O Museu do Ceará recebeu 40 mil visitantes entre 2018 e abril de 2019, de acordo com informações divulgadas ao Vida&Arte pela Secretaria da Cultura do Ceará (Secult - CE). Os dados dimensionam o último ano de completo funcionamento da primeira instituição museológica oficial do Estado. Desde então, obras de restauro estrutural prolongam o afastamento entre cidadãos e a secular edificação do Palacete Senador Alencar, situado no Centro de Fortaleza, sem previsão para reabertura até o momento.
Com construção concluída em 1871, o Palacete Senador Alencar foi sede de órgãos como a Assembleia Provincial do Ceará, Tribunal de Contas do Ceará, a Biblioteca Pública e o Instituto do Ceará antes de abrigar o Museu do Ceará. O tombamento do edifício foi solicitado pelo arquiteto José Liberal de Castro em 1972, em documento dirigido ao Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan).
O edifício foi registrado no Tombo das Belas Artes no ano seguinte e é descrito no Guia de Bens Tombados do Estado do Ceará (199) com características do neoclassicismo brasileiro. Matéria publicada no O Povo nos 150 anos do palácio, divulgada em julho de 2021, destaca a importância do prédio.
"Essa edificação é um dos exemplares mais valioso enquanto arquitetura institucional, ela é da segunda metade do século XIX, já atravessa três séculos e representa um processo de organização política, uma organização institucional através de um regime anterior à República", ressaltou o doutor em Arquitetura e Urbanismo pela FAUUSP, Márcio Carvalho, conselheiro federal suplente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU-BR).
O local abrigava um acervo com mais de 13 mil peças, entre moedas, itens de vestuário, artefatos indígenas, peças arqueológicas, bandeiras, armas e imagens. Foi recinto para exposições sobre personalidades como o historiador Capistrano de Abreu (1853 - 1927), com objetos pessoais do cearense; e Frei Tito, em memorial que reuniu artefatos da família, a exemplo de fotografias e documentos. Também não há como deixar de mencionar a presença do Bode Ioiô, caprino eleito vereador nas eleições de 1922, cuja imagem se encontrava empalhada em sala do Museu.
O Bode Ioiô é um personagem que ganhou fama quando foi eleito vereador nas eleições de 1922. De acordo com relatos, o caprino transitava livremente pela cidade e aproveitava inúmeras vaidades. Após a morte, o dono do animal fez com que ele fosse empalhado.
O bode, então, foi doado ao então Museu Histórico do Ceará e nunca saiu de exposição. A figura ganhou o próprio museu em 1922, localizado na Cidade da Criança, e inspirou a nomenclatura do Anexo do Museu do Ceará, o Anexo Bode Ioiô.
A mencionada reforma emergencial foi determinada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e objetivava a "melhoria da estrutura e da segurança do bem cultural", com previsão de 120 dias de duração e custo inicial por volta de R$ 410 mil. Em nota enviada à reportagem, a Secult explica que o atraso foi influenciado pela falta de avanço das tratativas com a Caixa Econômica Federal para o financiamento da obra.
O processo corre em fase de liberação de licitação e foi encaminhado para a Superintendência de Obras Públicas do Ceará (SOP), responsável pela elaboração do termo de referência e orçamento, "para dar sequência ao restauro e à modernização do museu, com recursos próprios do tesouro estadual".
O trâmite, também vinculado à Coordenadoria do Patrimônio Cultural e Memória (COPAM), agora envolve cerca de R$4 milhões. O montante, segundo a pasta, é destinado à melhoria da construção predial e também à modernização do órgão. "A referida obra de restauro possibilitará a conservação e preservação do Palacete Senador Alencar, como também modernizará o prédio, adequando o mesmo às atuais orientações para garantir a acessibilidade em museus e atualizará os espaços dos circuitos expositivos da referida instituição", desenvolveu no texto.
O Palacete, consequentemente, se distancia do cenário cultural neste tempo em que balança entre reparações e remodelações. Em meio às inaugurações e reestruturações de equipamentos culturais que se alastram pelo Estado, os pontos de referência de tamanha instituição museológica perdem alcance, embora continuem acessíveis para fins de pesquisa no Anexo Bode Ioiô (rua Major Facundo, 584 - Centro) e em atividades de formatos on-line, enquanto ainda não é possível reabrir as portas aos visitantes.
