, a fila ultrapasse 100 pacientes”, informou o Sindicato.
Matéria do O POVO registrou a falta de insumos, em 14 de novembro e novamente, em 19 de novembro. Nos textos, assinados pelas repórteres Lara Vieira e Luíza Vieira, pacientes relatam falta de algodão, álcool e itens de higienização.
O Sindicato dos Médicos do Ceará (Simec) informou, na ocasião, que, além da falta de insumos, a demora se deveu à ausência de profissionais na unidade, causada por atrasos nos pagamentos dos médicos terceirizados.
No IJF, 279 tipos de medicamentos que compõem o acervo do hospital estão com estoque zerado neste dezembro, o que significa que 74,40% dos remédios da farmácia do hospital estão em falta.
O quantitativo está presente em uma ação civil pública do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), interposta no dia 7 de novembro.
A ação também destaca que, dos 513 materiais de insumos médicos (agulhas, equipos, sondas, drenos, fios de sutura), 263 estão em falta, o que corresponde a 51,26% dos itens.
Matéria do O POVO, 19 de novembro de 2024, assinada por Lara Vieira e Luíza Vieira
O dia a dia ainda é prejudicado pela carência de pessoal frente à demanda. O IJF funciona com um quadro de 4.500 profissionais. Destes, 80% são servidores efetivos e 20% são prestadores de serviços terceirizados em áreas administrativas, atendimento, manutenção e zeladoria. Dados são da Secretaria Municipal de Saúde (SMS).
Alguns serviços médicos são contratados via cooperativa, as quais três delas registraram denúncias de atrasos de pagamentos neste pós-eleição. Em 1º de novembro, a Cooperativa dos Médicos Traumatologistas e Ortopedistas do Estado do Ceará (Coomtoce) afirmou que suspendeu os serviços de Ortopedia e Traumatologia, devido a um atraso de mais de R$ 800 mil reais por parte do hospital para a produção médica.
Segundo o Sindicato dos Médicos do Ceará, a situação está mitigada com um acordo cujo prazo final termina no dia 15 de dezembro.
Na época, a Coopclinic, cooperativa de médicos de clínica geral, e a Coopanest, dos anestesiologistas, também ameaçaram paralisar atividades. Em ambos os casos houve acordo. A Coopanest chegou a paralisar, mas retomou os atendimentos após o pagamento referente ao mês de agosto. Na Coopclinic, a paralisação não chegou a ocorrer, apesar de ter sido anunciada.
Paralisações agravariam um quadro já delicado no hospital. Membros do Conselho Regional de Enfermagem do Ceará (Coren) contam que, via vistorias, analisam quadros de déficit de enfermeiros e técnicos desde 2017. Quantos aos insumos, o problema estaria se agravando desde agosto do ano passado.
Na época, o Coren realizou uma ação conjunta com o Ministério Público no hospital, na qual foi constatada falta de insumos e, mais uma vez, a carência de profissionais da enfermagem. Foi solicitada uma relação de vagas ocupadas e disponíveis ao IJF.
Em março deste ano, o Ministério Público, por meio da 137ª Promotoria de Justiça de Fortaleza, recebeu os dados solicitados, não apenas da enfermagem, mas de modo geral. Foi informado o montante de 1.772 vagas, por lei. Destas, 1630 estão ocupadas, o que representa uma vacância de 142 funcionários. Foi expedida uma recomendação, mas o problema persistiu e o número, na verdade, mostrou-se ainda maior.
Conselhos de profissionais de saúde seguiram com as vistorias. O Cremec, em março, constatou desfalques em escalas dos funcionários, atribuindo a pendências nas aposentadorias.
Foi constatada ainda uma redução no número de cirurgias de 8-10 a 5-6, por turno. Já na enfermagem, relatório solicitado após vistoria do Conselho Regional de Enfermagem do Ceará, apontou déficit de 245 enfermeiros e 490 técnicos.
