Ao falar sobre a Serra da Capivara, é impossível fugir da polêmica que colocou o nome do local na boca do mundo: afinal, os primeiros americanos chegaram pela América do Norte ou pela América do Sul?
Até porque todos conhecemos a história contada na escola. Com o congelamento do estreito de Bering, grupos humanos asiáticos atravessaram para a América do Norte, finalmente ocupando o continente americano há 12 mil anos. Por isso, os registros norte-americanos de presença humana seriam os mais antigos, enquanto os sul-americanos teriam datações mais recentes.
No entanto, a descoberta das centenas de sítios arqueológicos na Serra da Capivara foram capazes de inverter essa narrativa. Com datações de 18 mil até 100 mil anos atrás, o Piauí virou o palco da primeira ocupação americana. Nesse caso, a hipótese é de que os humanos teriam vindo da África pelo Atlântico, em uma época que a proximidade dos continentes era maior e o oceano estava 140 metros mais baixo — propiciando o surgimento de ilhas no meio do caminho e a navegação por
Presença de fogueiras feitas por humanos, com restos de carvão e madeira fósseis.
Nelas, foram encontrados vermes de amarelão, que vêm da África e morrem no frio.
Com o nível do oceano mais baixo, as correntes marítimas favoreciam a cabotagem.
“Tudo isso criou uma discussão muito grande, principalmente porque os colegas norte-americanos — os europeus aceitaram isso facilmente — defendem a teoria de que o homem só chegou à América por volta de 18 mil anos atrás, que entrou por Bering, passou pela América do Norte, depois pela América Central e só chegou à América do Sul muito tardiamente”, comentou a arqueóloga Niède Guidon em entrevista à agência de notícias da Câmara Legislativa, em junho de 2007.
Depois de muito debate, formalizou-se em dezembro de 2006 que, no mínimo, o homem já ocupava o Piauí há 60 mil anos. Atualmente, o assunto nem é mais polêmico, apenas uma aceitação científica. Mas enquanto pesquisava sobre o assunto e ouvia os guias explicando detalhes, não podia deixar de ficar curiosa do porquê de tanta resistência em ao menos considerar a possibilidade da ocupação americana pelos lados de cá. Foi como cheguei no ponto do colonialismo.
Eu sei, talvez seja um pouco impreciso usar essa história como gancho para discutir colonialismo científico na Arqueologia. Mas será tanto assim? Afinal, é bem verdade que existem muitas disputas sobre o passado, com todos desejando dizer que foram os primeiros.
Aliás, a própria distinção entre pré-história e história tem seu quê problemático, pois considera que as vivências indígenas até o contato com o colonizador são uma coisa outra, sem criatividade ou tecnologia, e descolada das dinâmicas pós-expansão colonial, como explica o arqueólogo Stephen W. Silliman no artigo Colonialismo na Arqueologia Histórica: uma revisão de problemas e perspectivas.
Existe muito interesse em criar narrativas condizentes com os ideais dos grupos dominantes. No Brasil, por exemplo, arqueologia e antropologia foram duas áreas de pesquisa (não necessariamente chamadas como tal) trazidas “à sombra de viajantes, naturalistas, botânicos, geólogos e paleontólogos estrangeiros, enviados por seus países para enriquecimento de coleções de museus europeus, e também de etnólogos, estudiosos de sociedades primitivas remanescentes”, descreve a arqueóloga Gabriela Martin no livro Pré-história do Nordeste do Brasil.
O arqueólogo Igor Pedroza, doutorando na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), destaca do livro de Gabriela Martin um caso que evidencia outro aspecto do colonialismo antigo: aquela descrença da civilidade e do potencial criativo e tecnológico dos povos originários.
“Os registros rupestres causam um grande fascínio, principalmente as gravuras. E o caso específico da Pedra do Ingá, na Paraíba, é fundamental nessa história, porque ao invés de se creditar aos grupos nativos toda a criatividade, o esforço e a inventividade na criação daquele registro, ela foi atribuída a criação por
O mesmo é verdadeiro para outras civilizações antigas da América Latina, como explica Gabriel Mendes, graduando em Antropologia na Universidade de Brasília (UNB) e divulgador científico no perfil Arqueo & Espírito:
“No século XIX era muito comum a teoria de que os maias, os astecas e essas sociedades que construíram monumentos megalíticos descendiam de Atlântida. Então esses povos não tinham construído as pirâmides, mas sim os de outros continentes, por exemplo, os egípcios ou pessoas da Mesopotâmia.”
