Foi uma noite de festa. Em 28 de abril de 1999, a antiga área portuária da Praia de Iracema recebia um evento marcante. O governador da época e outras figuras políticas se faziam presentes. Depois de oito meses em funcionamento parcial e seis anos após a sua idealização, estava na hora de estabelecer a inauguração completa do complexo de 14,5 mil metros quadrados.
"Agora, temos um espaço democrático com toda a infraestrutura para inserir o Estado dentro da programação nacional e internacional de cultura", disse o então secretário Nilton Almeida à época. Vinte e quatro anos depois, o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC) segue sob os holofotes na região central de Fortaleza como um equipamento em constante debate - trajetória que será analisada nesta
“Fruto de uma decisão ambiciosa do governo Ciro Gomes encampada por Tasso Jereissati em seu segundo mandato”, como afirmou no O POVO em 2010 a doutora em Planejamento Urbano Linda Gondim, o Dragão do Mar surgiu com diversos objetivos enquanto um novo marco da Cultura no Ceará.
Uma das metas era ser um espaço destinado ao encontro das pessoas, ao fomento e à difusão da arte e da cultura. Havia também o desejo de contribuir para “recriar o espaço público de Fortaleza, contrabalançando a segregação social e espacial” da Cidade, como apontou Gondim, que também é socióloga.
Era de interesse de seus idealizadores que o novo equipamento acelerasse a recuperação do seu entorno, então ocupado por construções do início do século XX. O CDMAC também serviria como uma das portas de entrada do Ceará para o mundo a partir da união entre turismo, lazer e cultura.
Mesmo com pouco tempo de vida, o fato é que o Dragão do Mar se tornou referência enquanto espaço de promoção da cultura no Estado. Como na acepção de seu significado, o complexo - também por conta disso - historicamente abarcou demandas das mais diversas, alcançando sua estrutura, seu entorno, o público e os artistas que o visitam e as comunidades com as quais se relaciona.
Pandemia, questionamentos sobre gestões, problemas com seu entorno, fechamento e reabertura de espaços e tantos outros acontecimentos marcam a trajetória do Dragão do Mar, que continua na ativa como palco de resistência e de mobilização por melhorias. O Dragão segue acordado para ser estudado e compreendido.
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Equipamento da Secretaria da Cultura do Ceará (Secult-CE), o
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Aberto de terça-feira a domingo, o
O Dragão do Mar já foi propulsor de artistas que se destacaram posteriormente, como Don L e Selvagens À Procura de Lei, bem como já recebeu atrações nacionais em festivais como a Maloca Dragão. Foi cenário de histórias marcantes, como quando uma peça artística foi roubada de suas instalações e quando um motorista foi preso ao subir uma das rampas com seu carro.
Foi casa para eventos históricos, como o velório de Belchior em 2017. Foi sujeito a intervenções nas ruas do seu entorno e em sua própria estrutura. Foi vítima do esvaziamento causado pela pandemia e de percepções de esvaziamento em si. Em 24 anos de história, o Dragão segue sendo revisitado, e hoje, sob nova gestão, tenta se aproximar ainda mais do público a partir do diálogo e da transparência.
Quando a gestora cultural e pesquisadora Helena Barbosa entrou pela primeira vez no Dragão do Mar, ainda na adolescência, não sabia o que era o complexo. “Eu tinha 14 anos, era moradora do Castelo Encantado, a gente descia para tirar foto na Ponte Metálica e eu vi o espelho d’água do Dragão do Mar. Lá, eu me sentei para tirar uma foto, mas eu não fazia ideia do que era e também tinha muito medo de estar naquele lugar. Por isso que esse sentimento é muito importante para mim, porque não quero que ninguém mais se sinta assim”, relata.
O que se iniciou como uma relação distanciada virou uma presença constante na trajetória do equipamento cultural. Em 2017, foi gerente de Ação Cultural no espaço e, hoje, Helena Barbosa é superintendente do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. Desde o início de sua gestão, ela tinha desejos claros para o complexo. Um deles era o de torná-lo o mais acolhedor possível para todas as populações que quisessem frequentá-lo.
Afinal, não há como negar: o Dragão do Mar se tornou “referência” cultural no Estado, sendo seguido posteriormente por novos equipamentos, como a Estação das Artes. Em sua avaliação, durante muito tempo ele centralizou metodologias e modelos, e acabou servindo para ditar tendências.