Algumas das vacâncias oficias foram preenchidas e, em julho, o número caiu a 88 vagas. No entanto, no mesmo mês, o MP tomou conhecimento do alegado pelo Cremec: o IJF contava com 372 processos de aposentadoria pendentes de servidores. Alguns carecem de análise/decisão desde 2016. Ou seja, há oito anos estas vagas de trabalho estão ocupadas, sem plena atividade.
Foi atestada ainda a criação de 54 novos cargos não preenchidos. O IJF alegou que “o chamamento dos profissionais está condicionado à análise de disponibilidade orçamentária e financeira” e, em paralelo, apresentou um estudo da Controladoria Geral do Município.
O material mostrou serem necessários 821 profissionais das mais diversas categorias para preencher as escalas descobertas do equipamento. Apenas 57 foram nomeados e estão em exercício até o momento.
Assim, ainda que oficialmente haja vacância de 88 funcionários, para além delas o IJF funciona com 1147 pessoas a menos do que o necessário, somando-se as aposentadorias e os resultados do estudo.
Entre 2021 e 2024, segundo a SMS, o quadro foi reforçado com a convocação de 547 novos funcionários. No entanto, os três últimos concursos, realizados em 2020, se vencerão neste mês de dezembro, sem a devida convocação.
Em 2 de dezembro, 26 dias antes do fim do prazo, o Ministério Público do Ceará ingressou com uma Ação Civil Pública (ACP) para a convocação de, no mínimo, 88 candidatos para ocupar os cargos vagos no IJF. A ACP ainda solicita a conclusão, em até seis meses, dos 372 processos de aposentadoria pendentes de servidores do IJF.
Os funcionários somam outras necessidades à carência de pessoal. Foi relatada uma falta de incentivo profissional, o que ocasiona problemas nas escalas. “Temos um déficit muito grande. Não existe serviço terceirizado que cubra. Existe uma carência muito grande de profissionais. A gente tenta tirar extra para ajudar, mas mesmo assim não cobre”, disse uma enfermeira, citando uma excelência nos profissionais da unidade, que não seria recompensada com um salário justo.
As reformas em Unidades de Terapia Intensiva também foram citadas como impasses. Em 2023, foi anunciado um aporte de quase R$ 9 milhões para o IJF, da Secretaria de Infraestrutura de Fortaleza. No pacote, estavam incluídas reformas no quinto andar do equipamento, no qual há 30 leitos de UTI. “Estão em reforma há muito tempo, os leitos estão fechados. Temos muitas UTIs, mas não cobre a necessidade”, disse uma funcionária.
Na vistoria, o superintendente José Maria Sampaio Menezes Junior disse que a compra dos insumos é feita em grandes quantidades, via processo licitatório. Após a realização do contrato, faz-se um empenho para aquisição. Segundo ele, “todos os empenhos estão sendo realizados para adquirir esses insumos. Até o dia 6 nós temos a lista de todas as solicitações.”
Quanto aos funcionários, o superintendente afirmou que o IJF “não tem interferência sobre a questão da carreira pública". O superintendente organiza a casa, mas a questão funcional, como o Plano de Cargos e Carreiras, é gerado pela Prefeitura”. “O subdimensionamento de funcionários existe, já foi discutido com outras instituições. E nós como autarquia, sempre solicitamos a contratação de mais pessoas. O IJF não tem poder de contratar pessoas. Só faz indicar”, disse.
De modo geral, na vistoria, foram discutidas com a nova gestão todas as “situações que visualizamos como necessárias para o futuro”. Questionado sobre quais seriam, Menezes afirmou: “Infraestrutura, subestrutura, funcionários, maiores recursos”.
O POVO+ contatou a ascom do IJF e questionou sobre o processo de chamamento dos profissionais aprovados nos concursos de 2020, sobre o aparelho de aparelho de arteriografia inoperante e sobre a previsão de conclusão das obras das UTIs. Ainda não houve resposta. Quando houver, a reportagem será atualizada.
