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O colonialismo que nos exclui da nossa herança histórica e arqueológica
Reportagem Seriada

O colonialismo que nos exclui da nossa herança histórica e arqueológica

Estudar e ler sobre Arqueologia está bem longe da neutralidade, já que a área foi construída com viés colonialista. O terceiro episódio do Rastros Arqueológicos discute como o colonialismo está refletido no cotidiano da pesquisa e como combatê-lo
Episódio 3

O colonialismo que nos exclui da nossa herança histórica e arqueológica

Estudar e ler sobre Arqueologia está bem longe da neutralidade, já que a área foi construída com viés colonialista. O terceiro episódio do Rastros Arqueológicos discute como o colonialismo está refletido no cotidiano da pesquisa e como combatê-lo
Episódio 3
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Ao falar sobre a Serra da Capivara, é impossível fugir da polêmica que colocou o nome do local na boca do mundo: afinal, os primeiros americanos chegaram pela América do Norte ou pela América do Sul?

Até porque todos conhecemos a história contada na escola. Com o congelamento do estreito de Bering, grupos humanos asiáticos atravessaram para a América do Norte, finalmente ocupando o continente americano há 12 mil anos. Por isso, os registros norte-americanos de presença humana seriam os mais antigos, enquanto os sul-americanos teriam datações mais recentes.

Visita ao Museu do Homem Americano. Na foto, o crânio de Zuzu.(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Visita ao Museu do Homem Americano. Na foto, o crânio de Zuzu.

No entanto, a descoberta das centenas de sítios arqueológicos na Serra da Capivara foram capazes de inverter essa narrativa. Com datações de 18 mil até 100 mil anos atrás, o Piauí virou o palco da primeira ocupação americana. Nesse caso, a hipótese é de que os humanos teriam vindo da África pelo Atlântico, em uma época que a proximidade dos continentes era maior e o oceano estava 140 metros mais baixo — propiciando o surgimento de ilhas no meio do caminho e a navegação por cabotagem "Navegação entre portos marítimos sem perder a costa de vista., contrapondo-se à navegação de longo curso." .

 

Outras evidências que sustentam a hipótese piauiense de ocupação das Américas

 

“Tudo isso criou uma discussão muito grande, principalmente porque os colegas norte-americanos — os europeus aceitaram isso facilmente — defendem a teoria de que o homem só chegou à América por volta de 18 mil anos atrás, que entrou por Bering, passou pela América do Norte, depois pela América Central e só chegou à América do Sul muito tardiamente”, comentou a arqueóloga Niède Guidon em entrevista à agência de notícias da Câmara Legislativa, em junho de 2007.

Depois de muito debate, formalizou-se em dezembro de 2006 que, no mínimo, o homem já ocupava o Piauí há 60 mil anos. Atualmente, o assunto nem é mais polêmico, apenas uma aceitação científica. Mas enquanto pesquisava sobre o assunto e ouvia os guias explicando detalhes, não podia deixar de ficar curiosa do porquê de tanta resistência em ao menos considerar a possibilidade da ocupação americana pelos lados de cá. Foi como cheguei no ponto do colonialismo.

 

 

Mas o ponto aqui não é a datação

Eu sei, talvez seja um pouco impreciso usar essa história como gancho para discutir colonialismo científico na Arqueologia. Mas será tanto assim? Afinal, é bem verdade que existem muitas disputas sobre o passado, com todos desejando dizer que foram os primeiros.

Aliás, a própria distinção entre pré-história e história tem seu quê problemático, pois considera que as vivências indígenas até o contato com o colonizador são uma coisa outra, sem criatividade ou tecnologia, e descolada das dinâmicas pós-expansão colonial, como explica o arqueólogo Stephen W. Silliman no artigo Colonialismo na Arqueologia Histórica: uma revisão de problemas e perspectivas.

Visita ao Museu do Homem Americano. Na foto, um projétil esculpido em quartzo.(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Visita ao Museu do Homem Americano. Na foto, um projétil esculpido em quartzo.