Como afirma, “não há futuro sem passado”: “O Dragão do Mar é, de fato, ancestral. A ancestralidade é isso: ela é um espelho do futuro. Continuamos produzindo essas metodologias, inovando esses dispositivos e compartilhando tudo isso com quem está em cena, com vários gestores da rede”.
Após sete meses de gestão no CDMAC, ela pondera que houve muitos avanços no período em meio a um processo de rupturas de comportamentos, reeducação e “muito diálogo para que isso não fosse feito de uma forma atravessada e sem ser coletiva”.
Em julho, a superintendente recebeu O POVO para uma entrevista sobre balanço de gestão e avaliações sobre as necessidades do centro cultural. Helena Barbosa ressalta que, no geral, está satisfeita com o trabalho desempenhado e relata retornos positivos da comunidade sobre as ações feitas.
O CDMAC realiza convocatória com ações em Artes Visuais, Circo, Dança, Música, Performance, Teatro e Contação de Histórias para apresentações entre 7/2023 a 3/2024.
31% são oriundos do Interior, 47% se identificam como LGBTQIAP+, 50% se autodeclaram pessoas negras ou pardas, 4% são pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida, 2% são indígenas e 12% são pessoas pertencentes a povos de terreiro ou comunidades rurais.
“Acho que nossa equipe conseguiu, nesse momento, ativar a autoestima não só do equipamento, mas das pessoas. Eu consigo encontrar uma equipe muito instigada e isso dá muito ânimo para continuar”, pondera. A análise é feita diante de construções de relacionamento em meio a demandas “com articulações” muito distintas, incluindo desafios estruturais.
Para a gestora, “autoestima”, por sinal, é uma palavra muito importante em seu discurso. Desde que entrou, quis colocar em prática um “plano de recuperação de autoestima” do empreendimento, o que envolve cuidados com o próprio prédio e a interação com a comunidade. “Quando o Dragão do Mar recupera a sua autoestima, todo o entorno também recupera”, garante.
Na parte de desafios estruturais está a necessidade de intervenções físicas e um “acúmulo de cuidado para fazer”. Nos últimos meses, foram feitos serviços de recuperação de obras artísticas e reabertura de espaços como o Anfiteatro Sérgio Motta (limpeza e pintura) e a sala 1 do Cinema do Dragão (com aquisição de novos equipamentos).
Outro procedimento foi a reabertura da rampa de acesso da Praça Almirante Saldanha para o piso superior do Dragão, com ações de limpeza, pintura, recuperação da iluminação e novo posto de vigilância. A Praça Verde também foi afetada por melhorias, com obras de pintura, recuperação de piso e iluminação.
Tais serviços ajudam, na avaliação de Helena Barbosa, a melhorar a relação do centro cultural com os seus visitantes. “Muitos pensam que é ‘só pintar’, mas isso traz um impacto tão grande para quem está circulando, para quem trabalha e para a Cidade, sabe? Para mim, era primordial. Eu falei que não ia abrir a Praça Verde, para trazer de volta o programa infantil Dragão Encantado, sem que houvesse um aspecto de cuidado”, exemplifica.
Inevitavelmente, realizar ações desse tipo demandam um aspecto fundamental: orçamento. No primeiro semestre de 2023, foram investidos R$ 199.414,37 na aquisição de máquinas e equipamentos, enquanto que serviços de manutenção, restauros e pinturas somaram R$ 364.964,53. Assim, foram utilizados quase R$ 565 mil para reparos e melhorias.
Alguns dos espaços contemplados foram o Teatro Dragão do Mar e o Cinema do Dragão. Em julho, o Planetário Rubens de Azevedo passou por manutenção, com serviços de limpeza, pintura, impermeabilização e recuperação da iluminação externa. As atividades foram suspensas temporariamente e retomadas em 3 de agosto.
Esses movimentos ocorreram na toada de readequações de orçamento vividas pelo CDMAC. A superintendente afirma ter tomado decisões após análise com sua equipe sobre a estrutura dos setores do centro, envolvendo organograma e fluxograma. Foram feitas reuniões com os assessores dos núcleos executivos do complexo para ver o que estava rendendo e o que não estava diante das demandas atuais.