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O tempo pelo qual corre a reforma pode trazer agravantes que tangenciam as questões físicas: com o equipamento fechado por anos, muitas pessoas de gerações mais novas sequer sabem onde o
O contexto do surgimento da iniciativa remete a um período no qual se buscava fortalecer instrumentos de identidade nacional. "Os museus históricos tiveram, em muitos casos, o Museu Paulista e o Museu Histórico Nacional como ‘modelos’ a partir de 1922, ano do centenário da independência do Brasil. Os museus históricos voltaram-se para a celebração do passado, numa perspectiva do "culto à saudade", proposto por Gustavo Barroso, contribuindo para a construção de uma identidade nacional (e cearense) fundamentada na celebração das glórias do pretérito, vivenciadas pelos "grandes" vultos da aristocracia, do Exército, da Igreja Católico e do Estado", rememora a historiadora Cristina Holanda, gestora do Museu do Ceará entre 2008 e 2013 e atual diretora do Museu Ferroviário do Ceará.
O equipamento tratado nesta matéria foi criado por decreto em 1932 e abriu as portas em 1933 como Museu Histórico do Ceará (MHC). As peças, majoritariamente adquiridas por compras e doações particulares e de instituições públicas, ocupavam duas salas do Arquivo Público do Estado. Em 27 de outubro do mesmo ano, O POVO configurou os itens como “preciosidades das mais interessantes e curiosas existentes”. Ambas organizações foram primordialmente administradas pelo jurista Eusébio Néri Alves de Sousa, com sistematização que priorizava a recuperação de fatos e personagens do passado histórico para a população geral.
Após a saída de Eusébio, o MHC passou por um momento de abandono intensificado pelas diversas mudanças de diretores em curto espaço de tempo. O Museu, que ainda passou por um período de fechamento até o início da década de 1950, foi incorporado ao Instituto do Ceará em 1951 sob a direção do historiador Raimundo Girão. A nova gestão focou em trazer arquivos do Ceará e Nordeste e em modificações no funcionamento do equipamento - a exemplo da mudança de critérios para a exposição dos objetos -, além de alterar o nome para Museu Histórico e Antropológico do Ceará.
A entidade foi incorporada à Secult - CE em 1967 e, em 1971, o professor Osmírio Barreto tomou a frente da superintendência. O profissional favoreceu a premissa de acessibilizar a iniciativa, a fim de atrair mais visitantes e valorizar a atuação de instrumentos museológicos no ensino de História. "Cada uma dessas três fases do Museu possui três gestões que foram bem estudadas em dissertações e teses: Eusébio de Sousa, Raimundo Girão e Osmírio Barreto. Cada um com suas particularidades, tiveram em comum o uso de práticas expositivas que nos remetem à tradição dos antiquários; discursos em prol do nacionalismo; a folclorização da cultura popular; e a compreensão do Museu como instituição educativa voltada para a formação de patriotas", aponta.
O equipamento embarca em mais um processo de renovação a partir de 1990, quando é transferido para o Palacete Senador Alencar e recebe o título de Museu do Ceará. A nova nomeação pretendia integrar distintos preceitos à instituição, como diversidade tipológica do acervo e formação interdisciplinar, com a presença de historiadores, antropólogos, museólogos, arquitetos, restauradores, arqueólogos e paleontólogos na equipa técnica.
"Considerando os novos debates acerca da estrutura e função social dos museus, em especial os de História, percebem-se mudanças acentuadas na configuração do Museu do Ceará, sobretudo com a criação das exposições de longa duração: ‘Momento Ceará Terra da Luz ou Ceará Moleque: Que História é Essa? (1998-2008)’, ‘Memorial Frei Tito (2002)’ e ‘Ceará: uma história no plural (2008)’; inúmeras exposições temporárias, inclusive fora do Ceará; e a fundação de um núcleo educativo fundamentada em premissas da História Social e do legado de Paulo Freire, com o desenvolvimento da metodologia do ‘objeto gerador’ nas mediações. Foi o tempo de organização de sua reserva técnica; da Associação de Amigos (única sobrevivente entre tantas outras do mesmo período), inúmeros seminários, cursos, palestras, oficinas, saraus, teatro", direciona Cristina.