Existe muito interesse em criar narrativas condizentes com os ideais dos grupos dominantes. No Brasil, por exemplo, arqueologia e antropologia foram duas áreas de pesquisa (não necessariamente chamadas como tal) trazidas “à sombra de viajantes, naturalistas, botânicos, geólogos e paleontólogos estrangeiros, enviados por seus países para enriquecimento de coleções de museus europeus, e também de etnólogos, estudiosos de sociedades primitivas remanescentes”, descreve a arqueóloga Gabriela Martin no livro Pré-história do Nordeste do Brasil.

O arqueólogo Igor Pedroza, doutorando na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), destaca do livro de Gabriela Martin um caso que evidencia outro aspecto do colonialismo antigo: aquela descrença da civilidade e do potencial criativo e tecnológico dos povos originários.

“Os registros rupestres causam um grande fascínio, principalmente as gravuras. E o caso específico da Pedra do Ingá, na Paraíba, é fundamental nessa história, porque ao invés de se creditar aos grupos nativos toda a criatividade, o esforço e a inventividade na criação daquele registro, ela foi atribuída a criação por fenícios "Civilização da Antiguidade, de cultura comercial marítima empreendedora que se espalhou por todo o mar Mediterrâneo entre 1.500 a.C. e 300 a.C." ”, comenta. As próprias cerâmicas marajoaras foram interpretadas a princípio como resquícios gregos.

Pedra do Ingá, na Paraíba.(Foto: Claudio JJ / Wikicommons)
Foto: Claudio JJ / Wikicommons Pedra do Ingá, na Paraíba.

O mesmo é verdadeiro para outras civilizações antigas da América Latina, como explica Gabriel Mendes, graduando em Antropologia na Universidade de Brasília (UNB) e divulgador científico no perfil Arqueo & Espírito:

“No século XIX era muito comum a teoria de que os maias, os astecas e essas sociedades que construíram monumentos megalíticos descendiam de Atlântida. Então esses povos não tinham construído as pirâmides, mas sim os de outros continentes, por exemplo, os egípcios ou pessoas da Mesopotâmia.”

Vale destacar que essas interpretações surgem por diversos fatores no século XIX, um deles sendo o auge do evolucionismo cultural. Tendo como expoentes o antropólogo britânico Edward Burnett Tylor e o antropólogo norte-americano Lewis Morgan, essa corrente hierarquiza as culturas em um “progresso da humanidade”. “No nível inferior dessa escala, estariam as formas culturais mais primitivas; no superior, a mais evoluída: a capitalista ocidental cristã”, explana o professor de História Alfredo Julien, em conteúdo formativo da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Templo de Kukulcán, no sítio arqueológico de Chichén Itzá (México), cidade pré-colombiana da civilização maia.(Foto: Freepik)
Foto: Freepik Templo de Kukulcán, no sítio arqueológico de Chichén Itzá (México), cidade pré-colombiana da civilização maia.

Também é significativo entender que a base do fazer científico nas áreas de arqueologia e antropologia são etnocêntricas. “A arqueologia é muito nichada. Você nunca vai tirar sua lente de mundo completamente”, reflete Gabriel.

E como a sociedade e a ciência atual são frutos do colonialismo, com preconceitos reforçados em narrativas explícitas ou não, acabamos criando um ciclo vicioso de perpetuação de estereótipos. “Mas na área científica, a gente já está indo para outro rumo, para descolonizar a ciência.

 

 

Como estamos hoje?

Ainda que todos esses casos estejam no passado, foi só no final do século XX que nasceu, na América Latina, a escola de pensamento da decolonialidade — na Ásia e na África pensava-se em pós-colonialismo. Foi então que começamos a olhar para nossa produção científica com outra visão e outros conceitos além do eurocentrismo.

Mais: foi quando passamos a analisar os efeitos do colonialismo em outras instâncias, como a relação de parcerias desiguais entre pesquisadores brasileiros e estrangeiros; como a dificuldade de acesso a materiais, amostras e artigos científicos; ou até a desvalorização ou falta de reconhecimento à produção científica nacional.