Vale destacar que essas interpretações surgem por diversos fatores no século XIX, um deles sendo o auge do evolucionismo cultural. Tendo como expoentes o antropólogo britânico Edward Burnett Tylor e o antropólogo norte-americano Lewis Morgan, essa corrente hierarquiza as culturas em um “progresso da humanidade”. “No nível inferior dessa escala, estariam as formas culturais mais primitivas; no superior, a mais evoluída: a capitalista ocidental cristã”, explana o professor de História Alfredo Julien, em conteúdo formativo da Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Também é significativo entender que a base do fazer científico nas áreas de arqueologia e antropologia são etnocêntricas. “A arqueologia é muito nichada. Você nunca vai tirar sua lente de mundo completamente”, reflete Gabriel.
E como a sociedade e a ciência atual são frutos do colonialismo, com preconceitos reforçados em narrativas explícitas ou não, acabamos criando um ciclo vicioso de perpetuação de estereótipos. “Mas na área científica, a gente já está indo para outro rumo, para descolonizar a ciência.”
Ainda que todos esses casos estejam no passado, foi só no final do século XX que nasceu, na América Latina, a escola de pensamento da decolonialidade — na Ásia e na África pensava-se em pós-colonialismo. Foi então que começamos a olhar para nossa produção científica com outra visão e outros conceitos além do eurocentrismo.
Mais: foi quando passamos a analisar os efeitos do colonialismo em outras instâncias, como a relação de parcerias desiguais entre pesquisadores brasileiros e estrangeiros; como a dificuldade de acesso a materiais, amostras e artigos científicos; ou até a desvalorização ou falta de reconhecimento à produção científica nacional.
No Brasil, o boom de graduações e pós-graduações em Arqueologia a partir dos anos 2000 também impulsionaram essas discussões. Outro fator importante é que o País tem um arcabouço legal muito concreto e protetivo acerca dos patrimônios arqueológicos brasileiros.
Consequentemente, o rigor com a pesquisa é outro. Não somente no que tange resultados, mas principalmente no cotidiano de parcerias, de escavações e de retorno à sociedade. Inclusive porque, se antes o colonialismo científico era mais fortemente representado por saques aos sítios arqueológicos, hoje ele é mais “sutil”.
É o que explica a doutora em Arqueologia Caroline Borges, professora na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Segundo ela, “a nova frente do colonialismo científico estrangeiro” está fundada em três aspectos.
Primeiro, o da expropriação. É quando os pesquisadores escavam sítios arqueológicos e retiram deles todos os materiais, sem questionar o valor patrimonial deles para as comunidades locais, ou então sem trabalhar os seus sentidos em parceria com as pessoas.
Em consequência, ocorre a desconexão. Ou seja, os sentidos sociais e culturais que existiam em torno daqueles objetos somem, ou às vezes simplesmente não são devolvidos para o público. É como fazer uma pesquisa sobre um povo específico e nunca apresentar para eles os resultados, nunca comunicá-los das descobertas ou das conclusões do estudo — uma parte do que eles são é retirada deles e nunca devolvida.
Por último, existe a manutenção do poder. Os cientistas já apontam há anos que as chances de artigos científicos do sul global serem negados são muito maiores do que em relação às produções do norte global. Não pela qualidade, mas unicamente pela origem dos estudos.
Mas isso é só uma ponta da problemática. Até chegar no momento de ser aceito ou negado por uma revista científica de muito renome (que, sem surpresas, geralmente são do norte global), é preciso investir centenas ou milhares de reais para submeter e depois publicar o artigo. E o fato é que a maioria dos países do lado de cá do hemisfério dificilmente têm financiamento suficiente para isso.
Caroline reforça ainda que há muitos casos de pesquisadores estrangeiros que “traduzem” ideias publicadas no sul global — mas, por estarem em espanhol ou português, por exemplo, não furam a bolha mundial — e publicam, em inglês, como se fossem originais do estrangeiro. Sem dar créditos, sem incluir os reais responsáveis pelo conhecimento e, portanto, invisibilizando a ciência nacional.
Há muitas maneiras de aplicar uma lógica decolonial no fazer científico. Uma delas, por exemplo, é garantir a diversidade econômica, racial, étnica, geográfica e de gênero entre os pesquisadores e outros colaboradores.