Por exemplo, houve corte no corpo da coordenadoria financeira dos museus. Segundo Helena, antes eram duas coordenadoras financeiras, mas havia poucas metas e ações. Assim, foi decidido ficar apenas com uma coordenadora e aumentar seu salário. As decisões foram tomadas estrategicamente.
“Fora isso, estamos correndo atrás de parcerias, e aí é possível ativar as ações finalísticas - que são as que mais conseguem colocar investimento sem ser por contrato de gestão. Então, como fechar com parceiros de festivais, de outras casas, com parceiros privados que estão a fim de investir no equipamento? Temos estudado isso”, indica.
Nessa direção, foi atualizado também o manual de pautas do Dragão do Mar, com um referencial de valores para uso dos espaços do centro. Assim, a ideia é fazer as pessoas “entenderem, de fato, o tamanho do Dragão do Mar e cobrar por isso” de forma justa para o equipamento.
“Antes, a entrega que deixava para o Dragão, fosse de capital financeiro ou simbólico, era muito pouca para o que o Dragão é. Há um documento norteador que tem como referência outros equipamentos do tamanho do Dragão ou até menores. Então, por que eu não posso falar a partir desse ponto?”, questiona.
Helena contextualiza conversas com produtores e artistas para esse novo modelo: “Foi um momento bastante cansativo, porque quando você quebra uma cultura de comportamento, você vira ‘a chata’. Mas, ao mesmo tempo, estamos muito bem embasados com um documento muito bem feito. Acabou fazendo com que nós conseguíssemos ter mais receita própria”.
“Estamos em um caminho de sustentabilidade, mas é claro que precisamos avançar muito. Hoje, dependemos totalmente do contrato de gestão. Seria ótimo a qualificação desse orçamento, a Secretaria da Cultura está brigando por isso, mas estamos vendo também como avançar em outras contas”, pontua.
Para a superintendente, é fundamental a prática do “diálogo” para compreender todas as demandas e chegar a um resultado satisfatório. A transparência também é um modelo adotado no relacionamento com diferentes setores, incluindo o da classe artística. “Briga” recorrente ao longo dos anos, o calendário de pagamento de editais para artistas cearenses tem sido um desafio para os gestores do Dragão.
Questionada sobre sua análise a respeito da evolução desse cenário nos últimos anos, Helena Barbosa aponta para a necessidade de cumprir fluxos e prazos de ambas as partes, em processos que também têm sido conversados com os artistas para a compreensão do tempo que levam essas etapas.
Ela cita também como é possível haver uma reeducação da classe artística no aspecto de formalização de contratos, como a entrega de documentos no prazo estabelecido. Da mesma forma, vem o movimento inverso: é necessário haver cobrança caso o pagamento de cachê não tenha ocorrido no tempo firmado.
“Eu nunca neguei a burocracia, porque não consigo viver sem ela dentro dessa estrutura. Eu quero fazer todo mundo entender a importância disso, ao mesmo tempo em que sabemos da importância da aceleração da poética. Como é que eu equilibro as duas coisas? Isso é discutido com a minha equipe”, reflete.
A partir da programação e das intervenções físicas no CDMAC, o centro tem buscado se aproximar mais do público e dos artistas. Helena Barbosa afirma que o relacionamento com a classe artística tem sido muito bom e ela sente que a cena está se ampliando.
“Acho que as pessoas conseguem, hoje, estabelecer um processo de identificação maior com o Dragão. Há muitas pessoas que nunca tinham vindo aqui antes, mas se eu coloco a galera da cena (artística) no palco, vem a turma toda para cá, e aí existe um movimento de acolher todo mundo”, opina.
“Eu estou muito satisfeita, porque estou vendo (no Dragão) uma cena que está se movimentando, que se permitiu ser mais porosa e está mais segura. Ela vem com a gente em um papo muito reto, a gente tem muito essa metodologia de dizer ‘Eu consigo até aqui’. As pessoas se sentem tranquilas para construir com a gente, porque é muito transparente”, afirma.
A programação do centro cultural pode ser formada por diferentes maneiras. Há as demandas de pauta, que chegam de artistas diversos, e as ações previstas em contrato de gestão, que podem ser tanto por curadoria quanto por credenciamento, como no Cena Ocupa.
