Técnico em conservação de pinturas rupestres, guia de turismo, comerciário, agente de saúde, garçom e não sei mais quantas outras profissões: Carlos Gadelha, 48, já fez de tudo. Toda história nova que ele nos contava era acompanhada de uma função diferente, atiçando ainda mais a minha curiosidade.
— Vem cá, Gadelha, quantos empregos tu já tivestes?
— Vish, — ele riu — eu já fiz muita coisa. — E começou a elencar os empregos, dos quais mencionei apenas os que consigo lembrar, mas com certeza deixei algum escapar. Não adicionei, no entanto, a função de arqueólogo. Gadelha não é formado, mas foi um dos primeiros jovens a participar dos cursos técnicos promovidos pela doutora Niède Guidon.
Na ordem, da esquerda pra direita, os guias Juliana, Evair, Cida e Gadelha. Para expandir, clique nas imagens
Focou na conservação de pintura rupestre, área na qual trabalhou por dez anos. No processo, ele também participou da prospecção, descoberta e preparo de centenas de sítios arqueológicos. “Eu encontrei alguns, não sei falar o número exato. Mas um que me marcou muito foi o que encontramos cinco crânios de crianças. Foi uma sensação incrível descobrir esse sítio arqueológico”, relembra.
Agora atua como guia de turismo, setor responsável pelo desenvolvimento da região, mas que ainda demanda mais divulgação e investimento pelo governo federal. Em boa parte da excursão, foram as histórias de Gadelha que apresentaram a mim e ao fotojornalista Fco Fontenele a Serra da Capivara como ponto central de presente e futuro para o sul do Piauí.
Aos olhos de Gadelha e de todos os outros guias que nos acompanharam ou encontramos no caminho, a chegada de Niède Guidon foi um divisor de águas. “A gente brinca que aqui tudo é AN e DN: antes ou depois de Niède Guidon”, ri. O trocadilho foi perfeito demais para não ser aproveitado em uma viagem do tempo nesta reportagem. Portanto, apertem os cintos, a decolagem é no presente.
O Parque Nacional Serra da Capivara foi criado em 1979 e cobre 1.014 quilômetros quadrados (km²) do sul do Piauí, tamanho praticamente equivalente à cidade de São Paulo. A unidade de conservação está localizada em quatro municípios: Coronel José Dias, São Raimundo Nonato, João Costa e Brejo do Piauí.
No mapa abaixo, os municípios estão coloridos de azul e a área da Serra da Capivara em roxo.
Proporção de área ocupada pelo Parque Nacional da Serra da Capivara
São Raimundo Nonato é a maior cidade da região, concentrando serviços essenciais como as Unidades de Pronto Atendimento (UPA) e o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). De acordo com Gadelha, a urbe cresceu muito nos últimos dez anos, movida principalmente pelo comércio e, aos poucos, pelo turismo.
Essa centralização leva os moradores das outras regiões, como Coronel José Dias, a migrarem diariamente para trabalhar e resolver a maior parte das questões administrativas. Não à toa, foi escolhida para sediar o Aeroporto Internacional Serra da Capivara, que apesar de ter sido inaugurado em 2015, só começou a funcionar em dezembro de 2022 com um voo nas terças e quintas.
Não significa dizer que os outros municípios sejam figurantes. Em Coronel José Dias, as estátuas de capivaras, tatus e onças em praças e retornos conquistam os visitantes para tirar muitas fotos. E não duvide do poder atrativo dessas imagens: ainda na viagem de ônibus de Fortaleza para o Piauí, elas foram suficientes para eu dar um pulo na cadeira e grudar o rosto na janela admirando a fofura dos animais.
Ninguém sabe dizer porque a Serra da Capivara se chama assim. Perguntei aos guias se existiu alguma capivara fóssil, mas eles negaram. Também não conseguem confirmar exatamente que existem capivaras ilustradas nas artes rupestres, ainda que existam alguns desenhos bem parecidos.
A verdade é que os tataravós deles já nomeavam a serra dessa maneira, há tanto tempo que ficou difícil rastrear a origem do apelido. De qualquer maneira, virou identidade: a região tem, indiscutivelmente, uma Serra da Capivara. Agora se o bicho andou por ali ou não, é outra história.
Sem contar que, em geral, passa-se por Coronel José Dias para acessar as incontáveis trilhas e sítios arqueológicos do parque. Por isso, houve crescimento de comércio e pousadas em ambas as cidades.
O Complexo da Cerâmica, localizado na zona rural de Coronel José Dias, é responsável por ao menos 60 empregos diretos — todos da comunidade local. Lá, encontra-se uma fábrica de cerâmicas (que contrata apenas artistas locais), um restaurante e uma pousada. De acordo com a guia de turismo Juliana Landim, praticamente todas as famílias dos entornos têm algum familiar empregado no complexo.
