Na última visita do Vida&Arte ao Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ), realizada na segunda semana de novembro, os alunos já estavam em preparação para a Mostra das Artes, evento que acontece entre os dias 13 a 16 de dezembro deste 2023. Enquanto alguns integrantes do laboratório de redes sociais aperfeiçoavam os conteúdos na área, alunos de dança - uma parte do grupo que compõe cerca de 100 artistas em cima do palco - ensaiavam o ato em uma das salas.
O projeto é a culminância anual das criações artísticas, um encontro resultante da apropriação de distintas linguagens, entre elas a música, a dança, o circo, o teatro e a literatura. Da mesma maneira, é um momento para celebrar o encerramento de mais um ciclo. Neste ano, o CCBJ completa 17 anos no dia 19 deste mês. A data de inauguração pode ser revisitada por meio de matéria publicada pelo O POVO em 2006. No texto, o anúncio da abertura como um "passo em direção à democratização da cultura".
Mediante o começo com oficinas de dança de salão, contação de histórias, aula-espetáculo e série de autorretratos, o escrito ainda aponta que o novo espaço é "tanto uma forma de inserção social", como "uma possibilidade dos moradores do Bom Jardim poderem manifestar opiniões e visões”. Quase duas décadas depois, a definição é uma síntese de uma história iniciada pela comunidade. Aqueles que, até hoje, mantêm o equipamento cultural vivo e em constante condição de resistência.
O Bom Jardim não foi a rota inicial do arte-educador e professor Joaquim Araújo em Fortaleza. Recém chegado do Recife no início dos anos 2000, ele parou acidentalmente no bairro após errar a rota de ônibus. Entretanto, ao parar numa rua desconhecida, percebeu uma movimentação. "Tinha um pessoal tocando tambores e tudo mais. Estava conversando com uma pessoa da associação e ele disse para mim que a comunidade estava se organizando para levar um centro cultural para lá".
Ele até chegou a estranhar a ideia pois achava que o "circuito cultural" de Fortaleza estava presente apenas na Aldeota e no Meireles. A ocasião, descreve, o fez sentir um certo encantamento pela possibilidade de outros rumos. "Eu achei aquilo mágico. Veja bem, nós estamos falando no início dos anos 2000, a gente mal tinha saído de uma ditadura. E aí eu entendi o território, tinha uma potência de organização muito forte". Composto pelos bairros Granja Lisboa, Granja Portugal, Canindezinho, Bom Jardim e Siqueira, o território está localizado na zona sudoeste da Capital em um perímetro que abriga mais de 24 mil moradores.
Para entender como esta movimentação prossegue no contexto atual, é necessário compreender como ela foi inicialmente desenhada. A sequência é descrita na pesquisa "A Construção da Memória Social como Política Pública: o caso do Centro Cultural Bom Jardim em Fortaleza", mestrado do artista e produtor Gyl Giffony. O documento mostra que o direcionamento da cultura no Ceará começou a ser modificado em 2003, no governo de Lúcio Alcântara e na gestão de Cláudia Leitão frente a Secretaria da Cultura do Ceará (Secult - CE). Neste intervalo de tempo, o Plano Estadual de Cultura foi montado com base em três eixos: interiorização, valorização das culturas e descentralização.
Os pilares miravam as seguintes décadas, visto que, à época, existiam apenas dois centros culturais em Fortaleza: o Centro Cultural Banco do Nordeste, de 1998, e o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, de 1999. A intenção era que quatros centros culturais fossem construídos em bairros periféricos, a fim de estimular "novas identidades coletivas". Quando a notícia da proposta se espalhou pela Cidade, a organização que já era forte no Bom Jardim intensificou as agendas para que o planejamento pudesse se tornar realidade na região. Todavia, pairava um discurso de que a nova empreitada deveria ser executada na Messejana, por motivos comerciais e territoriais.
“Se dizia que não ia levar ao Bom Jardim porque não levava a lugar nenhum. Na Messejana, ligava a perimetral, ao Eusébio, a outras cidades. O Bom Jardim até tinha poucas linhas de ônibus, muita gente ficava desconectada. E a galera ficou indignada", relembra. As mobilizações envolveram manifestações, reuniões, ocupações e abaixo-assinados até, por fim, a concretização do planejamento no território. “Como boa luta comunitária, a galera acaba se dividindo”,
De acordo com Joaquim, a divisão inicial motivou o modelo instaurado pela instituição. Os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) estavam se popularizando à época e segmentos do formato foram instaurados na idealização. "Uma parte foi utilizada para a construção da escola e outra para a construção do centro cultural", explica. A estrutura ficou por conta do arquiteto Luiz Deusdará, que projetou a área como uma simulação do próprio desenho dos bairros. Os blocos que constituem as salas foram dispostos como as casas, ao mesmo passo em que as brechas também se assemelham às vielas. Assim, estava pronto o primeiro equipamento cultural de Fortaleza dentro da periferia, o projeto foi anunciado como uma parceria entre o Governo do Estado, mediado pela Secult - CE e o Instituto de Arte e Cultura do Ceará (atual Instituto Dragão do Mar). “Sempre teve a participação da comunidade”, acrescenta Joaquim.