O POVO: O Museu do Ceará nasce em 1932, período de busca de novas formulações para a identidade nacional dentro da arte. De que maneira o desenvolvimento do equipamento caminha em paralelo com a construção identitária do Estado e, consequentemente, do País?
Cristina Holanda: As formulações sobre a identidade nacional, regional ou estadual aconteceram não apenas no âmbito da Arte, mas da História, da Antropologia, do Patrimônio e de outros campos das ciências humanas. Essas novas formulações atingiram muitos museus no Brasil.
No caso dos museus históricos, eles tiveram em muitos casos, como “modelos”, o Museu Paulista e o Museu Histórico Nacional, a partir de 1922, ano do centenário da independência do Brasil. Não confundir essa última instituição com o Museu Nacional fundado na mesma cidade, mais de um século antes, voltado para a chamada “história natural” e que infelizmente pegou fogo em 2018, quando ia comemorar seu bicentenário.
Os museus históricos voltaram-se para a celebração do passado, numa perspectiva do “culto à saudade”, proposto por Gustavo Barroso, contribuindo para a construção uma identidade nacional (e cearense) fundamentada na celebração das glórias do pretérito, vivenciadas pelos “grandes” vultos da aristocracia, do Exército, da Igreja Católica e do Estado. Em geral, homens brancos letrados. Como diria o próprio Gustavo Barroso, a “cultura popular” deveria estar nos museus ergológicos.
Essa perspectiva perdurou em várias fases do Museu do Ceará, até os anos 1990, para ser modificada tendo em vista a multiplicidade de sujeitos individuais e coletivos que construíram a história do país. Não é possível falar em “cultura brasileira” e “cearense” no singular. Não é possível tratar apenas da “cultura dos dominantes”, mas tampouco apenas da “cultura dos dominados”. Nos espaços museológicos é preciso pensar nessas culturas em circulação, no seu fazer cotidiano e dialético, em tramas de embates, acordos, conflitos e contradições que se engendram sem cessar.
OP: Um dos principais pontos de relevância do atual Museu do Ceará é o acervo. Como ele vem se modificando desde o primeiro projeto? Qual é o principal diferencial deste acervo em comparação aos demais museus do Estado?
Cristina: Embora desde os seus primórdios o Museu do Ceará tenha se firmado como um “museu de História”, a Instituição sempre apresentou um acervo muito diversificado, com exemplares de numismática, mobiliário, iconografia, indumentária, paleontologia, etnografia, arqueologia, entre outras tipologias de coleções e peças. Esse acervo bastante variado foi resultado, sobretudo, de inúmeras doações de particulares e instituições (de todo o Ceará e de outros Estados), com algumas compras pontuais realizadas pelo governo estadual.
A coleção arqueológica é a mais antiga dessa natureza no Estado, pois vem sendo formada desde a criação do Museu do Ceará. Tem, portanto, 90 anos. Conta com pouco mais de 2 mil peças, entre instrumentos líticos (polidos e lascados), artefatos malacológicos e cerâmicos, vindos de diferentes lugares do território e da coleção de grandes eruditos cearenses como Dias da Rocha, Pompeu Sobrinho e Carlos Studart Filho.
A chegada da Coleção Dias da Rocha (considerada a coleção científica mais antiga do Ceará), egressa no início dos anos 2000, trouxe para o Museu muitos itens de “história natural” (animais taxidermizados e em “via úmida” – alguns considerados em extinção na fauna local - moluscos, insetos etc), incluídas num museu que tradicionalmente voltou-se para uma história da sociedade. Não que isso seja um problema. Ao contrário, esse pode ser um novo rumo a ser tomado: o da interdisciplinaridade, tão propalada nos meios acadêmicos, mas tão pouco exercida na prática. Em parceria recente com a Universidade Estadual do Ceará, esse acervo está agora em Pacoti. Há peças que se mantém desde a Fundação do Museu até hoje, como o “Bode Ioiô”, o quadro “Fortaleza Liberta”, a “bandeira da Padaria Espiritual”, os “jacarés da casa do Barão de Studart”, os “objetos que se referem à Sedição de Pinto Madeira”, para citar apenas esses.
OP: Ao longo destes 90 anos de existência, o Museu passou por várias gestões. Há alguma (além da sua) que você acha válido destacar? Se sim, por quais motivos?
