Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP, Angela Alonso reflete sobre os eventos que levaram o Brasil a junho de 2013. Em seu livro mais recente, Treze – a política de rua de Lula a Dilma (Cia da Letras), a pesquisadora refaz os caminhos que antecederam a onda de protestos.
O POVO – Como 2013 e 2023 se juntam? Um ano é naturalmente resultado do outro?
Angela Alonso – É um dos possíveis resultados. Acho que se tem feito muito uma associação direta entre a ascensão do Bolsonaro e de grupos de direita na política nacional, tanto no espaço público quanto nas instituições, como uma decorrência de 2013. Eu acho que sem dúvida nenhuma a gente tem em 2013 – não só nesse ano, mas antes – a constituição de movimentos à direita do governo petista. Essa linha política é uma linha que perdurou ao longo do tempo e que produziu conflitos de um tipo que a gente não estava acostumada a ver na rua desde o governo Jango. Esquerda e direita na rua simultaneamente. Nesse sentido, sim, tem um longo processo de constituição de um conflito político de rua que vem desde o primeiro governo Lula e que se repõe agora nesse terceiro governo. Mas, não sou daqueles que acham que houve uma linha inevitável entre uma coisa e outra. Acho que ali (2013), da mesma maneira que havia esse campo de movimentos patriota, à direita do governo, havia dois outros: um campo neossocialista e um campo autonomista, que eram constituídos por grupos de esquerda e que também estavam lá. Então, junho podia ter dado em várias coisas. Essa é a resultante com a qual a gente sobrou, mas não é tudo culpa de junho.
OP – Por que essa fração da extrema-direita acabou preponderando nos anos seguintes?
Angela – Quando comecei a fazer essa pesquisa, era ainda em junho. O processo político estava se desdobrando, e eu fui seguindo adiante. E, de fato, no ano subsequente, sobretudo em 2015, há uma grande presença pública do campo patriota, que chamo dessa maneira porque é uma autonomeação. Os movimentos se referem a si mesmos a partir do uso dos símbolos nacionais, eles clamam em falar em nome da nação contra os outros atores políticos. Mas, na verdade, eles são muito diferentes entre si. Não dá pra falar que é uma direita homogênea.
Esse grande campo vem para rua e mostra sua força em 2015 mais do que em 2013. Depois, já perto do impeachment (2016), os campos que haviam estado separados à esquerda do governo Dilma em 2013 – esse campo autonomista também cheio de pequenos movimentos, como o próprio MPL, e que usou a tática black bloc, e outro que chamo de “neossocialista”, que são movimentos redistributivistas de feição mais recente, como é o caso do MTST – esses dois campos se uniram e foram para a rua não propriamente em defesa do governo, mas contra o outro campo no ciclo do impeachment. Tem aí então uma linha que eu fui seguindo, mas, quando cheguei no impeachment, me dei conta também de que muita gente começou a dizer isso que estava na pergunta anterior, ou seja, que a gente tinha uma espécie de fio necessário de um fenômeno a outro. E me dei conta de que se estava perdendo, na minha opinião, o problema mais importante a explicar.
Porque, como ficou todo mundo preocupado com o presente, junho, que havia sido o grande evento problemático, que desafiou todo mundo e a interpretação dos atores políticos e dos analistas, ficou como uma origem, como se tivesse nascido do nada. Aí eu redirecionei minha pesquisa. Em vez de partir de junho, eu fiz o contrário, quis chegar a junho. Para isso, retrocedi até o momento que acho que é um divisor de águas na política brasileira, que é momento em que um grande líder de rua (Lula), de um partido ao qual estão associados os movimentos sociais há décadas, chega ao poder e redefine essa lógica da relação entre instituições, política institucional e política de rua.
OP – A rua é o grande personagem na sua análise. Como ela aparece nesse teatro de movimentos divergentes?
Angela – Partindo dessa ideia de que a ida para o governo de um partido movimentista altera essa lógica da relação entre quem está dentro e quem está fora das instituições, eu fui mapear duas coisas. Uma é como o próprio governo pauta essa relação política a partir das agendas que ele adota. E outra é: quais são os atores da sociedade que se mobilizam em torno dessas agendas em diferentes campos de ativismo. Do ponto de vista dos atores, foram crescendo ao longo dos governos Lula movimentos que são mais à esquerda.