No Brasil, o boom de graduações e pós-graduações em Arqueologia a partir dos anos 2000 também impulsionaram essas discussões. Outro fator importante é que o País tem um arcabouço legal muito concreto e protetivo acerca dos patrimônios arqueológicos brasileiros.

Consequentemente, o rigor com a pesquisa é outro. Não somente no que tange resultados, mas principalmente no cotidiano de parcerias, de escavações e de retorno à sociedade. Inclusive porque, se antes o colonialismo científico era mais fortemente representado por saques aos sítios arqueológicos, hoje ele é mais “sutil”.

É o que explica a doutora em Arqueologia Caroline Borges, professora na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Segundo ela, “a nova frente do colonialismo científico estrangeiro” está fundada em três aspectos.

Primeiro, o da expropriação. É quando os pesquisadores escavam sítios arqueológicos e retiram deles todos os materiais, sem questionar o valor patrimonial deles para as comunidades locais, ou então sem trabalhar os seus sentidos em parceria com as pessoas.

Sítio arqueológico em escavação. Foto de acervo da Fundação do Museu do Homem Americano.(Foto: Acervo Fumdham)
Foto: Acervo Fumdham Sítio arqueológico em escavação. Foto de acervo da Fundação do Museu do Homem Americano.

 

Em consequência, ocorre a desconexão. Ou seja, os sentidos sociais e culturais que existiam em torno daqueles objetos somem, ou às vezes simplesmente não são devolvidos para o público. É como fazer uma pesquisa sobre um povo específico e nunca apresentar para eles os resultados, nunca comunicá-los das descobertas ou das conclusões do estudo — uma parte do que eles são é retirada deles e nunca devolvida.

Por último, existe a manutenção do poder. Os cientistas já apontam há anos que as chances de artigos científicos do sul global serem negados são muito maiores do que em relação às produções do norte global. Não pela qualidade, mas unicamente pela origem dos estudos.

Mas isso é só uma ponta da problemática. Até chegar no momento de ser aceito ou negado por uma revista científica de muito renome (que, sem surpresas, geralmente são do norte global), é preciso investir centenas ou milhares de reais para submeter e depois publicar o artigo. E o fato é que a maioria dos países do lado de cá do hemisfério dificilmente têm financiamento suficiente para isso.

Caroline reforça ainda que há muitos casos de pesquisadores estrangeiros que “traduzem” ideias publicadas no sul global — mas, por estarem em espanhol ou português, por exemplo, não furam a bolha mundial — e publicam, em inglês, como se fossem originais do estrangeiro. Sem dar créditos, sem incluir os reais responsáveis pelo conhecimento e, portanto, invisibilizando a ciência nacional.

 

 

Como combater o colonialismo

Há muitas maneiras de aplicar uma lógica decolonial no fazer científico. Uma delas, por exemplo, é garantir a diversidade econômica, racial, étnica, geográfica e de gênero entre os pesquisadores e outros colaboradores.

“Existem pesquisadores que têm nas suas premissas o uso e a difusão das boas práticas científicas. E esse tipo de profissional vai ter muito cuidado em não reproduzir práticas colonialistas”, analisa Igor. Além disso, estimular publicações em revistas científicas open access, nas quais o acesso é gratuito, também quebra barreiras na difusão da ciência — o problema é que a publicação de artigos científicos já é cara e fica mais custosa quando não há paywall "Quando é necessário pagar para acessar um conteúdo."

Igor Pedroza

"Eu acho que quando tratamos de boas práticas científicas, também estamos, de certa forma, minimizando ou deixando de reforçar esse ciclo de colonialismo." - Igor Pedroza, arqueólogo

Mas combater o colonialismo vai além de quem está pesquisando. É também sobre o pesquisado: um estudo decolonial precisa ser respeitoso, levar em consideração o conhecimento tradicional das comunidades e garantir que os resultados serão apresentados aos grupos analisados, talvez até como ferramentas de autonomia e fortalecimento dos povos nativos.

“A arqueologia tem sido uma ferramenta política (para os povos indígenas)”, lembra Gabriel. “São articulações, comprovações ancestrais que também ajudam a aliar as comunidades.”

