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"Antes e depois de Niède": fases de um desenvolvimento regional da Capivara
Reportagem Seriada

"Antes e depois de Niède": fases de um desenvolvimento regional da Capivara

No segundo episódio do especial Rastros Arqueológicos, viaje pelo tempo e contemple o desenvolvimento socioeconômico das cidades que acolhem a Serra da Capivara, além da influência do parque nacional na preservação ambiental
Episódio 2

"Antes e depois de Niède": fases de um desenvolvimento regional da Capivara

No segundo episódio do especial Rastros Arqueológicos, viaje pelo tempo e contemple o desenvolvimento socioeconômico das cidades que acolhem a Serra da Capivara, além da influência do parque nacional na preservação ambiental
Episódio 2
Tipo Notícia Por

 

 

Técnico em conservação de pinturas rupestres, guia de turismo, comerciário, agente de saúde, garçom e não sei mais quantas outras profissões: Carlos Gadelha, 48, já fez de tudo. Toda história nova que ele nos contava era acompanhada de uma função diferente, atiçando ainda mais a minha curiosidade.

— Vem cá, Gadelha, quantos empregos tu já tivestes?

— Vish, — ele riu — eu já fiz muita coisa. — E começou a elencar os empregos, dos quais mencionei apenas os que consigo lembrar, mas com certeza deixei algum escapar. Não adicionei, no entanto, a função de arqueólogo. Gadelha não é formado, mas foi um dos primeiros jovens a participar dos cursos técnicos promovidos pela doutora Niède Guidon.

 

Quem nos guiou pela Serra da Capivara

Na ordem, da esquerda pra direita, os guias Juliana, Evair, Cida e Gadelha. Para expandir, clique nas imagens

 

Focou na conservação de pintura rupestre, área na qual trabalhou por dez anos. No processo, ele também participou da prospecção, descoberta e preparo de centenas de sítios arqueológicos. “Eu encontrei alguns, não sei falar o número exato. Mas um que me marcou muito foi o que encontramos cinco crânios de crianças. Foi uma sensação incrível descobrir esse sítio arqueológico”, relembra.

Agora atua como guia de turismo, setor responsável pelo desenvolvimento da região, mas que ainda demanda mais divulgação e investimento pelo governo federal. Em boa parte da excursão, foram as histórias de Gadelha que apresentaram a mim e ao fotojornalista Fco Fontenele a Serra da Capivara como ponto central de presente e futuro para o sul do Piauí.

Aos olhos de Gadelha e de todos os outros guias que nos acompanharam ou encontramos no caminho, a chegada de Niède Guidon foi um divisor de águas. “A gente brinca que aqui tudo é AN e DN: antes ou depois de Niède Guidon”, ri. O trocadilho foi perfeito demais para não ser aproveitado em uma viagem do tempo nesta reportagem. Portanto, apertem os cintos, a decolagem é no presente.

 

 
 

Serra da Capivara, 2023 DN

O Parque Nacional Serra da Capivara foi criado em 1979 e cobre 1.014 quilômetros quadrados (km²) do sul do Piauí, tamanho praticamente equivalente à cidade de São Paulo. A unidade de conservação está localizada em quatro municípios: Coronel José Dias, São Raimundo Nonato, João Costa e Brejo do Piauí.

No mapa abaixo, os municípios estão coloridos de azul e a área da Serra da Capivara em roxo.

 

Proporção de área ocupada pelo Parque Nacional da Serra da Capivara

 

São Raimundo Nonato é a maior cidade da região, concentrando serviços essenciais como as Unidades de Pronto Atendimento (UPA) e o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). De acordo com Gadelha, a urbe cresceu muito nos últimos dez anos, movida principalmente pelo comércio e, aos poucos, pelo turismo.

Essa centralização leva os moradores das outras regiões, como Coronel José Dias, a migrarem diariamente para trabalhar e resolver a maior parte das questões administrativas. Não à toa, foi escolhida para sediar o Aeroporto Internacional Serra da Capivara, que apesar de ter sido inaugurado em 2015, só começou a funcionar em dezembro de 2022 com um voo nas terças e quintas.

Interior do Aeroporto Internacional da Serra da Capivara, com funcionamento às terças e quintas.(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Interior do Aeroporto Internacional da Serra da Capivara, com funcionamento às terças e quintas.

Não significa dizer que os outros municípios sejam figurantes. Em Coronel José Dias, as estátuas de capivaras, tatus e onças em praças e retornos conquistam os visitantes para tirar muitas fotos. E não duvide do poder atrativo dessas imagens: ainda na viagem de ônibus de Fortaleza para o Piauí, elas foram suficientes para eu dar um pulo na cadeira e grudar o rosto na janela admirando a fofura dos animais.