Então tem os que disputam na redistribuição, mas tem os conservadores, que estão disputando os costumes: contra o aborto, contra o casamento entre pessoas de mesmo sexo, por mais religião na vida pública e nas instituições, pela manutenção da hierarquia de gênero.
Esse campo neossocialista é o campo daqueles que acham que o governo, embora tenha uma agenda redistributiva, é redistributivista de menos e não está levando a agenda socialista às últimas consequências. É um governo que é combatido por esses movimentos pelo lado esquerdo, sobretudo nessas questões que dizem respeito a renda e oportunidades, mas também na questão fundiária, da terra rural, da terra urbana e da terra florestada. E tem um outro campo de movimentos de formação mais recente que vêm numa esteira pós-Seattle, em torno de uma onda por justiça global, e que têm um toque redistributivista, mas estão muito preocupados com costumes.
Essa geração que vem muito com a questão identitária e que disputa as formas de viver na vida social. Esses movimentos vão fazer a crítica do governo Lula por esse lado. Vão demandar casamentos entre pessoas do mesmo sexo, liberação da maconha, direito ao aborto etc. Eles pressionam pelo lado esquerdo, mas em direções diferentes. E vai crescendo, ao longo das gestões de Lula, um monte de pequenos movimentos que pressionam pelo lado direito. Pressionam na questão fundiária, com movimentos de resistência à reforma agrária, de resistência a políticas ambientais, de resistência à redistribuição de territórios na própria cidade. Do outro lado, há os movimentos que são puramente liberais, no sentido mais lato do termo, porque são contra a intervenção do estado em geral, querem menos impostos etc.
Então tem os que disputam na redistribuição, mas tem os conservadores, que estão disputando os costumes: contra o aborto, contra o casamento entre pessoas de mesmo sexo, por mais religião na vida pública e nas instituições, pela manutenção da hierarquia de gênero. E ainda vão surgir, mais gradualmente e com menos visibilidade, movimentos realmente autoritários que serão de defesa do regime militar. São pequenos, mas estão lá. A rua é um mosaico, porque são muitos pedacinhos.
OP – Em que medida os governos falharam em identificar setores ou segmentos com os quais seria possível estabelecer diálogo naquele momento?
Angela – Eu mapeio três grandes zonas de conflitos em torno das quais esses movimentos estão se formando e interagindo. Uma é a da redistribuição. Outra é em torno da violência, e aí acho que a Comissão Nacional da Verdade é um evento decisivo. E a outra é essa da moralidade, que tem tanto a feição privada, dos costumes, mas tem também a tópica da corrupção. Toda essa politização da justiça e das instituições jurídicas tem muito a ver com isso – o julgamento do mensalão aconteceu em 2012, televisionado e muito visibilizado pela grande mídia.
Essas questões passar a estar na agenda, mas em níveis diferentes. Dada essa visibilidade da corrupção, o que chamou mais a atenção do governo Dilma foi desde o começo a corrupção. A Dilma fala várias vezes a respeito do combate à corrupção, tem um alinhamento nessa direção. O governo assumiu, desde o começo das manifestações, a tese do Lula, que é a do “pão com manteiga”. O povo já tem pão, os governos petistas teriam sido bem-sucedidos na política de redistribuição de renda, mas agora o povo quer manteiga, ou seja, quer mais qualidade dos serviços públicos. Essa interpretação é uma interpretação de que o protesto é um protesto de esquerda, e, ainda, mais especificamente, de uma esquerda redistributiva.
Como eu estava dizendo antes, na verdade eram três campos diferentes. Quando o governo se sente por fim pressionado, ele chama para o diálogo o que ele considerava que era a agenda de rua, essa agenda do “pão com manteiga”, e os movimentos que foram catapultados a uma posição de liderança que eles não tinham, que eram os movimentos em torno de transporte e autonomistas, que eram pequenos, muito modestos, sem capacidade de arregimentação, como eles mesmos reconheciam. Esse pedaço da rua é chamado à negociação, mas o outro lado, os movimentos em torno da moralidade pública, do lado direito – o Nas ruas, da Carla Zambelli, que inventou o slogan “não é pelos 20 centavos” –, ou os movimentos que são claramente conservadores do ponto de vista de costumes, esses não são chamados para a negociação porque o governo nem os visualiza como movimentos organizados. De fato, aí tem uma miopia, mas ela é mais ou menos coletiva naquele momento, porque o governo não vê, a imprensa não noticia e os outros atores políticos não nomeiam. Em junho eu entrevistei os ativistas de esquerda, eles sabiam que tinha outra gente na rua que não eram eles mesmos, mas eles não sabiam dizer quem eles eram. Eles falavam: “é uma gente esquisita”. Ficaram surpreendidos com a presença de movimentos conservadores organizados e liberais na rua ao mesmo tempo que eles.