Como é possível verificar, os habitantes do GBJ são componentes ativos desde o primórdio da instituição. Antes do início das atividades, foi realizada uma pesquisa para saber quais eram os cursos mais desejados pela população. Os resultados mais apontados foram as artes plásticas, a dança e o teatro, além dos cursos formativos. Com o passar das gestões, o envolvimento seguiu contínuo.
Ao longo dos anos, iniciativas e projetos do centro cultural foram destaques na página do Vida&Arte - como o Festival Bomja Rocks - O caderno também registrou as articulações da comunidade artística, a exemplo das intervenções realizadas em dezembro de 2014 a fim de direcionar atenção a redução de cursos ofertados à época.
O diálogo entre a comunidade e a instituição ganha uma nova ponte em 2015, a partir do surgimento do Fórum de Cultura do Grande Bom Jardim. "Em 2015, o CCBJ estava passando por um processo de precarização (segundo matéria veiculada no dia 19 de maio de 2014, em alusão ao aniversário de oito anos do equipamento, uma das dificuldades da primeira década do CCBJ foi o distanciamento da estigmatização de "primo pobre" do Complexo Cultural Dragão do Mar). A gente consegue entrar numa audiência com o Renato Roseno (PSOL) em para conseguir um recurso para fazer uma manutenção do equipamento. Nessa situação, nasce o Fórum, sempre pensando na referência de políticas públicas na comunidade, um lugar que é tão carente", detalha a artista e integrante do Fórum, Graça Castro e Silva.
Ela relata que a associação busca interlocução com outros atores, além de expandir atividades para outros campos interligados ao setor cultural. "No CCCBJ a gente acompanha e monitora, ficamos como o intermediador entre a comunidade, o CCBJ, a Secult e o IDM. O equipamento tem importância muito grande, a gente acaba trazendo todas as questões pertinentes do território pro CCBJ também. É importantíssimo, inclusive referência para outros espaços de militância".
O CCBJ também institui uma nova forma de gestão, sendo pioneiro no gerenciamento por uma Organização Social (OS) e em gestão compartilhada entre Secult, IDM, Fórum e Cultura e o próprio equipamento. "A gente tem 25 anos. Foi algo, assim, realmente muito inovador e a ideia na época era que o Estado não conseguia dar conta de fazer a gestão e a execução (de tudo), porque equipamentos culturais têm muitas singularidades. A OS permite a institucionalidade, a legalidade, a transparência, a otimização dos recursos, mas tem mais flexibilidade para trabalhar com o campo cultural. Essa gestão é viva", elabora.
Ela elenca algumas particularidades do CCCBJ, a exemplo da criação a partir da demanda popular e alcance da organização "Não é simples, mas é enriquecedor. Tem coisas que querem que nem sempre é viável atender, nós também temos algumas limitações. Ao mesmo tempo, acho que a essência do Centro Cultural do Bom Jardim são essas instituições todas juntas em consonância. E consonância nem sempre quer dizer alinhamento total", desenvolve.
Quando há uma quantidade maior de agentes envolvidos, consequentemente existem mais impasses. A diretora reforça que reconhece a legitimidade de cada órgão, necessários para o avanço da entidade, e destaca que o alinhamento de ideias é feito "sempre na base do diálogo e da crítica construtiva". Após quase duas décadas de implementação do sistema, Rachel acredita que as que os intermediários já estejam mais maduros para aperfeiçoar o padrão de gestão compartilhada. "Eu acho que o CCBJ está passando por uma fase das dores do crescimento, digamos assim. Ele cresceu muito na dimensão política, artística, social e cultural. A gente precisa, agora, encontrar uma síntese dele que não perca a força política, não perca a atuação territorial. E, ao mesmo tempo, entregar um trabalho que tenha um nível maior de conforto, de segurança e de estabilidade. Mas, nessa equação, nós precisamos estar juntos".
O pensamento é corroborado pelo gestor Marcos Levi Nunes. À frente do comando do CCBJ desde 2021, ele considera o atual momento desafiador. "A gente está num território de mais de 24 mil habitantes e a gente quer chegar mais longe, porque é como se fosse uma cidade. É um desafio equacionar três eixos de formação em um só equipamento cultural, como acontece a priorização política, cultural e de base comunitária diante desses desafios estruturais e metodológicos que a gente precisa amadurecer para o ano que vem", elabora.