 
Clique na imagem para entender porque a Serra da Capivara recebeu esse nome i
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Clique na imagem para entender porque a Serra da Capivara recebeu esse nome

Sem contar que, em geral, passa-se por Coronel José Dias para acessar as incontáveis trilhas e sítios arqueológicos do parque. Por isso, houve crescimento de comércio e pousadas em ambas as cidades.

O Complexo da Cerâmica, localizado na zona rural de Coronel José Dias, é responsável por ao menos 60 empregos diretos — todos da comunidade local. Lá, encontra-se uma fábrica de cerâmicas (que contrata apenas artistas locais), um restaurante e uma pousada. De acordo com a guia de turismo Juliana Landim, praticamente todas as famílias dos entornos têm algum familiar empregado no complexo.

Cerâmicas em produção no Complexo da Cerâmica.(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Cerâmicas em produção no Complexo da Cerâmica.

A ideia de criação do ambiente veio da própria Niède Guidon, também motivadora da construção de escolas de ensino integral e postos de saúde na região. O objetivo era garantir as estruturas necessárias para que os serra-capivarenses protagonizassem o impulso do Piauí arqueológico.

Anos depois, em 2004, é na Universidade Federal do Vale de São Francisco (Univasf) que surge o primeiro curso de graduação em Arqueologia e Preservação Patrimonial em uma instituição pública do Brasil, com sede em São Raimundo. Atualmente, os novos guias de turismo da região precisam ser formados na área para atuarem na Serra da Capivara.

 

 

  

Serra da Capivara, 1970 AN

Quando Niède Guidon chegou a São Raimundo Nonato, o povoado “não tinha nenhum significado para a região”. É o que descreve Adriana Martins na dissertação Parque Nacional Serra da Capivara: patrimônio cultural da humanidade. Ela descreve:

“Não havia água, energia elétrica ou banco. As cidades importantes eram São João do Piauí e Campo do Buriti, a cerca de 100 km de São Raimundo. Para comprar comida era preciso esperar o dia de sábado, quando vinha gente do município baiano de Remanso vender no local. As pessoas que moravam em São Raimundo Nonato viviam essencialmente da criação de ovelhas, de cabras, de gado e da agricultura de subsistência: mandioca e feijão.”

Algumas casas às margens das estradas para o Parque Nacional Serra da Capivara.(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Algumas casas às margens das estradas para o Parque Nacional Serra da Capivara.

Então não é de surpreender que, ao ver a imensidão de achados arqueológicos únicos, Niède tenha concluído: “Só o turismo poderá garantir a sustentabilidade aqui”, (Niéde Guidon em reportagem do jornal Valor Econômico em 25/3/2011).

Afinal, o problema não era a falta de trabalho ou de subsistência, mas as condições desiguais as quais o povo raimundense acabava exposto. “Ninguém roubava ninguém, todos trabalhavam e cada um ganhava um pouco. Mas o que plantou a abóbora revendia ao preço mais barato e comprava o café ou o açúcar a preço de mercado”, relembra Rosa Trakalo, coordenadora dos museus da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham).

 

Os museus da Fumdham

Passe ou mouse ou clique nas fotos para ler sobre os museus

 

Museu do Homem Americano

Situado na sede da Fumdham, o Museu expõe a evolução dos hominídios, apresenta as teorias de povoamento da América e aborda a vida do Homo sapiens na região durante o Pleistoceno e o Holoceno.

 

Museu da Natureza

Construído numa região de grande concentração de sítios arqueológicos, o Museu da Natureza propõe uma viagem multissensorial, em uma narrativa que mostra a criação do universo e os impactos climáticos nas constantes transformações da fauna e da flora.

Rosa passou a acompanhar Niède na década de 60 e mudou-se do Uruguai para São Raimundo em 1992. Nós conversamos em um dia nublado, entre lufadas generosas de vento, nas cadeiras em frente ao Museu do Homem Americano. Niède já está aposentada e não dá mais entrevistas; o que possibilita ouvir a história da Serra da Capivara pelos relatos de quem também viveu tudo ser transformado em realidade. Rosa é uma dessas pessoas, conhecida inclusive como "backup humano” de Niède.

“Eu fui vendo todo o processo avançando com relação ao impacto de toda essa pesquisa. A gente fala no legado do homem pré-histórico, em como transformou e está agindo de uma maneira inimaginável (na região)”, comenta. Ela lembra da primeira vez que visitou São Raimundo Nonato, quando o povoado inteiro dependia de um gerador para fornecer eletricidade. Às dez horas da noite toda a energia era desligada.

Além da desigualdade, outro aspecto que marcou muito a experiência de Rosa foi a falta de água — hoje já melhor manejada, mas ainda com um avanço mal planejado da cidade invadindo, cobrindo e poluindo rios e lagoas naturais que transbordam em época de chuva.