Pinturas rupestres no Parque Nacional Serra da Capivara.(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Pinturas rupestres no Parque Nacional Serra da Capivara.

E mesmo brasileiros podem agir como colonizadores quando agem como se fossem “levar cultura” ao lugar. “Existe uma arrogância muito grande da ciência e às vezes acontece muito disso estar inclusive escrito: ‘Vamos levar conhecimento para a comunidade’”, critica Igor. “Como se a comunidade fosse um um recipiente vazio que não tivesse suas heranças, suas práticas, seus conhecimentos, suas memórias. Esse seria talvez um dos erros mais fortes.”

Outros casos envolvem cientistas das regiões sul e sudeste pesquisando sobre o norte e o nordeste e cometendo os mesmos erros que pesquisadores estrangeiros: não ter parcerias com arqueólogos das regiões pesquisadas, não trabalhar em conjunto com as populações locais e nem retornar com os resultados.

Caroline Borges, arqueóloga

"Internamente, a dissociação tem sido muito combatida entre as gerações mais novas, com muito sucesso. E a arqueologia só faz sentido assim: não se faz mais arqueologia desconectada.” - Caroline Borges, arqueóloga

“Recentemente, o povo indígena Mundukuru pediu a repatriação das urnas que foram retiradas de um santuário por uma equipe arqueológica. Porque eles consideram que aquelas urnas são seus parentes, são sua família, e os arqueólogos não tinham direito de ter retirado essas urnas”, comenta.

Para evitar mais casos do tipo e combater o colonialismo científico interno, a Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB) incluiu no Código de Ética da profissão o incentivo à parceria com os coletivos, por reconhecer que “o conhecimento arqueológico não se valida apenas a partir da produção científica tradicional e sim a partir de um contínuo diálogo com as comunidades locais, grupos subalternos e coletivos em geral.”


 

Por que isso importa?

Depois de entender o que é o pensamento colonialista dentro da Arqueologia, como combatê-lo, em que aspectos melhoramos e em quais ainda erramos, resta uma pergunta: que diferença faz?

Por que importa garantir que o estudo dos povos, inclusive os do passado rememorados por rastros em vermelho, ocre ou branco, seja justo? Decidi inserir a resposta na íntegra dos arqueólogos Caroline Borges e Igor Pedroza, porque elas me parecem definir bem o poder do estudo da memória e do patrimônio. Clique nas fotos para ler as respostas:

 

Caroline Borges

Clique na imagem para ler a resposta da arqueóloga Caroline Borges i
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Clique na imagem para ler a resposta da arqueóloga Caroline Borges

 Igor Pedroza

 
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Clique na imagem para ler a resposta do arqueólogo Igor Pedroza

 

Diários de Bordo

Caso você queira conferir reflexões e comentários que tive durante a viagem e não chegaram a entrar nas reportagens! Clique nas imagens para ler os diários de bordo da 9ª Excursão Patrimonial Parque Nacional da Serra da Capivara:

 

  

 

Referências

DE SOUZA OLIVEIRA, Elizabeth; LUCINI, Marizete. O Pensamento Decolonial: Conceitos para Pensar uma Prática de Pesquisa de Resistência. Boletim Historiar, v. 8, n. 01. Disponível em: https://seer.ufs.br/index.php/historiar/article/view/15456 

JULIEN, Alfredo. Pré-história: O evolucionismo cultural. Aula 2. Disponível em: https://cesad.ufs.br/ORBI/public/uploadCatalago/09132919092014Pre-Historia__Aula_02.pdf 

MARTIN, Gabriela. Pré-história do Nordeste do Brasil. Editora Universitária UFPE, 1997. Disponível em: https://editora.ufpe.br/books/catalog/book/415 

SILLIMAN. Stephen W. Colonialismo na Arqueologia Histórica: uma revisão de problemas e perspectivas. Cadernos do Lepaarq, v. XIX, n.37, p. 26-54, Jan-Jun. 2022. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/index.php/lepaarq/article/view/23086 

 

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  • Reportagem Catalina Leite
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