Em meio aos obstáculos, o dirigente destaca alguns dos progressos de 2023. Um que deve ser destacado é o aumento no orçamento, que chega aos R$ 10 milhões. A quantia, entretanto, ainda não é suficiente para as demandas do espaço. Ele também menciona a possibilidade de fidelização de plateia por meio de eventos como a Bússola Cultural e o festival "A Coisa Tá Preta", realizado em novembro. Outro ponto é o ingresso de pessoas no mercado de trabalho por meio dos ateliês e oficinas, além da aproximação com os povos originários por meio de programas como o Artista em Pauta.
Em paralelo, a instituição segue com o objetivo inicial de promover ações estruturadas na cidadania cultural. "Nós estamos num território atravessado por questões de violência, de vulnerabilidade social, de trabalho infantil, de violência sexual, de miséria extremal. Então foi criado o setor de cidadania cultural para aproximar a cultura dos direitos humanos e da cidadania", complementa.
Para 2024, Levi adianta que é importante pensar em movimentos para ampliar o alcance das atividades oferecidas pelo CCBJ. "A gente está passando por um momento agora de planejamento estratégico pelos próximos 4 anos, da comunidade, liderança, artistas, mães, crianças, os gestores. Todo mundo quer mais e a gente tem que ver o que é importante e dizer 'amém!', mas é um bom sinal". Uma das principais solicitações é o crescimento do espaço físico, algo que também já está sendo estudado. "A gente já iniciou um diálogo com a Superintendência de Obras Públicas do Estado (SOP) e a gente tem que desenhar como vai se desenrolar".
Além da análise de expansão do local, os entes que fazem parte da gestão do CCBJ também devem analisar ainda no mês de dezembro a portaria que detalha o funcionamento da gestão compartilhada. A informação foi divulgada pela secretária da Cultura, Luisa Cela, em entrevista ao Vida&Arte.
"Para discutir essa minuta, no sentido de dar transparência, assegurar os princípios democráticos e ampla participação dos diversos grupos e coletivos culturais. A gente quer encerrar esse ano fazendo esse balanço e atualizando essa portaria para dar mais força e mais protagonismo. Ao longo desses anos, foram sendo vivenciados momentos mais tranquilos, momentos mais tensos, onde tinha mais divergências, onde tinha mais convergências. A gente vai fazer uma atualização normativa, digamos assim, do funcionamento desse espaço de gestão, mas sempre no sentido de fortalecimento desse lugar, que é uma conquista daquela comunidade", informa.
Luisa acompanhou os processos do CCBJ de maneira mais próxima desde 2016, quando iniciou no cargo de gestora da instituição. "Representa um espaço de descompressão de um território que, por vezes, é muito pressionado por desafios urbanos, de moradia, de iluminação, de violência. Por outro lado, tem muita potência, muita produção de vida e cultura. O centro reverbera isso desde que foi construído", pontua. Ela afirma que assumiu a administração em um período de problemas estruturais. Segundo O POVO em 2014, era nítida a falta de reparos na instituição e a falta de continuidade nas atividades formativas. Outros registros, alguns datam de 2015, confirmam falta de ajuda de custos e investimento.
O cenário pareceu próximo da mudança em julho de 2015, quando a primeira reforma foi anunciada pela Secult após pedido de intervenção urgente oriundo de vistoria do Departamento de Arquitetura e Engenharia (DAE) do Estado. Além dos reparos estruturais, o espaço também iria passar por "obras de manutenção hidráulica e elétrica", assim como nova pintura. As modificações foram realizadas com um orçamento de R$ 664 mil. "A gente promove uma boa reforma e uma atualização completa da estrutura do teatro, de som, de equipamento, da iluminação e parte cênica", relembra a secretária.
A reinauguração, então, acontece em agosto de 2016, com uma "boa condição de infraestrutura dentro das limitações que o tamanho do Bom Jardim impõe". A adversidade, portanto, se tornou outra. Era necessário desenvolver fortificar a identidade. "Nós iniciamos um trabalho que hoje ganhou muita força, de entender que o centro cultural precisaria ter um braço de cidadania e a presença de profissionais, como educadores e assistentes sociais, para acolher, principalmente, as crianças. Isso, hoje, é o norte. Um núcleo de articulação que tem um corpo grande de pessoas, uma força expressiva".
Desde então, a secretária acredita que o período foi importante para consolidar conquistas. "Hoje, o grande desafio do centro cultural é o espaço físico de fato. A gente brinca, mas falando sério, que já não cabe mais dentro dele. Cresceu tanto que precisa de uma estratégia de ampliação que nós temos estudado. Hoje nós temos um funcionamento permanente de janeiro a dezembro, sem interrupções e sem momentos de maior fragilização. Temos uma capacidade de atendimento cada vez mais ampliada, de inserção no território, de discussão, de pautas relevantes", confirma.
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