Rosa Trakalo, coordenadora dos museus da Fumdham.(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Rosa Trakalo, coordenadora dos museus da Fumdham.

“Quando a gente chegava depois de um dia inteiro daquela ação toda (escavando sítios arqueológicos), montavam uma bacia pequena que deveria ter um litro de água para cada uma se lavar”, conta. Olhando para as cidades e toda a estrutura museológica da região, é até de se duvidar que as condições eram tão díspares há algumas décadas.

Por outro lado, não é como se tudo fosse perfeito. Ainda é preciso muito investimento público, especialmente no que tange a manutenção do Parque Serra da Capivara (responsabilidade do ICMBio "Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade" ) e a divulgação do patrimônio. Boa parte dos moradores e funcionários da Capivara comenta como os brasileiros desconhecem os próprios parques nacionais e perdem a oportunidade de visitá-los — e, por consequência, de apoiar o setor turístico nacional e regional.

 
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Clique na foto e leia sobre o processo de desapropriação das terras

 

Conservação da Capivara, AN – DN

No plano de fundo das histórias de descobertas científicas e desenvolvimento social, lembro que há sempre uma paisagem. No Piauí, ela tem planícies, serras e cânions; também plantas metamorfas, metade do ano verdes, noutra metade em tons brancos de galhos com poucas folhas. A Serra da Capivara está dentro do bioma Caatinga, com resquícios de Mata Atlântica, sendo um dos dez parques nacionais do Brasil protetores da caatinga "A Serra da Capivara é constituída por quase 40% da caatinga protegida no país. " .

Ela abriga raposas, onças, tatus e tamanduás. Aranhas grandes e pequenas, lagartos de costas vermelhas e pássaros xadrez, vermelhos, amarelos e marrons. Os cactos decoram os caminhos, com chapéus de frade e frutos rosa vibrantes. Os olhos d’água hidratam plantas, bichos, homens, mulheres e crianças. Os paredões expõem arte.

 

 

Foi a arte rupestre que garantiu a proteção da paisagem sem a qual a vida seria invivível. Em 1979 criou-se o Parque Nacional da Serra da Capivara, com demarcação concluída apenas em 1990, e desde então a natureza-Capivara contemplou uma série de acontecimentos. A pergunta que queremos responder, no entanto, é: será que o parque está preservando a Serra?

A missão ficou com o cientista de dados Alexandre Cajazeira. Ele analisou os dados relacionados ao plano de manejo e limites geográficos do Parque Nacional da Serra da Capivara, ICMBio, e dados anuais de cicatrizes de fogo, superfície de água e uso da terra, disponibilizados na plataforma MapBiomas. Está tudo disponível no Github do O POVO+.

Em geral, a notícia é boa. Desde a demarcação do parque, as áreas de recuperação de vegetação secundária "A vegetação nova que surge recuperada após processo de desmatamento antrópico ou natural da mata original." passaram a ser classificadas com formação campestre em vez de pastagem e agricultura. Significa que o solo voltou a parecer com o que era antes das intervenções humanas ou naturais, de acordo com o bioma predominante.

Vejamos a análise no recurso abaixo:

 

 

 

Metodologia

Para esta análise, foram utilizados dados relacionados ao plano de manejo e limites geográficos do Parque Nacional da Serra da Capivara, fornecidos pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), e dados anuais de cicatrizes de fogo, superfície de água e uso da terra, disponibilizados na plataforma MapBiomas.

Para garantir a transparência e a reprodutibilidade desta e de outras reportagens guiadas por dados, O POVO+ mantém uma página no Github na qual estão reunidos códigos e bases de dados produzidos para as publicações.

 

 

Diários de Bordo

Caso você queira conferir reflexões e comentários que tive durante a viagem e não chegaram a entrar nas reportagens! Clique nas imagens para ler os diários de bordo da 9ª Excursão Patrimonial Parque Nacional da Serra da Capivara:

 

No próximo episódio…

Falar de Arqueologia está bem longe da neutralidade. É importante ter senso crítico e atenção às nossas interpretações. O terceiro episódio do especial Rastros Arqueológicos, a ser publicado no dia 24 de abril, discute como o colonialismo científico se traduziu na arqueologia exercida no passado e no presente.

Expediente

  • Edição O POVO+ Fátima Sudário e Regina Ribeiro
  • Edição de Design Cristiane Frota
  • Identidade visual Jansen Lucas
  • Recursos digitais Davi Jucimon, Michele Medeiros e Rafael Arruda
  • Fotografia e Audiovisual FCO Fontenele
  • Análise de dados Alexandre Cajazeira
  • Reportagem Catalina Leite
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Rastros Arqueológicos

Série de reportagens aborda descobertas arqueológicas pelo olhar científico, cultural e de desenvolvimento socioeconômico pelo Ceará, Nordeste, Brasil e Mundo.