Em setembro, plena campanha eleitoral, a reportagem esteve no IJF e ouviu reclamações de pacientes, especialmente quanto ao tratamento de acompanhantes. As questões focaram na demora e qualidade das refeições. No dia da vistoria, ouvimos relatos de salas superlotadas e cenários nos quais um funcionário atendia 50 pessoas na emergência.
Um paciente atendido em novembro disse ter passado 10 dias no IJF. Segundo ele, "a única coisa que tinha era dipirona". "Tive que receber antiobiótico por 7 dias e no terceiro faltou. Até lençol faltou. As enfermeiras pediram para a gente tomar banho mais cedo, para que eles fossem lavados e utilizados por outras pessoas", disse.
O paciente ainda relatou cenários de pessoas "dormindo nos corredores". "Se acumulavam. Cadeiras eram guardadas como se fosse vida. Os profissionais são excelentes, médicos e nfermeiros. Mas estava muito lotado e faltava tudo", informou.
Membros da frente profissional contaram que a crise virou rotina há meses. Nas doze horas corridas de trabalho, a soma da falta de insumos com os poucos profissionais resulta, segundo eles mesmos, em acúmulo de escalas, desgaste físico e emocional. “É desesperador. Eu passei situações em que saí chorando do hospital. Você sai com a sensação de que não fez nada”, disse uma enfermeira ao O POVO+.
Déficit de profissionais ou falta de medicamentos não são um problema surgido na transição. Carências no IJF são sentidas desde sempre e problemas de saúde pública permeiam todos os setores da gestão e da vida: circulam temas como educação, segurança pública, mobilidade urbana. É um problema antigo e recorrente, ainda que o equipamento seja reconhecidamente eficiente e fundamental na democratização do acesso aos serviços de saúde do Ceará.
A gerência do SUS é interligada entre municípios, estados e União, que compartilham a gestão e os imbróglios orçamentários. Além disso, a própria natureza das demandas da saúde, vale lembrar, são imprevisíveis e urgentes, o que torna a área ainda mais delicada. O problema é complexo e vai além dos limites geográficos da Capital e dos muros da Prefeitura.
No entanto, fato é que a situação tornou-se mais delicada, este ano, em Fortaleza. Levantamento exclusivo disponibilizado pelo MP ao O POVO+ aponta um aumento de 1.100% nas reclamações chegadas às Promotorias de Saúde da Capital. São supostos problemas tanto na Secretaria Municipal de Saúde quanto no IJF. Em outubro, na SMS, foram sete reclamações. Em novembro, 77.
O IJF é uma autarquia municipal. Tem um serviço autônomo, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios. Por isso, o MP mandou as informações sobre o equipamento em uma lista separada. Em um mês, as reclamações subiram de 6 para 38 e, em 1º de dezembro, enquanto não houve registros na SMS, no IJF já haviam 8.
Os números, vale dizer, não se referem necessariamente a irregularidades. “São reclamações, denúncias, mas também pedidos das pessoas. Pedidos de providências. Tem muitos pedidos do Fagifor, questionando porque não foram chamados, há pedidos de renovação de contratos temporários”, disse Ana Cláudia Uchôa, secretária-executiva das Promotorias de Justiça de Defesa da Saúde Pública.
“Se referem a diversas reclamações, que envolvem estrutura de equipamentos, atrasos em pagamentos de cooperativas, pedido de consultas, exames, insumos, reclamação de médicos ou outros profissionais, e dessas nos últimos meses, muitas são sobre finalização de contratos temporários e também de aprovados em concursos do município e do IJF que ainda não foram chamados”, explicou a promotora.
