Uma década depois, os eventos de junho de 2013 continuam a desafiar interpretações de analistas e de quem esteve nas ruas do país naquele ano de explosão de manifestações populares cujos sentidos ainda estão sendo disputados.
O POVO começa aqui uma série de três reportagens sobre as chamadas “jornadas de junho”, na classificação dada ao fenômeno social pelo filósofo Paulo Arantes, da Universidade de São Paulo (USP).
De 6/6, marco inaugural dos levantes, até 30/6, uma onda insurrecional varreu o Brasil, catalisando um sem número de agendas e engajando movimentos organizados cujas lutas se estruturaram então à esquerda e à direita, com reflexos pelos anos que se seguiram e influindo decisivamente na história recente, na qual se incluem o afastamento de Dilma Rousseff, a ascensão de Michel Temer, a Lava Jato, a eleição de Jair Bolsonaro e a prisão e retorno de Luiz Inácio Lula da Silva ao Planalto.
Entre essas datas (6/6 e 30/6), o país “simplesmente parou”, conforme análise do filósofo Vladimir Safatle, para quem as demandas daquela janela de mudanças não foram incorporadas plenamente até hoje.
“Esses dez anos foram a expressão dessa incapacidade de saber lidar com o que aconteceu. Acho que aquele momento demonstrou muito claramente as bases profundas do descontentamento social com os modelos de desenvolvimento que estavam sendo implementados no Brasil”, avalia Safatle, em conversa com O POVO.
Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), Irlys Barreira considera que junho de 2013 “expressa uma espécie de caldeirão de questões, destacando-se uma descrença institucional que atravessa o campo da política”.
“Seja no apoio ao golpe contra Dilma Rousseff, seja no desmerecimento aos governos do PT, fragilizado pelas denúncias de corrupção, ou na ideia populista de direita que apoia o líder com suas massas sem passar pelas instâncias de eleição, há vários pontos comuns que vinculam o período de 2013 a 2023”, examina a pesquisadora, traçando um fio que ata o decênio marcado por turbulências e um tectonismo na esteira do qual a nação convulsionaria.
Mas o que foi 2013? Quais leituras predominam passada uma década das jornadas?
Da PEC 37 (que limitava os poderes de investigação do Ministério Público) à redução na tarifa dos transportes, passando por combate à corrupção, violência policial, saúde e escola “padrões Fifa”, não à Copa, direitos de minorias e outras bandeiras, a onda de junho canalizou uma energia social que convergiria para um ato repleto de simbolismo.
Era 20/6. Naquele dia, mais de um milhão de pessoas foram às ruas. Em Brasília, sede do poder político, manifestantes ocuparam o prédio do Congresso Nacional. Numa das cenas mais representativas do período, escalaram a edificação sob jatos de luzes, que projetavam sombras gigantescas contra a cúpula.
Diferentemente do 8 de janeiro de 2023, no entanto, quando parte da PM fez corpo mole ou saiu para tomar água de coco enquanto golpistas avançavam para depredar as sedes dos Três Poderes, dez anos atrás o aparato de segurança funcionou.
A polícia foi dura em Brasília e noutras cidades, reprimindo os protestos com balas de borracha, spray de pimenta, bombas de gás lacrimogêneo e cavalaria, ou seja, fazendo uso de todo o cardápio de que dispunha para desmobilizar os manifestantes e dissuadi-los de estar nas ruas.
Episódios de agressão e prisões arbitrárias se acumularam nesse mês, em todos os cantos do país, sobretudo depois do apelo de um setor da imprensa cujos editoriais passaram a exigir uma resposta enérgica das forças de segurança – que não tardaria.
Apesar disso, os ânimos não arrefeceram. “Entre junho e novembro de 2013, não teve um dia na sociedade brasileira sem manifestações em algum lugar do Brasil, sobre todas as questões que se possa imaginar”, ressalta Safatle.
“Problemas relacionados à qualidade dos serviços públicos”, continua, “uso de animais em experiências de laboratório, questões vinculadas aos direitos dos povos originários – todas essas questões estavam lá em junho”.