“Existem pesquisadores que têm nas suas premissas o uso e a difusão das boas práticas científicas. E esse tipo de profissional vai ter muito cuidado em não reproduzir práticas colonialistas”, analisa Igor. Além disso, estimular publicações em revistas científicas open access, nas quais o acesso é gratuito, também quebra barreiras na difusão da ciência — o problema é que a publicação de artigos científicos já é cara e fica mais custosa quando não há
"Eu acho que quando tratamos de boas práticas científicas, também estamos, de certa forma, minimizando ou deixando de reforçar esse ciclo de colonialismo." - Igor Pedroza, arqueólogo
Mas combater o colonialismo vai além de quem está pesquisando. É também sobre o pesquisado: um estudo decolonial precisa ser respeitoso, levar em consideração o conhecimento tradicional das comunidades e garantir que os resultados serão apresentados aos grupos analisados, talvez até como ferramentas de autonomia e fortalecimento dos povos nativos.
“A arqueologia tem sido uma ferramenta política (para os povos indígenas)”, lembra Gabriel. “São articulações, comprovações ancestrais que também ajudam a aliar as comunidades.”
E mesmo brasileiros podem agir como colonizadores quando agem como se fossem “levar cultura” ao lugar. “Existe uma arrogância muito grande da ciência e às vezes acontece muito disso estar inclusive escrito: ‘Vamos levar conhecimento para a comunidade’”, critica Igor. “Como se a comunidade fosse um um recipiente vazio que não tivesse suas heranças, suas práticas, seus conhecimentos, suas memórias. Esse seria talvez um dos erros mais fortes.”
Outros casos envolvem cientistas das regiões sul e sudeste pesquisando sobre o norte e o nordeste e cometendo os mesmos erros que pesquisadores estrangeiros: não ter parcerias com arqueólogos das regiões pesquisadas, não trabalhar em conjunto com as populações locais e nem retornar com os resultados.
"Internamente, a dissociação tem sido muito combatida entre as gerações mais novas, com muito sucesso. E a arqueologia só faz sentido assim: não se faz mais arqueologia desconectada.” - Caroline Borges, arqueóloga
“Recentemente, o povo indígena Mundukuru pediu a repatriação das urnas que foram retiradas de um santuário por uma equipe arqueológica. Porque eles consideram que aquelas urnas são seus parentes, são sua família, e os arqueólogos não tinham direito de ter retirado essas urnas”, comenta.
Para evitar mais casos do tipo e combater o colonialismo científico interno, a Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB) incluiu no Código de Ética da profissão o incentivo à parceria com os coletivos, por reconhecer que “o conhecimento arqueológico não se valida apenas a partir da produção científica tradicional e sim a partir de um contínuo diálogo com as comunidades locais, grupos subalternos e coletivos em geral.”
Depois de entender o que é o pensamento colonialista dentro da Arqueologia, como combatê-lo, em que aspectos melhoramos e em quais ainda erramos, resta uma pergunta: que diferença faz?
Por que importa garantir que o estudo dos povos, inclusive os do passado rememorados por rastros em vermelho, ocre ou branco, seja justo? Decidi inserir a resposta na íntegra dos arqueólogos Caroline Borges e Igor Pedroza, porque elas me parecem definir bem o poder do estudo da memória e do patrimônio. Clique nas fotos para ler as respostas:
Essa é uma pergunta difícil de responder. Mas se eu tivesse uma resposta exata para te dar agora… Por que importa? Porque na verdade esse patrimônio arqueológico, esse patrimônio cultural é uma herança. E ele é uma herança compartilhada. Como toda herança compartilhada, tem dois vieses.
O primeiro viés é de que você recebe um presente. Você recebe algo que você não esperava, não sabia ou que não tinha ideia do potencial de mudança que isso pode trazer para a tua vida. Por outro lado, isso traz uma responsabilidade de uso dessa herança.
Todo patrimônio arqueológico no Brasil é patrimônio da União. Quando dizemos “é da União”, não é uma entidade excluída das pessoas. Nós, arqueólogos, arqueólogas, entendemos que isso é um patrimônio compartilhado.
“Ah, mas eu não sou indígena. Ah, mas eu não sou quilombola… Por que eu preciso cuidar e saber dessa herança?” Porque necessariamente nós estamos em uma sociedade multicultural, multilinguística, multi-identitária, multiétnica. E como sociedade brasileira, no seu conjunto, nós devemos nos ocupar dessa herança em conjunto.