Na Ação Civil Pública, a promotora escreveu que o IJF "vem passando por uma grave crise, a qual vem afetando todas as áreas da unidade". O foco no equipamento se dá pelo fato de ele ser o maior hospital da rede de assistência da Prefeitura de Fortaleza, atendendo à Capital, mas também ao interior. São mais de 6.000 pacientes atendidos por mês.
Neste ano, ele foi marcado por grandes acontecidos. O primeiro tendo ocorrido em abril, quando o refeitório foi palco de um assassinato brutal. Já no administrativo, foram duas reformas. A primeira, em janeiro, se deu pela exoneração do então superintendente Daniel de Holanda.
Daniel estava a pouco mais de um ano no cargo e sua saída foi tomada como supresa até pela base do prefeito na Câmara. Na vistoria da última terça, ele estava presente, mas “apenas facilitando o acesso às instalações”, segundo disse ao O POVO+, sem grandes detalhes.
No último dia 21 de novembro, o prefeito José Sarto anunciou uma força-tarefa para dirigir o equipamento. Segundo a assessoria do local, “desde o início das ações de suporte à Direção do IJF, a força-tarefa já alcançou diversos avanços junto às empresas contratadas, incluindo a definição de um novo cronograma logístico e financeiro para o fornecimento de materiais e serviços de alta demanda”.
Os problemas no IJF atingem outros equipamentos da saúde. Segundo o Coren, Frotinhas e Gonzaguinhas enfrentam impasses devido ao encerramento de contratos temporários. No IJF há concurso próprio. Mas, nos demais equipamentos, muitas atividades ocorriam via seleção pública. Neste ano, houve a realização do concurso da Fagifor, cujos aprovados substituiriam os servidores temporários.
A vigência dos contratos terminou, os profissionais concursados foram convocados, mas não lotados. “Temos ações junto aos Frotinhas e Gonzaguinha relacionadas ao dimensionamento de profissionais. Não tem profissionais para trabalhar”, disse Marylin Rabelo, gerente de fiscalização do Coren.
O mesmo foi dito pela promotora Ana Cláudia Uchôa, que está à frente das Promotorias da Saúde desde 2018. Ela citou o IJF como a principal “demanda”, mas também incluiu na alçadas os problemas de falta de renovações dos contratos temporários e baixo chamamento de aprovados na Fagifor e falta de pagamento de cooperativas.
A promotora não considera a situação um “desmonte”, mas alega que o quadro aumentou do meio do ano para cá. “Esse problema já vinha antes da eleição. Há dois anos a gente recebia reclamações, mas eram pontuais. Do tipo: ‘faltou medicamento’, o que era respondido com ‘faltou, mas já conseguimos repor’. Esse ano foi se agravando. E do meio do ano para cá agravou mais ainda Eu não sei dizer se foi por conta da eleição. Foi um problema que a gente já vinha insistindo para a Prefeitura resolver”, resumiu ela.
A crise nos equipamentos de saúde, citada acima, explodiu durante uma transição governamental entre opositores. Em meio às problemáticas, o processo foi marcado pelo desencontro de informações e a demora na celeridade dos encaminhamentos.
A transição entre opositores demanda atenção especial dos órgãos fiscalizadores por aumentar o risco de desmontes. No caso de Sarto e Evandro, antes ex-aliados, ambos tomaram um ao outro como alvos, em certos trechos da campanha. O prefeito, especialmente, direcionava ações diretas em ataque ao ex-colega de partido.
O gestor foi derrotado já no primeiro turno. No segundo, competiam Evandro e o candidato bolsonarista, André Fernandes (PL). Sarto declarou neutralidade, mas aliados apoiaram André. Funcionários evandristas foram exonerados da Prefeitura. No entanto, mesmo assim, com a vitória do petista veio a promessa de uma transição “tranquila” por parte do atual gestor.
A transição durou mais de uma semana para começar e a troca de críticas veio antes mesmo do decreto ser publicado. Na verdade, circulou a publicação dele. No dia 6 de novembro, a assessoria de Evandro disse aguardar a Prefeitura baixar o decreto da transição para poder indicar os nomes que integraram a comissão.