Esses eram tópicos de uma agenda à esquerda. Mas junho/13, como lembra Irlys Barreira, foi mais plural. “As jornadas de 2013 não eram de esquerda, mas também não eram só da direita. Expressavam um descontentamento que tinha uma via de escoamento diferente das outras, sem pauta única”, assinala a professora.
Embora o estopim tenha sido o aumento da passagem de ônibus no estado de São Paulo (a tal guerra dos 20 centavos), então sob governo de Geraldo Alckmin, a fauna política de junho logo teria de tudo: anarquistas, liberais, conservadores, progressistas e por aí vai.
De acordo com a pesquisadora, os atos continham “a mistura de uma política que estava esgarçada sob todos os lados” e da qual a rua era um sintoma que se expressava sob a forma de uma “descrença institucional” generalizada.
Nesse sentido, ela prossegue, “havia várias tendências cujo eixo comum era essa descrença institucional, além de pautas corporativas e morais” enunciadas por “pessoas que, com raras exceções, não viam nas instituições um modo de traduzir as suas demandas”.
Para Safatle, junho tinha um potencial de transformação que, no entanto, foi negligenciado por uma esquerda institucionalizada que chegara ao poder ainda em 2003 e se desacostumara a ocupar o espaço público.
“O que aconteceu foi que a gente descobriu que a esquerda brasileira estava despreparada para vocalizar demandas de manifestações populares que ela não havia organizado”, defende, acrescentando que uma parte dessa “energia de contestação” de 2013 se perdeu.
E a outra parte? Ela se tornou, segundo ele, “uma energia de ruptura, mas de ruptura vinculada a outro projeto, da extrema direita”.
Há uma visão mais negativa sobre junho/13 segundo a qual os protestos foram a caixa de Pandora de onde emergiu uma extrema-direita bolsonarista, de que o 8 de janeiro de 2023 é uma síntese. E uma visão mais positiva, que procura olhar junho como um processo genuíno de organização popular em torno de pautas urbanas, tal como a da qualidade nos transportes.
Entre esses antípodas, há espaço para análises que buscam mediar esses polos. Maria Carlotto, doutora em Sociologia pela USP e professora da Universidade Federal do ABC, filia-se a uma matriz mais nuançada que enxerga elementos dissonantes em junho.
“Existe uma ideia de que junho é um processo espontâneo, autônomo, da base, reivindicando direitos, por um lado, e, por outro, de que também foi um processo de reorganização da direita brasileira e de pressão sobre os limites da democracia estabelecida. Eu tendo a mostrar que junho tem um pouco das duas coisas”, aponta a docente.
Uma das organizadoras do recém-lançado Junho de 2013: a rebelião fantasma (Boitempo), Carlotto entende que as manifestações de dez anos atrás se notabilizaram por constituir uma espécie de marco zero da polarização que daria as cartas no período subsequente.
“O que junho tem de mais interessante, por isso que é um evento tão significativo da vida política brasileira”, explica, “é que ali foi um primeiro momento em que se expressou uma polarização política em torno do que deveria ser a agenda que dali para a frente iria marcar a disputa nas redes, nas urnas e nas ruas sobre o futuro da sociedade”.
Como se deu essa disputa de programa naquele ano? Segundo Carlotto, junho se dividiu em dois grandes blocos, por assim dizer.
De um lado, um mais progressista, formado por “movimentos sociais principalmente de jovens das periferias das grandes cidades, movimento feminista, negro, MPL (Movimento Passe Livre), movimentos mais autonomistas e uma espécie de nova esquerda que vai demandar uma radicalização da agenda no sentido de mais serviços públicos, de mais participação social, de democratização das relações de raça, gênero e classe no Brasil”.
E, do lado de lá, “um movimento que, ao contrário, demandava mais liberdade econômica, menos participação do Estado, que era visto por esse grupo como essencialmente corrupto, e que vai propor para a sociedade brasileira uma agenda mais liberal ou ultraliberal, com teto de gastos, reforma trabalhista, reforma da Previdência etc.”.
Ainda de acordo com ela, “essa agenda, calcada na iniciativa privada, também vai aparecer nas manifestações de junho na questão da anticorrupção, de denúncia do Estado e dos gastos em excesso”.