Então, herança é uma identidade compartilhada. Talvez esse passado tão distante indígena não seja o meu passado, os meus antepassados que chegaram aqui de forma muito mais recente. Mas os seus antepassados estão em terra indígena; aprenderam a comer alimentos que foram domesticados pelos indígenas. Os sistemas culinários da cozinha brasileira são indígenas. Nós recebemos muitas heranças.
O patrimônio arqueológico é um patrimônio cultural também de uma herança, de uma identidade compartilhada enquanto sociedade. E como sociedade nós temos o dever de cuidar e podemos também aproveitar, além do dever, dessa possibilidade de conhecimento.
O colonialismo opera na exclusão de tudo isso. O colonialismo opera na exclusão, no roubo, na perda dessa herança. Então como conjunto social a gente tem que lutar, em conjunto, contra a perda dessa herança. Então é, sim, uma obrigação de todo mundo!
Como o patrimônio cultural arqueológico é muito mais plural, ele de alguma maneira nos toca a todos. É essa a importância. Porque o colonialismo nos exclui do nosso próprio patrimônio cultural, e nós temos o dever de combater isso.
Essa pergunta é muito muito boa porque a gente não vive sem memória. Pode até ser que uma pessoa diga, “Ah, sítio não é importante”, mas eu duvido que ele dê acesso, por exemplo, a você entrar na galeria de imagens do celular dele pra você apagar tudo que está lá. Porque ele gosta de memória, ele precisa, né? E eu tenho certeza que ele cultiva a imagem da mãe dele, da festa dos pais, do casamento… Isso é inerente à gente.
E eu acho que a gente tem que ser grato pelo conhecimento herdado, e a arqueologia pode ser mais uma das formas de a gente agradecer essa diversidade linguística, essa diversidade alimentar que a gente tem. Sem os grupos nativos aqui da América do Sul e Central, por exemplo, a gente não teria uma Amazônia, a gente não teria por exemplo uma floresta de Araucárias… E quanto mais se pesquisa, mais se vê que essas áreas intocadas na verdade foram áreas construídas e polinizadas, digamos assim, pela espécie humana.
Às vezes a gente só não está sensibilizado corretamente para pensar um pouco sobre o passado mais antigo. Mas não tem quem não queira carregar uma memória que seja da sua família. E é o nosso dever sensibilizar, mostrar a importância daquilo e de ser grato principalmente aos grupos nativos. E de reconhecê-los e contar as histórias que os textos escritos não podem dar conta ou dos que eles não contaram totalmente.
É também para respeitar mais o outro. Porque a gente está falando como se fosse de um passado distante e inexistente, mas nós temos populações indígenas no nosso estado, no nosso Nordeste, no mundo todo e que continuam sendo invisibilizadas.
Caso você queira conferir reflexões e comentários que tive durante a viagem e não chegaram a entrar nas reportagens! Clique nas imagens para ler os diários de bordo da 9ª Excursão Patrimonial Parque Nacional da Serra da Capivara:
Dia 1
Quem viaja para o Parque Nacional da Serra da Capivara vai sempre com alguma expectativa de ver onças, tamanduás-bandeira, macacos-prego que usam pedras como ferramentas… Mas a probabilidade é de ver mocós por todo lado.
Os mocós são pequenos roedores parecidos com mini capivaras ou cutias (eles não são da mesma família, ok? É apenas uma comparação). Eles vivem em tocas nas rochas e são muito fofinhos. Chegamos a admirar uma mãe dando de mamar para o filhote por minutos à fio no Boqueirão da Pedra Furada.
O problema é que, na Serra da Capivara, os mocós são uma verdadeira praga. Sem predadores suficientes, constituíram uma superpopulação amostrada, nada temerosa de humanos e drasticamente perigosa para a conservação das pinturas rupestres. É que a urina e as fezes deles são muito ácidas, deslizam pelas rochas até as pinturas e desgastam o patrimônio.
Enquanto o guia Evair me explicava sobre a situação, ele disse o nome científico do mocó: Kerodon rupestris. O problema é que entendi “Kiridon”, e achei que era porque os mocós ficavam tão perto das pinturas que eram tipo os “queridinhos rupestres”. Essa ideia foi recebida com muitas risadas — rindo comigo ou de mim? — seguida da explicação de que o nome significa “dente com chifre” (Kerodon) e “aquele que vive nas rochas” (rupestris).
A superpopulação é tão preocupante que o parque está investindo em uma estratégia de controle dos animais. Por enquanto, nada saiu do papel: a responsável pelo projeto ainda está estudando qual a melhor maneira de lidar. Será o deslocamento dos animais? Ou então castração? Quais serão os impactos? De que forma será mais seguro para eles?