Já Sarto disse que a publicação do documento dependia da apresentação dos nomes representantes do prefeito eleito. No dia seguinte, o decreto é publicado e no depois desse, 8 de novembro, estourou o caso da falta de insumos do IJF.
Ao todo, o portal do Tribunal de Constas do Estado (TCE) informou a existência de cinco atas de reuniões temáticas de transição. Os temas rodearam saúde e juventude. Confira um panorama geral abaixo:
Cronograma de reuniões e encontros da transição Sarto-Evandro
Enquanto as reuniões ocorriam, relatos de irregularidades estouraram e tiveram desdobramentos. Os mais notórios são os casos da licitação bilionária de iluminação pública e rede de semáforos, da desocupação de uma unidade do Centro POP e do corte do Bolsa Jovem. Mais recentemente, houve ainda cobranças do MP sobre o Hospital da Mulher e a redução da festa de ano novo na Cidade.
Já as denúncias ao MP concentraram-se nas promotorias da saúde, cujos dados foram apresentados anteriormente. No Ministério Público do Trabalho, do período de 28 de outubro a 21 de novembro houve 5 denúncias de casos de assédio eleitoral e 33 denúncias de atrasos de pagamentos. Não há menção de atraso de salários nas denúncias de assédio eleitoral.
Vereadores e aliados de Evandro começaram a relatar os supostos desmontes. O próprio Evandro Leitão (PT) chegou a reclamar de uma suposta falta de comunicação. "Estamos, nesse começo de transição, com uma certa dificuldade em alguns dados”, disse ele à Rádio O POVO CBN, na sexta-feira, 29.
Apesar disso, nada chegava ao MP. O POVO+ manteve contato com a Promotoria responsável pela Transição em Fortaleza desde a semana seguinte às eleições. Mesmo com o aumento das reclamações de aliados, nenhuma irregularidade foi comunicada por nenhuma das duas equipes. No dia 12 de novembro, havia nos registros apenas a recomendação padrão, que solicitava uma transição transparente na Capital.
"O Ministério Público do Estado do Ceará, por meio da Secretaria Executiva das Promotorias de Justiça Cíveis de Fortaleza, informa que, até o momento, não recebeu denúncia sobre o assunto.
MP ao O POVO+, em 21 de novembro de 2024, sobre irregularidades na transição de Fortaleza
A gestão atual respondeu ao colunista do O POVO, Carlos Mazza, dizendo que "todas as perguntas feitas pela equipe do prefeito eleito são oficiadas e registradas por e-mail e tem um prazo estabelecido para a equipe do atual prefeito responder. Não há registro de questionamento sem resposta".
A promotora responsável pela transição, Sandra Viana, disse ao O POVO+, em 2 de dezembro, ter encaminhado as recomendações de transição já no dia 30 de outubro. Segundo ela, tão logo estourou o caso da licitação de iluminação, foi convocada uma audiência pública com ambos os grupos políticos. Mesmo após resolvido o imbróglio, a reunião persistiu e foi realizada.
Nela, não havia representantes do prefeito Sarto, que não foi, nem justificou ausência. A vice-prefeita, Gabriella Aguiar (PSD) estava na ocasião, na qual reclamou do prazo para respostas de Sarto - que consiste em 10 dias, previstos por lei. Não houve comentários sobre falta de dados, em específico.
“Ela disse que as reuniões estavam ocorrendo e os secretários estavam apresentando resultados de suas pastas. O Ministério Público se colocou à disposição para investigar o que estiver irregular”, disse a promotora ao O POVO+.
“Precisamos ter um embasamento para agir. Não nos foi relatado nada neste sentido”, disse a promotora, atribuindo uma possível questão política às declarações da equipe eleita à imprensa. No dia seguinte da entrevista ao O POVO+, o MP acionou a equipe de transição de Evandro, para que esclareçam as dificuldades alegadas.