A ideia de criação do ambiente veio da própria Niède Guidon, também motivadora da construção de escolas de ensino integral e postos de saúde na região. O objetivo era garantir as estruturas necessárias para que os serra-capivarenses protagonizassem o impulso do Piauí arqueológico.
Anos depois, em 2004, é na Universidade Federal do Vale de São Francisco (Univasf) que surge o primeiro curso de graduação em Arqueologia e Preservação Patrimonial em uma instituição pública do Brasil, com sede em São Raimundo. Atualmente, os novos guias de turismo da região precisam ser formados na área para atuarem na Serra da Capivara.
Quando Niède Guidon chegou a São Raimundo Nonato, o povoado “não tinha nenhum significado para a região”. É o que descreve Adriana Martins na dissertação Parque Nacional Serra da Capivara: patrimônio cultural da humanidade. Ela descreve:
“Não havia água, energia elétrica ou banco. As cidades importantes eram São João do Piauí e Campo do Buriti, a cerca de 100 km de São Raimundo. Para comprar comida era preciso esperar o dia de sábado, quando vinha gente do município baiano de Remanso vender no local. As pessoas que moravam em São Raimundo Nonato viviam essencialmente da criação de ovelhas, de cabras, de gado e da agricultura de subsistência: mandioca e feijão.”
Então não é de surpreender que, ao ver a imensidão de achados arqueológicos únicos, Niède tenha concluído: “Só o turismo poderá garantir a sustentabilidade aqui”, (Niéde Guidon em reportagem do jornal Valor Econômico em 25/3/2011).
Afinal, o problema não era a falta de trabalho ou de subsistência, mas as condições desiguais as quais o povo raimundense acabava exposto. “Ninguém roubava ninguém, todos trabalhavam e cada um ganhava um pouco. Mas o que plantou a abóbora revendia ao preço mais barato e comprava o café ou o açúcar a preço de mercado”, relembra Rosa Trakalo, coordenadora dos museus da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham).
Passe ou mouse ou clique nas fotos para ler sobre os museus
Situado na sede da Fumdham, o Museu expõe a evolução dos hominídios, apresenta as teorias de povoamento da América e aborda a vida do Homo sapiens na região durante o Pleistoceno e o Holoceno.
Construído numa região de grande concentração de sítios arqueológicos, o Museu da Natureza propõe uma viagem multissensorial, em uma narrativa que mostra a criação do universo e os impactos climáticos nas constantes transformações da fauna e da flora.
Rosa passou a acompanhar Niède na década de 60 e mudou-se do Uruguai para São Raimundo em 1992. Nós conversamos em um dia nublado, entre lufadas generosas de vento, nas cadeiras em frente ao Museu do Homem Americano. Niède já está aposentada e não dá mais entrevistas; o que possibilita ouvir a história da Serra da Capivara pelos relatos de quem também viveu tudo ser transformado em realidade. Rosa é uma dessas pessoas, conhecida inclusive como "backup humano” de Niède.
“Eu fui vendo todo o processo avançando com relação ao impacto de toda essa pesquisa. A gente fala no legado do homem pré-histórico, em como transformou e está agindo de uma maneira inimaginável (na região)”, comenta. Ela lembra da primeira vez que visitou São Raimundo Nonato, quando o povoado inteiro dependia de um gerador para fornecer eletricidade. Às dez horas da noite toda a energia era desligada.
Além da desigualdade, outro aspecto que marcou muito a experiência de Rosa foi a falta de água — hoje já melhor manejada, mas ainda com um avanço mal planejado da cidade invadindo, cobrindo e poluindo rios e lagoas naturais que transbordam em época de chuva.
“Quando a gente chegava depois de um dia inteiro daquela ação toda (escavando sítios arqueológicos), montavam uma bacia pequena que deveria ter um litro de água para cada uma se lavar”, conta. Olhando para as cidades e toda a estrutura museológica da região, é até de se duvidar que as condições eram tão díspares há algumas décadas.
Por outro lado, não é como se tudo fosse perfeito. Ainda é preciso muito investimento público, especialmente no que tange a manutenção do Parque Serra da Capivara (responsabilidade do
É claro que o processo de desapropriação de terras para a criação do Parque Nacional Serra da Capivara não foi menos doloroso. Dezenas de famílias ocupavam o território seja para moradia, seja para subsistência. A família da guia de turismo Juliana Landim, 39, foi uma das indenizadas e retiradas da Serra da Capivara, morando atualmente no Sítio do Mocó, comunidade em Coronel José Dias.
"Foi muito triste e difícil na época", comenta. A família de Juliana tinha roças na Serra da Capivara: ela lembra de acompanhar a mãe para buscar água em caldeirões naturais, lavar roupa ou simplesmente esperar os pais trabalharem. As crianças, descreve, eram levadas para aguardar nas tocas criadas nos paredões naturais da serra - hoje sítios arqueológicos. "Eu pequena me lembro que meus pais me deixavam nessas toca e, às vezes, a gente encontrava com a equipe da Niède Guidon já trabalhando em alguns sítios arqueológicos."