Enquanto isso, o parque continua preocupado. Com pouquíssimo dinheiro entrando na administração, a Serra da Capivara está desde 2010 sem equipe de conservação. Antes, eram 19 pessoas focadas em conservar as pinturas rupestres e garantir mais tempo de vida a elas — atualmente, são três.
Apesar disso, fiquei sabendo também que o cuidado e respeito com o patrimônio está tão mais consolidado que os técnicos em conservação se dispõem a cuidar das artes voluntariamente. Vez ou outra pedem autorização para isso. Não é o ideal, claro. Ninguém deveria trabalhar de graça, principalmente quando o foco é tão sensível, delicado e único.
O causo dos mocós é só um dos milhares de exemplos de como o desmonte dos órgãos ambientais e patrimoniais prejudicam toda a proteção dos parques e a garantia de emprego para quem vive desses projetos.
Enfim. Imersa nessas reflexões, o alívio cômico: o guia Gadelha chamou os roedores de “bocós”, o que me garantiu uma boa risada. No final das contas, passei o dia inteiro referindo-me a eles como bocózins. Fofos e complicados.
Dia 2
Niède é como uma entidade milagrosa para a Serra da Capivara. É praticamente impossível não admirar o trabalho da franco-brasileira na pesquisa e na visão de desenvolvimento regional da região.
Todo mundo parece ter uma história de Niède sendo irreverente, peitando machões do cotidiano à política. Diz que blefou contra um coronel que supostamente tinha mandado matá-la; ou marcou data e horário para apanhar na Praça do Relógio, em São Raimundo Nonato, quando um homem disse aos ventos que iria espancá-la com um pau. Também que esperava um político no estacionamento da obra parada do Aeroporto da Serra da Capivara para questionar onde estava o diabo do dinheiro do aeroporto; ou quando perdeu o título de cidadã são-raimundense (na primeira tentativa de laureá-la) por um protesto em que chamou a cidade de Urubulândia.
Honestamente, é possível preencher folhas e folhas com causos protagonizados por Niède Guidon, e talvez sejam essas estórias que me convençam da grandiosidade dela. Definitivamente são as que fazem todos os funcionários da Serra da Capivara rirem ao falar sobre ela, balançando a cabeça em descrença e deslumbre sobre tudo o que essa mulherona fez em prol do que acreditava certo e justo.
Diz que Niède ainda mantém o caráter de sempre, mas fisicamente já está frágil — se é que é possível usar essa palavra para definir a arqueóloga em qualquer instância. Já aos 90 anos, aposentou-se e vive no terreno do Museu do Homem Americano. É acompanhada pela coordenadora Rosa Trakalo e outros amigos do parque, e sempre torce o nariz quando qualquer assunto relacionado ao trabalho chega aos seus ouvidos. "Sim! Vocês vieram pra minha mesa pra falar de trabalho?!", diria ela.
Por isso, nem cogitei tanto conversar com Niède. Ela já está cansada de discorrer sobre a Serra da Capivara, apesar da paixão pelo espaço. Preferi deliciar-me com a Niède narrada por quem a seguiu e aprendeu partes do ofício durante a empreitada arqueológica. Há muito prazer e valor nisso, porque apesar de algumas histórias serem exageradas ou talvez imprecisas, são esses desvios que concretizam a imagem-legado dela: a de uma mulher absurdamente transformadora.
Dia 3
É divertido e acolhedor como todos da excursão estão genuinamente interessados e cuidadosos com o nosso trabalho. Todos estão atentos ao Fontenele, se ele precisa de ajuda ou de mais espaço, se dispõem a tirar fotos e participar como podem da produção do especial.
Para quem nunca viu uma equipe pequena de jornalistas trabalhando, é mais ou menos assim: o fotógrafo cheio de bolsas e peso subindo nos cantos mais altos, se enfiando entre cactos e outros locais diferentões para conseguir um bom ângulo, uma boa luz e a imagem perfeita. Enquanto isso, a jornalista está cheia de papéis nas mãos — ou caderninhos — anotando freneticamente cada detalhe de informação, de ideias e de impressões, perguntando e ouvindo o mais atentamente.