Cristina: Quando inaugurado, o então Museu Histórico do Ceará (MHC) ocupava duas salas do Arquivo Público do Estado, e ambos eram dirigidos pelo jurista Eusébio de Sousa. Essas instituições estavam atreladas ao Estado do Ceará, por meio da Secretaria dos Negócios do Interior e da Justiça. Em 1951, um acordo entre o governo estadual e o Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará permitiu que essa agremiação de caráter particular fosse transferida para o prédio onde estava o Arquivo Público (enviado na sequência para outro endereço) e passasse a gerenciar o Museu, que ganha nova nomenclatura: Museu Histórico e Antropológico do Ceará.
Com a criação da Secult (Secretaria Estadual da Cultura), a primeira do Brasil, por meio da Lei nº 8.541/66, o Museu Histórico e Antropológico do Ceará saiu da sede e da subordinação do Instituto do Ceará e passou novamente para a administração direta do Estado, onde se mantêm até hoje. Ao ser deslocado do prédio onde hoje está o MIS-CE e vir para o Palacete Senador Alencar, ao lado da Praça dos Leões, em 1990, ganhou nova denominação: Museu do Ceará.
Cada uma dessas três fases do Museu (vinculado ao Estado, depois ao Instituto do Ceará e a seguir retornando para o Estado, por meio da SECULT), possui três gestões que foram bem estudadas em dissertações e teses: Eusébio de Sousa, Raimundo Girão e Osmírio Barreto. Cada um com suas particularidades, tiveram em comum o uso de práticas expositivas que nos remetem à tradição dos antiquários; discursos em prol do nacionalismo; a folclorização da cultura popular; e a compreensão do Museu como instituição educativa voltada para a formação de patriotas.
Na década de 1990, considerando os novos debates acerca da estrutura e função social dos museus, em especial os de História, percebem-se mudanças acentuadas na configuração do Museu do Ceará, sobretudo com a criação das exposições de longa duração “Momento Ceará Terra da Luz ou Ceará Moleque: Que História é Essa? (1998-2008)”, “Memorial Frei Tito (2002)” e “Ceará: uma história no plural (2008)”; inúmeras exposições temporárias, inclusive fora do Ceará; e a fundação de um núcleo educativo fundamentado em premissas da História Social e do legado de Paulo Freire, com o desenvolvimento da metodologia do “objeto gerador” nas mediações. Foi o tempo de organização de sua reserva técnica; da Associação de Amigos (única sobrevivente entre tantas outras do mesmo período), inúmeros seminários, cursos, palestras, oficinas, saraus, teatro.
Impossível não lembrar do “Projeto Dorinha: museu e educação”, que conquistou menção honrosa no Prêmio Darcy Ribeiro do Ibram e da linha editorial do Museu (Coleção Outras Histórias, Cadernos Paulo Freire, Coleção Outras Historinhas), laureada com o Prêmio Rodrigo Melo Franco do IPHAN (categoria divulgação do patrimônio cultural brasileiro), que publicou mais de 100 títulos, entre pesquisas inéditas (especialmente sobre o acervo do museu, história do Ceará e museologia), edições fac-similares, catálogos do Museu e até livros infantis.
OP: Você trabalhou por 11 anos no Museu, sendo diretora entre 2008 e 2013. Como e quando você se aproxima do equipamento? Como você avalia o contexto cultural do Estado durante a sua gestão? Quais pontos você quis fortalecer dentro do Museu nestes anos como diretora?
Cristina: Comecei minha aproximação como visitante individual e depois como professora do Projeto Novo Vestibular da UFC, em fins dos anos 1990, levando meus alunos ao Museu logo após a inauguração da exposição Ceará Terra da Luz. Já no Mestrado, em razão da minha dissertação sobre o Museu, fui convidada pelo meu orientador, Prof. Régis Lopes, que dirigia o Museu à época, para coordenar a pesquisa em jornais intitulada “Museu do Ceará: 70 anos”. A seguir, ele me fez o convite para atuar como professora de História do Núcleo Educativo e depois como Gerente do Sistema Estadual de Museus, que esteve sediado no Museu (hoje está na COPAM SECULT).