Na disputa de sentidos atribuídos aos protestos de junho de 2013, a professora de Sociologia Irlys Barreira, da UFC, opera com uma noção de tensão de forças no campo social que se abria naquele estágio.
Eram “forças heterogêneas”, como classifica a pesquisadora, que, entre outros resultados, “alimentaram a constituição de uma direita que se fortaleceu nas ruas ao longo do tempo”.
“Porque nesse momento”, diz Barreira, “as ruas passaram a ser um lugar não hegemônico da esquerda. A direita foi para a rua, reivindicando e disseminando palavras de ordem. Não tínhamos (no Brasil) esse fenômeno com essas características”.
Antes de 2013, o território simbólico de expressão da direita no país se dava majoritariamente por meio de marchas, como as de 1964. As ruas eram um espaço ocupado principalmente pelas esquerdas desde 1968, pelo menos.
Dez anos atrás, porém, esse panorama mudaria. Nas avenidas das grandes cidades, havia “uma direita que se consolidou e se fortaleceu”, mas também uma “esquerda dividida: grupos socialistas, críticos à corrupção naquele momento difundida contra o PT, o movimento ‘black bloc’, o MPL”.
Questionada sobre como 2013 ajuda a entender 2023 e os episódios de 8 de janeiro, a docente responde que há nexos possíveis.
“Eu faço articulações entre 2013 e 2023 no que diz respeito à questão da descrença institucional, o papel dos meios de comunicação que disseminaram fortemente os protestos e a desarticulação de lideranças de esquerda (muitas ocupando lugares institucionais) que no passado construíram pautas organizadas em movimentos clássicos por direitos sociais e trabalhistas”, resume.
De acordo com ela, essas “pautas anti-institucionais fortaleceram-se no governo Bolsonaro”, tomando uma “configuração ostensiva nesse quebra-quebra recente realizado nas sedes dos Três Poderes”.
“Acho que houve um crescendo dessa pauta ‘em nome da moral’ e da tendência anti-institucional da qual a direita se apropriou muito bem”, indica.
Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), Rodrigo Santaella reflete sobre os desdobramentos das jornadas de junho dez anos depois de sua irrupção. Para ele, “2013 expressa o início de uma crise terminal da nova república brasileira”, mas “os dez anos seguintes não foram culpa de 2013”.
O POVO – O que significa pensar 2013 à luz do que veio depois (Dilma, impeachment, Temer, Bolsonaro e Lula de novo)?
Rodrigo Santaella – O ano de 2013 pode ser pensado de muitas formas, especialmente se a gente faz isso à luz do que veio depois. O segundo governo Dilma, que inicia pressionado pelas ruas, mas também pelo mercado, começa fazendo um giro gigantesco à direita logo depois das eleições. O governo se segura em 2013 com uma gestão ruim da crise, inclusive no que diz respeito ao diálogo com os movimentos. Vai para 2014 pressionado, faz uma campanha mais à esquerda e, em 2015, inicia à direita, em mais um processo clássico de estelionato eleitoral no Brasil.
Analisar 2013 à luz do que veio depois gera muitas reflexões diferentes. Muita gente entende que o ovo da serpente do bolsonarismo está colocado ali em 2013. Eu leio de uma forma diferente. Acho que 2013 expressa o início de uma crise terminal da nova república brasileira, o arranjo que nós fizemos a partir da redemocratização, com diversos limites, inclusive no que diz respeito à própria redemocratização. Limites relacionados à anistia aos militares e ao entulho autoritário na Constituição.
Os dez anos seguintes não foram culpa de 2013. Foram simplesmente uma continuação desse processo de crise. Ali em 2013 estavam expressas insatisfações populares importantes, materiais, da classe trabalhadora, de uma juventude precarizada, de uma classe média e de setores da elite que começaram a se aproveitar dessa crise. Pensar 2013 à luz do que veio depois não pode obscurecer essa dimensão que me parece a mais importante.
OP – Qual o saldo político daquele momento?