Na visita, Gabriella Aguiar disse ainda não ter recebido o ofício do MP. “Fiquei sabendo agora. A gente ainda não recebeu oficialmente. Mas estamos deixando bem claro os dados que não foram recebidos de maneira clara, dentro do prazo. Vamos também, assim que formos notificados oficialmente, trazer essa organização para o MP, sobre o que falta a gente receber”, disse.
Segundo ela, em resumo, os dados apresentados nas reuniões não seriam os necessários pela gestão eleita, sendo preciso a apresentação de ofícios para o fornecimento deles.
A dificuldade de comunicação, vale lembrar, é um problema antigo entre os grupos de Sarto e Evandro, este último aliado do governador Elmano de Freitas (PT). Ao longo dos dois anos na qual governaram simultaneamente, os gestores se encontraram pouquíssimas vezes e protagonizaram disputas que envolveram desde divergência entre velocidade mínima em uma mesma avenida, até obras paralisadas.
A saúde, inclusive, já foi alvo de discussão mais de uma vez. Elmano já culpou Sarto pela lotação em hospitais estaduais. Os dois também trocaram um bate-boca virtual em meio, justamente, ao assassinato no IJF.
Enquanto Sarto atribuiu a culpa da insegurança pública à paralisia do Governo do Estado no combate a grupos criminosos, Elmano disse que o crime foi passional e chamou a postura do prefeito de "irresponsável e oportunista". Ou seja, mesmo durante momentos delicados, o o diálogo não costuma ser priorizado.
Via lei, a Prefeitura tem até 10 dias para retornar informações neste processo de transição. Sempre solicitadas via ações administrativas ou judiciais, os processos naturalmente são demorados. Problemas de 2023, como o do IJF, persistem e as gestões tendem a não ajudar na celeridade.
Apesar da troca de responsabilidade, a demora no retorno de ofícios, como no caso do IJF, ocorre, na prática, pelos dois lados. Segundo a promotora Ana Cláudia, as pastas respondem, mas quase nunca dentro do prazo. "Isso é coisa antiga. Tanto pela Sesa quanto pelo município. Temos que reiterar o ofício, às vezes, reiteramos duas vezes. Às vezes, temos que marcar até audiência para eles responderem. Eles alegam que tem um acúmulo de ofícios", disse.
Questionado se uma possível falta de comunicação, dos dois lados, estaria dificultando o processo em Fortaleza, Cristiano Goes, diretor de Fiscalização de Atos de Gestão do TCE-CE, disse: "Transparece isto. Mas, estamos averiguando esta situação se realmente procede."
Como visto, alguns imbróglios já foram resolvidos. A licitação foi suspensa, assim como a mudança no Centro POP e a carência da Bolsa Jovem. Em meio aos casos, os órgãos priorizam ações administrativas que, já demoradas, quase sempre precisam ser reforçadas com diversas outras ações, devido à falta de resposta.
Em Fortaleza, o MP disse que "segue em fiscalização". "O MP pode apurar um procedimento próprio para apurar este fato, podemos provocar o TCE para fazer uma inspeção. A transição em si, não é um processo investigativo, mas de acompanhamento", disse Sandra Viana.
Já o Tribunal de Contas do Ceará (TCE-CE), por meio do diretor Cristiano Goes, afirmou: “Estamos acompanhando o processo de transição de Fortaleza, inclusive registrando as matérias de imprensa e relatos chegados ao próprio TCE”. O diretor adiantou ao O POVO+ que o órgão irá agir diretamente bem em breve, mas pediu para não informar detalhes no momento.
Segundo ele, como Caucaia e Fortaleza tiveram 2º turno os municípios não foram incluídos nas primeiras inspeções presenciais. “Como esta semana e a próxima já estamos com equipes em campo, vamos acompanhar o desdobramento da situação de Fortaleza”, disse, em 28 de novembro.