No início de sua gestão, o Secretário Auto Filho me convidou para assumir o Sobrado Dr. José Lourenço, equipamento então recém-inaugurado. Declinei, mas meses depois fui chamada para ficar novamente à frente do Sistema Estadual de Museus. Com o pedido de saída do Prof. Régis Lopes, acabei acumulando o Sistema, o Museu do Ceará e o Museu Sacro de Aquiraz (que desde a direção do Régis Lopes está atrelado ao Museu do Ceará).
Minha gestão foi no contexto dos governos Lula e Dilma, que criaram e fortaleceram no Brasil uma política nacional para o setor museológico, com a criação da primeira lei federal (Estatuto dos Museus) e o Ibram como a primeira autarquia federal para a área. Fui membro do Conselho Brasileiro de Museus. Foi uma fase de oferta de muitos editais, cursos de capacitação para os trabalhadores de museus, assembleias estaduais e nacionais para levar as demandas do setor para a disputa no âmbito do Plano e da Lei Nacional de Cultura. A Secult Ceará sempre esteve alinhada às ações e foi a primeira Secretaria do Nordeste a criar um Sistema Estadual de Museus. O Museu do Ceará esteve à frente de todos esses debates no Estado e realizou dois Fóruns Estaduais congregando todos os museus cearenses, públicos e privados.
Mas trabalhamos também com uma preocupação de documentar e publicizar o acervo em parceria com o Banco Safra, que nos escolheu em 2012 para compor a sua série de catálogos intitulada Museus Brasileiros, com mais de 200 páginas ilustradas com fotografias profissionais, que levou a divulgação do Museu para todos os Estados, por ser uma linha editorial de longa trajetória e de grande capilaridade no país. E, pra finalizar, lembro da grande jurema que promovemos ao fim de um seminário sobre questões étnicas no Ceará, na porta central daquele prédio imponente, que já foi a casa do poder legislativo, recebendo um terreiro que certamente noutros tempos teve suas práticas religiosas perseguidas pelos poderes públicos. Foi um ato simbólico fruto de décadas de resistência do movimento dos terreiros.
OP: Além da sua atuação profissional no equipamento, você também desenvolveu projetos acadêmicos sobre a instituição. O que instiga sua pesquisa sobre o Museu? Quais pontos você acha que deveriam ser mais explorados?
Cristina: Terminei o Mestrado, publiquei minha dissertação que cobre o período de 1921-1942, mas nunca deixei de pesquisar e publicar artigos sobre o acervo do Museu do Ceará, pensando esse acervo noutros períodos históricos. O que mais me fascina estudando os objetos musealizados, tanto do Museu do Ceará quanto de outras instituições, é perceber que eles nunca possuíram um único “valor de uso” ou “valor simbólico”, seja antes, durante ou após ingressarem nos circuitos dos museus. Eles possibilitam múltiplas possibilidades de discursos e de ações, infinitamente, no tempo. É preciso sempre estar atento sobre quem os produz e, de que forma, quem acaba sendo afetado nessa circulação dos artefatos e das ideias que eles engendram, resultando sempre em relações de saber e de poder, memória e esquecimentos.
Por isso, os acervos precisam de pesquisa acadêmica constante, para que saibamos as suas trajetórias, bem como desenvolver atividades educativas (material didático, oficinas, publicações) que possibilitem aos visitantes perceber essas nuances. Isso é mais importante do que apenas criar e manter exposições onde os objetos parecem apenas ilustram a História. Objetos são documentos históricos e, como tal, precisa existir reflexão e questionamento sobre eles. Quem os fez? Como fez? Quais seus usos e desusos? Quando? Porquê? Pra quem?
O Museu do Ceará precisa retomar e publicar as pesquisas sobre a cultura material que guarda, explicitar suas escolhas sobre o que é selecionado e o que é descartado, o que fica em reserva técnica e o que irá para a exposição. Precisa ouvir a sociedade civil e especialistas, tornando-os partícipes desses processos por meio de consultas públicas, seminários, debates, curadorias coletivas etc.
OP: Como você avalia a atuação do Museu entre o seu último ano de gestão, 2013, e o primeiro ano da reforma, 2019?
Cristina: Acho que o Museu foi muito penalizado em razão dessa fase turbulenta que o País viveu com os últimos desgovernos federais, que arrefeceu políticas públicas em âmbito nacional para o patrimônio e os museus especificamente.