Em 2013 é a primeira vez que eles aparecem todos juntos, tem uma simultaneidade dos diferentes que dá essa visibilidade. Aquele verde-amarelismo do campo patriota aparece ali com uma visibilidade nacional que não tinha tido até então
OP – O surgimento dessa fatia de manifestantes conservadores foi uma surpresa para a esquerda?
Angela – Na verdade não é o surgimento, porque daí começou todo mundo a falar em “nova direita”. Eles vêm se formando desde o começo do governo Lula. Tem um governo de esquerda, tem oposição à direita. É meio óbvio. Só que esses movimentos eram todos pequenos e, como estão segregados em assuntos, conforme os diferentes temas, eles não têm tanta visibilidade. E também porque demora para os movimentos conseguirem adeptos, conseguirem persuadir e mobilizar pessoas a irem para as ruas. Em 2013 é a primeira vez que eles aparecem todos juntos, tem uma simultaneidade dos diferentes que dá essa visibilidade. Aquele verde-amarelismo do campo patriota aparece ali com uma visibilidade nacional que não tinha tido até então, mas se a gente olhar os eventos anteriores, eles já estavam fazendo essas coisas que farão depois – os usos dos símbolos nacionais, mesmo de orações nos eventos políticos. É uma surpresa para quem não estava olhando.
OP – O espólio de 2013 ainda está em disputa? Qual o papel que ele tem hoje, dez anos depois?
Angela – Está em disputa porque tem essa disputa, inclusive interpretativa, entre quem puxa o fenômeno para o lado esquerdo, ou seja, muita gente que ainda repõe a tese do “pão com manteiga”, e, do outro lado, aqueles que falam de um sequestro, nessa linha de que era um protesto de esquerda que foi tomado pela direita. Tem uma disputa interpretativa no interior da política, mas que é parte da própria política. Afinal de contas, quem conseguiu levar tanta gente às ruas naquele momento? E o que é de fato que as pessoas queriam? Quem representa cada uma das agendas, ou cada uma das posições políticas, obviamente vai reivindicar para si. É mais um polo de tensão entre atores contemporâneos.
Agora, acho que o que ficou daquele momento é principalmente essa dificuldade da política brasileira, de modo geral, de considerar como legítimos movimentos liberais-conservadores, porque obviamente os autoritários estão fora do esquadro democrático.
Agora, acho que o que ficou daquele momento é principalmente essa dificuldade da política brasileira, de modo geral, de considerar como legítimos movimentos liberais-conservadores, porque obviamente os autoritários estão fora do esquadro democrático. Mas os liberais e os conservadores são parte do jogo democrático. Acho que tem uma visão bastante consolidada, mas a meu ver errônea, de que só a esquerda pode fazer movimento social. Movimento social é uma forma de ação e protesto para quem não está dentro das instituições. É natural que, quando o governo é de esquerda, quem se organize para ocupar esse espaço majoritariamente sejam os grupos mais à direita. Considerar que esses movimentos podem ser legítimos em algumas das suas reivindicações é trazer para o debate democrático aqueles que, de outra maneira, podem ser puxados numa direção autoritária pela sua franja, que foi o que o Bolsonaro tentou fazer ao longo do seu governo.
OP – E o que vimos acontecer em 8 de janeiro.
Angela – O 8 de janeiro é uma espécie de hiperinflação desse campo autoritário, que mostrou que tem grande capacidade de infiltração na sociedade, um domínio dos novos meios tecnológicos, que tem acesso a armas e uma grande convicção. Porque, para fazer uma ação política desse tipo, é preciso mais adesão a um certo grupo do que se tem para ir numa manifestação. É um ativismo de risco, eles podiam ser, como de fato vários foram, presos e processados. E, no limite, se fizessem o que realmente planejavam, ao que parece, que é entrar num conflito armado, eles podiam perecer. Tem uma adesão muito forte a essa perspectiva e a maneira de ver o mundo, o que torna ainda mais difícil lidar com esse tipo de grupo.
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