Em 2012, a Secult investiu mais de R$ 9 milhões na reforma do CDMAC. As obras incluíram serviços como pinturas de paredes e cobertas, reforma dos banheiros, adequações de acessibilidade, recuperação de pisos, iluminação, aquisição de geradores e serviços de impermeabilização.
Entre 2020 e 2022 foi realizada a última grande reforma no equipamento. Os trabalhos incluíram pintura, recuperação das estruturas de metal (coberta e passarelas), reparos internos e recuperação da impermeabilização do corredor de circulação. O investimento foi de mais de R$ 4,4 milhões.
Durante entrevista ao O POVO, Helena Barbosa destacou o esforço da atual equipe à frente do CDMAC em recuperar a “autoestima” do equipamento cultural. As ações envolvem desde cuidados com as instalações físicas ao relacionamento com a comunidade que frequenta o espaço.
Um dos pilares da gestão de Helena Barbosa é a manutenção de diálogo com artistas e público. Ela percebe uma ampliação da cena que ocupa o Dragão do Mar e reforça o interesse em se aproximar de pessoas que não costumavam ter acesso ao equipamento cultural.
As ações culturais no Dragão ajudam a ocupar seus espaços. Entretanto, mesmo que tenha uma programação pulsante, há um contraste com o sentimento de “esvaziamento” da área ao seu redor. Como destaca Helena Barbosa, “o Dragão é um equipamento que se confunde muito com a rua”.
Com isso em mente, o CDMAC inaugurou o programa
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De fato, o Dragão é um equipamento que se confunde com as áreas circunvizinhas. Não dá, portanto, para falar do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura sem mencionar um lado fundamental: o seu entorno.
O próximo episódio desta reportagem especial abordará como o Dragão do Mar se relaciona com o seu entorno - essa "eterna entidade" -, com destaque para a comunidade Poço da Draga.
Pioneirismo, ousadia, compromisso, farol de muitos caminhos. O Instituto Dragão do Mar (IDM) e o Centro Dragão do Mar compartilham esses e valores. Hoje, mais de 20 anos depois, os dois coexistem, dividindo o compromisso em oportunizar a democratização do acesso à cultura, mas trilhando caminhos próprios, embora construídos a partir de estreita parceria, sempre sintonizados. Não existe IDM sem falar de Dragão e não existe Dragão sem falar de IDM - e isso é bom, indo além dos contratos de gestão. É memória, trajetória, construção, legado nesta parceria com o Governo do Ceará, através da Secretaria da Cultura.
Há 25 anos, o Instituto Dragão do Mar foi fundado como a primeira Organização Social de Cultura do Brasil e, desde então, tem gerido o primeiro dos equipamentos que hoje se soma a mais 15 sob seus cuidados. Há 24 anos, o Centro Dragão do Mar chegava para abrir outros caminhos e liderar tantos avanços e modelos de gestão na arte e cultura no Ceará e no Brasil. Ambos nascem sob o signo de Chico da Matilde, um símbolo de luta, resistência e imortalidade: não poderia ser muito diferente.
Cumplicidade. O IDM avança na inovação de sua gestão e no aperfeiçoamento de tecnologias em busca do primor em suas entregas,e essa busca do primor nas entregas, consequentemente, contribui para o avanço do Dragão. O Dragão, em paralelo, segue resistente e ancestral, em uma gestão pautada na transparência, coragem e assertividade, que estuda a memória para alçar voos ousados no futuro, construindo um presente coletivo, diverso, que acolhe o seu entorno e abraça seu público.
Neste ano, reabriu espaços, iniciou reparos, lançou novos programas, trouxe novos núcleos para sua equipe, confirmando sua característica constante de mutação, reinvenção, adaptação - sem perder sua essência. Seja estando na diretoria da OS que o gere em parceria com a Secult Ceará, seja como profissional da cultura, seja como público, é inegável a minha relação de afeto e intimidade com o Dragão do Mar. Ele faz parte do nosso imaginário, é palco de muitas lembranças, é peça estratégica no motor da economia da cultura e das políticas públicas e, certamente, ainda será cenário de muitas memórias para nós e novas gerações. É Dragão, o nosso Dragão, e daqui mais 24 anos, será sempre Dragão do Mar.
*Rachel Gadelha é diretora-presidente do Instituto Dragão do Mar
Série especial traz um Raio X de espaços culturais e mapeia a situação de equipamentos do Estado