OP: Como o período de pausa das atividades, que agora se estende desde 2019 a 2023, pode afetar as funções educacionais e sociais do Museu? O que pode ser feito para diminuir estas consequências?
Cristina: Passamos por uma pandemia que afetou nossas vidas, de forma individual e coletiva, bem como o funcionamento das instituições. Com os museus não foi diferente. Os gestores e trabalhadores dos museus tiveram que se reinventar para mostrar que embora fechados ao público não estavam parados. No caso do Museu do Ceará, essa foi a fase de recebimento de novos servidores por meio do concurso público realizado pela SECULT. Aliás, esse concurso possibilitou ao Museu ter museólogos e historiadores no seu quadro fixo, a maioria com titulação de Mestre e Doutor, vindos de diferentes lugares do Ceará e do Brasil. Foi um período em que essa nova equipe teve a oportunidade de estudar e debater a história do Museu e de seu acervo, cuja bibliografia existente já é considerável, para conseguir planejar o futuro. Eu mesma fui chamada para conversar por meio virtual com os técnicos, além de outros pesquisadores.
A equipe aprendeu a lidar com o público por meio das redes sociais, canal até então pouco usado para promover atividades do Museu. E nas horas de retorno ao convívio social fizeram boas parcerias com outros equipamentos culturais para fazer circular alguns objetos ícones do acervo, como o Bode Ioiô, ou estabelecer espaços para trocar de experiências, como farão agora com a visita técnica aos Pitaguary, na Semana Nacional de Museus deste ano.
Conseguiram ainda, por meio de parcerias, transferir o acervo do Palacete Senador Alencar para que o prédio possa ser plenamente restaurado. O acervo está num excelente prédio na Praça do Ferreira, coração da cidade, ao lado da SECULT, que pode abrigar não só atividades técnicas de salvaguarda, mas também de divulgação do acervo como exposições temáticas, oficinas, palestras e cursos. O mais difícil ele tem hoje: uma equipe técnica que além de apaixonada por museus, é muito qualificada. Agora espera-se o divulgado investimento financeiro do governo estadual para que as ideias ganhem corpo.
OP: Em um ano que marca os 90 anos de funcionamento do Museu, o que você
Cristina: Desejo ver o Palacete Senador Alencar restaurado e somente com exposições de longa duração, enquanto o anexo Bode Ioiô (prédio na Praça do Ferreira) seja parte integrante e permanente do Museu, abrigando toda a área técnica-administrativa e exposições de curta duração. O prédio na Praça dos Leões já não conseguia mais comportar dignamente o acervo e seus processos de salvaguarda, suas múltiplas atividades de comunicação de outrora, nem seu público e funcionários. O anexo Bode Ioiô é perfeito pois é amplo, não possui problemas estruturais, está numa excelente localização estratégica próxima do Palacete, da SECULT e dos outros equipamentos culturais do Estado, além de ser de fácil acesso do público por meio da convergência dos transportes públicos que migram para o centro.
Desejo ver o acervo do Museu do Ceará ampliado, incorporando o antigo, mas também os objetos contemporâneos, que possibilitem reflexões sobre diversidade de culturas, gêneros, credos e propostas de sociedade. E, para isso, desejo que esse acervo tenha verbas não somente para pesquisas que visem a montagem de exposições, mas para um programa permanente, pois acredito que museus reflexivos com acervos da cultura material precisam de pesquisa constante.
significado determinado pelo Estatuto Brasileiro de Museus (Ibram). São espaços que expõem recortes históricos e sociais por meio de falas, imagens, sons.
A palavra "museu" - de origem grega - faz referência ao "templo das musas" e era utilizada para designar o local destinado ao estudo das artes e das ciências. Já durante o Renascimento, surgiram os Gabinetes de Curiosidades, compostos por coleções formadas por estudiosos de itens raros. Em território brasileiro, as experiências museológicas evoluíram de um caráter inicialmente "enciclopédico" para agregar diferentes frentes.
Esta sucessão de diretrizes foram decisivas para que a instituição firmasse o compromisso de conscientização social por meio da educação, com projeção de múltiplos projetos educacionais firmada por mandatos como o do professor Régis Lopes, que aconteceu entre 2000 e 2008. Foi neste período que a professora de Teoria e História da Arte da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, Carolina Ruoso, começou a integrar o Laboratório de Museologia do Museu do Ceará, à época coordenado pelo docente.