No meio disso, cada um ajuda o outro. Como eu estava encarregada de filmar algumas imagens para os bastidores, fiquei com a bolsa do drone e da GoPro. Também ajudei carregando, em alguns momentos, o guarda-chuva (em caso de chuva, para proteger o equipamento fotográfico), o qual obviamente derrubei incontáveis vezes. Mas toda vez alguém corria para carregá-lo, especialmente o professor e economista Giubran Zarur. “Nós temos que ajudar a imprensa!”, brincava.
Tiraram fotos nossas trabalhando, perguntaram como nos sentíamos em relação ao que estávamos conseguindo capturar, também sobre jornalismo e outras vivências nossas com viagens à trabalho. Foi definitivamente uma sensação nova. Quando a equipe viaja por si só, tudo é sobre o especial. É igualmente divertido, mas às vezes fica difícil encontrar momentos para desanuviar.
Ficamos tão imersos nas brincadeiras que rimos juntos, fizemos piada e cumprimos como podíamos com nossos deveres de protetores. Explico: no começo da viagem, cada pessoa ficou secretamente encarregada de cuidar de outra. Conferir se tinha tomado o café da manhã, se já tinha entrado no ônibus, se estava seguro… No decorrer dos dias, enviamos cartinhas e mimos entre todos.
Penso que o resultado deste especial também será reflexo de um ambiente acolhedor partilhado entre aqueles que não fazem jornalismo, mas respeitam e entendem o impacto da nossa profissão. O quão bonito é isso?
Dia 4
Éramos um grupo especialmente barulhento. Durante toda a viagem, perturbamos abelhas facilmente irritadiças com a bagunça e recebemos pedidos de silêncio.
Mas no Boqueirão das Andorinhas, foi a primeira vez que nos percebi atônitos. Quietos, sentados no chão rochoso, com as caras voltadas para o céu alaranjado pelo pôr do sol. Conversamos enquanto esperávamos as andorinhas, com medo de elas sequer aparecerem. O dia inteiro esteve nublado e os andorinhões de coleira (Streptoprocne zonaris) tendem a se esconder nessas ocasiões.
O relógio já tinha marcado 18 horas, e então elas apareceram. Juntaram aos poucos, cantando. Acompanhávamos com o olhar e o corpo o voo ritmado das andorinhas.
De repente, uma queda abrupta. Um som como um...
Um rajado.
Um avião.
Um drone!
Elas descem de supetão, quebrando a barreira do som. Podem alcançar a velocidade de 100 quilômetros por hora durante o voo. "Aaaaaah", ninguém conseguiu evitar soltar um espanto alucinado. Elas são impressionantes. "Que coisa fantástica!!". A segunda queda livre dá outro arrepio na espinha. A terceira, a tristeza de que acabou.
A excursão chegou ao fim, após dias de caminhadas e contemplação. O show das andorinhas foi o equivalente à solta de fogos de artifício nos encerramentos de competições mundiais — ou qualquer coisa parecida.
Em roda, agradecemos o trabalho dos guias e do organizador do evento, o arqueólogo Igor Pedroza. No ônibus para retornar à Fortaleza, a artista e professora Aleksandra Holanda cantou uma música que ela e o marido Eros Augustus escreveram para a excursão.
Todos cantaram, acompanharam com palmas (às vezes sem ritmo, mas faz parte!) e aplaudiram a obra quando foi o momento de acabar.Para quem quiser conferir, o vídeo está disponível no instagram da Alek. Bom proveito!
DE SOUZA OLIVEIRA, Elizabeth; LUCINI, Marizete. O Pensamento Decolonial: Conceitos para Pensar uma Prática de Pesquisa de Resistência. Boletim Historiar, v. 8, n. 01. Disponível em: https://seer.ufs.br/index.php/historiar/article/view/15456
JULIEN, Alfredo. Pré-história: O evolucionismo cultural. Aula 2. Disponível em: https://cesad.ufs.br/ORBI/public/uploadCatalago/09132919092014Pre-Historia__Aula_02.pdf
MARTIN, Gabriela. Pré-história do Nordeste do Brasil. Editora Universitária UFPE, 1997. Disponível em: https://editora.ufpe.br/books/catalog/book/415
SILLIMAN. Stephen W. Colonialismo na Arqueologia Histórica: uma revisão de problemas e perspectivas. Cadernos do Lepaarq, v. XIX, n.37, p. 26-54, Jan-Jun. 2022. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/index.php/lepaarq/article/view/23086
Série de reportagens aborda descobertas arqueológicas pelo olhar científico, cultural e de desenvolvimento socioeconômico pelo Ceará, Nordeste, Brasil e Mundo.