A Prefeitura de Fortaleza teve até esse último dia 6 de dezembro para apresentar plano de ação para garantir o abastecimento de insumos no IJF. O prazo para déficit de profissionais foi firmado no dia 10.
A promotora Ana Cláudia disse que ouviu dizer que “os medicamentos estão chegando”. Oficialmente, a Promotoria informou que "aguarda a Justiça liberar o acesso do MP do Ceará ao plano de ação apresentado pela Prefeitura".
Ao mesmo tempo, alguns recursos foram conseguidos ao hospital. O ministro Camilo Santana (PT), junto da senadora Augusta Brito (PT), anunciou a destinação de R$ 34 milhões, oriundos de emendas parlamentares. Além disso, acordo de Evandro com o Ministério da Saúde resultou em um reforço orçamentário de R$ 9 milhões por mês e R$108 milhões por ano ao IJF.
Sarto e Evadro seguem com as agendas. O prefeito foca na inauguração e inspeção de obras municipais. Já o deputado estadual focou em Brasília. Ambos delegaram, em partes, as conversas sobre transição. Os responsáveis de Sarto e Evandro, são, respectivamente, o secretário de Governo, Renato Lima e a vice-prefeita eleita, Gabriella Aguiar.
Ambas as promotoras, Ana Cláudia e Sandra Viana, citaram a importância da comunicação e do diálogo para que as coisas andem. Citaram comunicação aos órgãos fiscalizadores e entre as equipes.
Já funcionários e pacientes demonstram impaciência. Para eles, não interessa quem está sentado na cadeira da Prefeitura ou qual o prazo legal para retorno: faltam remédios, faltam profissionais e seja, pelas gestões ou pelos órgãos, uma solução é urgente. No entanto, segue a esperança de mudanças.
“Espero uma gestão com olhar mais humanizado, que valorize os servidores públicos. Que nosso plano de cargos e carreiras avance, que não falte medicações, que os acompanhantes tenham dignidade e que todos tenhamos segurança”, disse uma enfermeira. “Acho que se eu pudesse falar para a nova gestão, falaria isso”.
O POVO e O POVO+ acompanham a transição em Fortaleza desde o dia seguinte à vitória de Evandro. Foi mantido contato constante com o Ministério Público e o Tribunal de Contas do Ceará, nos quais foi possível acompanhar em tempo real a chegada das denúncias e a fiscalização dos órgãos, além da falta de comunicação das equipes de transição.
Houve solicitação para acompanhar as reuniões de transição, o que não foi permitido. O POVO+ também solicitou entrevistas com o prefeito José Sarto (PDT), com o prefeito eleito, Evandro Leitão (PT), com a vice-prefeita eleita e coordenadora de transição, Gabriella Aguiar (PSD) e com o coordenador da transição de Sarto e membro da força-tarefa do IJF, Renato Lima.
As conversas não foram possíveis, mas posicionamentos deles foram retirados de outras declarações à imprensa. No caso de Gabriella Aguiar, e do superintendente do IJF, José Maria, O POVO+ esteve na vistoria realizada no IJF e conseguiu contato. Relatos de funcionários foram mantidos em anonimato.
Essa reportagem foi construída com auxílio de matérias e/ou colunas de Carlos Mazza, Cíntia Duarte, Henrique Araújo, Guilherme Gonsalves, Júlia Duarte, Lara Vieira, Luíza Vieira, Rogeslane Nunes, Thays Maria Salles e Vítor Magalhães.
"Oi! Aqui é Ludmyla Barros, repórter do O POVO+. Gostou da leitura? Te convido a comentar abaixo!"
Série de reportagens mostra como a troca de governos no Brasil, do nível nacional ao municipal, é, historicamente, marcado por conflitos na passagem de faixas - um processo, por natureza, complexo, mas democrático