“O Régis trazia todo o discurso do Bezerra de Menezes, da historiografia interessada na cultura material, do colecionismo, das exposições. Era realmente um laboratório de investigação, pesquisa e experimentação", retoma. A nova fase sistematizada pelo professor utilizou como base os ensinamentos do educador Paulo Freire, instigando a criação de um espaço propício para debates e conhecimento crítico. "Eu afirmo com toda a certeza que foi ali, no Laboratório de Museologia do Museu do Ceará, que nasceram as metodologias participativas do inventário participativo e da curadoria participativa”.
A professora afirma que o caminho foi importante para processos de musealização com gestão participativa e justifica o nascimento de projetos dessa natureza a partir da aliança entre instituições culturais, museus e universidades. "(O diálogo) Precisa ser permanente, alimentado, construído para que os museus possam trazer essa dimensão experimental e atualizada. Também é necessário a presença da pesquisa contemporânea atualizada junto com o próprio museu e os movimentos sociais, isso enriquece o processo de musealização", argumenta.
A união desta gama de organizações foram tão determinantes na trajetória de Carolina que o Museu do Ceará tornou-se seu objeto de estudo na tese "Museu Histórico e Antropológico do Ceará (1971 - 1990): Uma história do trabalho com linguagem poética das coisas: objetos, diálogos e sonhos nos jogos de uma arena política" (2008)", posteriormente publicada em formato de livro pela Coleção Outras Histórias. "Ali eu faço uma relação entre o papel do Museu, partindo do pressuposto do papel da musealização, e do papel da educação no contexto da ditadura civil militar", explica. O estudo foi feito com base no período de 1971 e 1990, utilizando o uso das fotografias de vista de exposição, feitas pelo então diretor Osmírio Barreto.
"O Museu do Ceará tem uma importância estrutural para as políticas públicas. Leva o nome do Estado e tem um viés institucional muito forte, está alinhado ao discurso da Secretaria da Cultura e do governo do Estado. Tem uma força institucional de orientação de uma política de museus no estado do Ceará e de uma visão histórica que o próprio Ceará tem de si", conceitua. Sendo assim, Carolina reforça que a instituição deveria "irradiar reverberações e ressonâncias" que fomentem a construção de museus e políticas de museus em Fortaleza e demais municípios cearenses.
"O que faz deste museu um grande museu de impacto local, nacional ou internacional não é o tamanho do seu prédio, da sua coleção, mas a capacidade que essa instituição tem de articular os trabalhos da memória e da musealização com o território e os agentes culturais. Quanto mais movimentos de agentes históricos nos territórios, quanto mais eu fortaleço os pontos de memórias nos territórios - entendendo as singularidades -, mais eu produzo diálogo”, exemplifica.
A acadêmica realça que estamos vivendo um "momento de construção de justiça epistêmica", no qual os processos históricos “dizem muito” sobre a articulação da vida cotidiana e a compreensão de sujeitos que atuam e transformam o mundo. Por isso, é “fundamental” um olhar para a experiência histórica do Estado.
“O museu estar fechado é uma orelha fechada, um lugar de escuta trancado. Precisamos desse museu aberto, com processos de escuta ativos também. Que a gente possa fazer deste um lugar que apresente múltiplas vozes, que é um fundamental. A gente precisa construir justiça social, justiça cultural, valorizando os saberes dos povos indígenas, dos mestres da Cultura, dos trabalhadores e trabalhadoras da terra, das cidades, das fábricas, para que essas histórias sejam contadas, recontadas e reescritas, principalmente."
“O museu estar fechado é uma orelha fechada, um lugar de escuta trancado. Precisamos desse museu aberto, com processos de escuta ativos também", Carolina Ruoso, professora da Escola de Belas Artes da UFMG.
A atuação plena do equipamento, entretanto, estava prejudicada há alguns anos. Matéria do O POVO de 15 de setembro de 2013 mostra que o local pedia “socorro”. Foram registradas janelas sujas, teto com infiltrações, problemas na central de ar-condicionado e mofo, todos problemas que colocavam em risco a durabilidade do acervo e perduraram até 2019. Para que o equipamento continue ativo nos próximos anos, é necessário direcionar atenção para a captação de recursos, promoção de projetos e preservação dos materiais.