Rodrigo Santaella – O saldo político é sem dúvida negativo. As manifestações começaram de forma espontânea, com pautas progressistas e avançadas, outras menos avançadas. Na medida em que tinham como alvo símbolos do governo Dilma, foram ocupadas por setores de direita, que estavam se aproveitando daquilo.
Somos um país conservador de fato, o antipetismo sempre foi reacionário. Isso foi ocupado, e esse antipetismo reacionário, proveniente sobretudo das classes médias, foi tomando de conta das manifestações. Começou aquela discussão sobre não ter bandeira de partido. Isso foi tomando uma direção muito diferente. O saldo é ruim, mas não me parece que 2013 seja responsável pelo que nós vivemos depois. Foi um sintoma de uma crise que ainda não acabou. Ainda estamos agonizando nesse processo.
"Ninguém entendeu 2013 ainda porque todo mundo olha para 2013 a partir de onde estava naquele momento e não consegue sair disso... O que veio depois não tem culpa de 2013, mas expressa o mesmo fenômeno que 2013 expressa"
OP – Por que as jornadas de junho continuam a alimentar interpretações tão divergentes?
Rodrigo Santaella – As jornadas de junho alimentam interpretações divergentes, especialmente no campo da esquerda, porque temos setores vinculados ao petismo mais tradicional que dizem que ali foi o início do problema. O problema dessa interpretação é que parte do princípio de que não pode haver protesto contra governos teoricamente progressistas mesmo quando esses governos não estão sendo progressistas o suficiente. Qualquer tipo de protesto é encarado como fazer o jogo da direita etc. Se tem uma chave de reflexão que parte daí, 2013 é fácil de se encaixar nisso. Porque o saldo político de 2013 é um saldo à direita, como disse. O primeiro ponto é esse. Setores diferentes do campo progressista têm interpretações diferentes porque participaram de forma diferente.
Outra interpretação possível é que 2013 foi uma expressão dessa crise, que conjurou interesses e pautas progressistas e pautas conservadoras, e a direita política organizada, jovem e emergente conseguiu mobilizar mais esse sentimento do que qualquer outra coisa. Dentre outros motivos porque o campo social e os movimentos estavam enfraquecidos porque estavam há muito vinculados a uma adesão ao governo, diminuindo a intensidade de lutas sociais durante muito tempo.
Acho que temos aí uma das origens de diferenças de interpretação. Ninguém entendeu 2013 ainda porque todo mundo olha para 2013 a partir de onde estava naquele momento e não consegue sair disso. Uns usam o que veio depois para legitimar isso, e outros dizem que o que veio depois não tem nada a ver com o que aconteceu. O que veio depois não tem culpa de 2013, mas expressa o mesmo fenômeno que 2013 expressa.
OP – Em que medida 2013 ajuda a entender 2023?
Rodrigo Santaella – O ano de 2013 só ajuda a entender 2023 se a gente entende as coisas processualmente. O fio condutor que liga 2013 a 2023 é a crise da nova república. E aí temos um problema gigante na mão, porque essa crise levou ao governo Bolsonaro, um governo altamente destruidor, que resolveu destruir tudo que restava de regulamentação e de elemento progressista. Um governo fascista. Como resposta, temos um governo de frente ampla, que expressa exatamente a cara, a forma e o conteúdo da nova república que está em crise.
A gente está diante de uma coalização de governo formada para derrotar o fascismo, de forma necessária, que representa o que está em crise. Nosso risco é que essa frente ampla seja novamente identificada com os problemas estruturais da nova república, gere insatisfação popular e uma resposta, agora num contexto diferente, porque a extrema-direita cresceu muito, e acabe pavimentando o cenário para a volta, ainda com mais força, de uma alternativa de extrema-direita.
O ano de 2013 ajuda a entender 2023 na medida em que nos coloca diante desses riscos e desses dilemas. A resposta para isso não é fácil. Estamos vendo as dificuldades do governo de lidar com diversas questões, desde a própria composição dos ministérios, diante de um Congresso conservador e da característica da frente que foi formada e de quem está no governo. Não conseguimos encontrar uma alternativa política que supere a crise da nova república. A única solução é apostar na mobilização popular organizada, mas isso também está muito difícil.
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