Esse é o papel da Associação de Amigos do Museu do Ceará, criada em 28 de agosto de 1996. A organização sem fins lucrativos destina esforços para promover a história do Ceará, a conservação do acervo e das pesquisas museológicas. "As ações da Associação estão relacionadas a articulação da comunicação das atividades que o museu executa. Mas, pela inviabilidade de abrir ao público no momento, a associação está focada em participar de editais para promover esse acervo, criar exposições para fora do museu, feitas literárias, concorrer a editais", informa o secretário Naudiney Gonçalves.
A organização se mantém com recursos de editais, a exemplo da Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar nº 195/2022), que vai contemplar algumas produções culturais. Segundo Gonçalves, a maior preocupação neste momento é lutar para que o Museu possa ter uma dotação orçamentária para angariar os próprios recursos. "Estamos com duas grandes frentes de batalha: conseguir a abertura do Palacete e que também tenha a abertura do Anexo do Bode Ioiô para o público. É uma grande demanda porque você precisa dar acesso aos pesquisadores, ao público geral, para que possamos cumprir com essa missão de envolver a sociedade e pensar a história", complementa.
A vigente reforma alcança, também, a dimensão conceitual. A diretora da instituição, Raquel Caminha, acentua os dois principais desafios desde quando tomou o posto no ano de 2021: realizar a transferência do acervo e setor técnico para um novo espaço, processo que começou a ser realizado em setembro de 2022, e reconceituar o Museu do Ceará. "Nessa janela entre 2022 e 2023, o museu completa 90 anos de existência, é uma instituição de referência também. Reconceituar o Museu é repensar ele a partir de novas demandas, que estão mais emergentes na atualidade, especialmente aquelas ligadas à representatividade, diversidade de grupos sociais que sempre são vistos de maneira muito limitada dentro do acervo ou que não se veem representados ou convidados a dialogar com a instituição", considera.
Para a gestora, o restauro deve ser uma oportunidade para o museu se reinventar também em aspectos atitudinais, além das mudanças no prédio. Ela conta que o espaço recebeu visitas recentes do setor de modernização dos equipamentos da Secult - CE, tanto no Palacete, quanto no Anexo, para elaborar equipamentos audiovisuais modernos para serem adquiridos. "O Museu tem trabalhado ainda com atendimento ao público, principalmente aos pesquisadores, e tem realizado algumas programações on-line e em parceria. Estamos tentando manter uma atividade ainda para o público externo, mas estamos nos concentrando para organizar o acervo a partir de novas prerrogativas da museologia, é um trabalho minucioso. Nós estamos relendo a documentação que é necessária para a existência do museu, como o Plano Museológico, estamos fazendo o recomeço do museu".
O atual contexto do País, de acordo com a historiadora, é estimulador, após o período de pandemia que afetou toda a cadeia cultural e o desestímulo à cultura presente no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). "Nesse ano de 2023, com o retorno de um governo que tem a democracia como seu principal valor com muitos bons olhos. O retorno do Ministério da Cultura (Minc) e essas novas políticas que estão sendo divulgadas, nós vemos como uma grande oportunidade para a retomada de financiamentos a instituições museológicas. A Secult recebeu recentemente a presidência do Iphan, que dialogou conosco e vem pensando novas atividades e estratégias", conta.
Todo o planejamento, portanto, está sendo calculado pela atual gestão de expansão do Museu. Em primeiro ponto, com a abertura do Anexo Bode Ioiô (prevista para o segundo semestre de 2023) para a sociedade civil, o diálogo e parceria com os demais equipamentos culturais inaugurados desde 2019 - como a Estação das Artes e a Pinacoteca do Ceará -, e o aumento do acervo com itens de outros museus e parcerias com outras instituições de patrimônio e memória. Caso assim seja, a premissa - e esperança - é de que o Museu do Ceará possa voltar a ser espaço de fruição e expandir a potência cultural do Estado.
Referências bibliográficas e documentos utilizados para a construção da reportagem
Série especial traz um Raio X de espaços culturais e mapeia a situação de equipamentos do Estado