Na época, ela e os pais não entendiam bem o que Niède estava pesquisando. Mas quando ela explicou a importância do lugar e iniciou o processo gradual de retirada das famílias, a maioria das pessoas entenderam e saíram de bom grado, ainda que significasse perder as terras de plantio. "Ela não tirou as famílias de vez. Ela deixava as pessoas entrarem pra pegar água, lavar roupa e fazer outras atividades enquanto ela foi criando outros meios aqui fora, na comunidade Sítio do Moco, para que as famílias saíssem de dentro do parque."
Houve indenização para todas as famílias, mas não o suficiente. Mesmo antes de Niède chegar, muitos homens saíram do Piauí para trabalhar cortando cana no interior de São Paulo. Os que ficaram trabalharam com Niède abrindo as trilhas dentro do parque ou guiando os pesquisadores. Enquanto isso, a arqueóloga providenciou a construção de colégios e um posto de saúde. Juliana foi uma das primeiras crianças a estudar nele, onde atuou como arqueóloga mirim e também formou-se também como guia de turismo.
Mas nem todas as famílias aprovaram a desapropriação. Juliana cita seu Noca, de 90 anos, que criou os filhos na Toca do Juazeiro, localizado na região da Serra Branca. Ele foi um dos primeiros guias de Niède, mas revoiltou-se com a desapropriação e negou o terreno oferecido pelo governo. Hoje, vive em um assentamento nos arredores do parque e junto com outras famílias criou um museu em memória à comunidade.
No plano de fundo das histórias de descobertas científicas e desenvolvimento social, lembro que há sempre uma paisagem. No Piauí, ela tem planícies, serras e cânions; também plantas metamorfas, metade do ano verdes, noutra metade em tons brancos de galhos com poucas folhas. A Serra da Capivara está dentro do bioma Caatinga, com resquícios de Mata Atlântica, sendo um dos dez parques nacionais do Brasil
Ela abriga raposas, onças, tatus e tamanduás. Aranhas grandes e pequenas, lagartos de costas vermelhas e pássaros xadrez, vermelhos, amarelos e marrons. Os cactos decoram os caminhos, com chapéus de frade e frutos rosa vibrantes. Os olhos d’água hidratam plantas, bichos, homens, mulheres e crianças. Os paredões expõem arte.
Foi a arte rupestre que garantiu a proteção da paisagem sem a qual a vida seria invivível. Em 1979 criou-se o Parque Nacional da Serra da Capivara, com demarcação concluída apenas em 1990, e desde então a natureza-Capivara contemplou uma série de acontecimentos. A pergunta que queremos responder, no entanto, é: será que o parque está preservando a Serra?
A missão ficou com o cientista de dados Alexandre Cajazeira. Ele analisou os dados relacionados ao plano de manejo e limites geográficos do Parque Nacional da Serra da Capivara, ICMBio, e dados anuais de cicatrizes de fogo, superfície de água e uso da terra, disponibilizados na plataforma MapBiomas. Está tudo disponível no Github do O POVO+.
Em geral, a notícia é boa. Desde a demarcação do parque, as áreas de recuperação de
Vejamos a análise no recurso abaixo:
Para esta análise, foram utilizados dados relacionados ao plano de manejo e limites geográficos do Parque Nacional da Serra da Capivara, fornecidos pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), e dados anuais de cicatrizes de fogo, superfície de água e uso da terra, disponibilizados na plataforma MapBiomas.
Para garantir a transparência e a reprodutibilidade desta e de outras reportagens guiadas por dados, O POVO+ mantém uma página no Github na qual estão reunidos códigos e bases de dados produzidos para as publicações.
Caso você queira conferir reflexões e comentários que tive durante a viagem e não chegaram a entrar nas reportagens! Clique nas imagens para ler os diários de bordo da 9ª Excursão Patrimonial Parque Nacional da Serra da Capivara:
Dia 1
Quem viaja para o Parque Nacional da Serra da Capivara vai sempre com alguma expectativa de ver onças, tamanduás-bandeira, macacos-prego que usam pedras como ferramentas… Mas a probabilidade é de ver mocós por todo lado.
Os mocós são pequenos roedores parecidos com mini capivaras ou cutias (eles não são da mesma família, ok? É apenas uma comparação). Eles vivem em tocas nas rochas e são muito fofinhos. Chegamos a admirar uma mãe dando de mamar para o filhote por minutos à fio no Boqueirão da Pedra Furada.
O problema é que, na Serra da Capivara, os mocós são uma verdadeira praga. Sem predadores suficientes, constituíram uma superpopulação amostrada, nada temerosa de humanos e drasticamente perigosa para a conservação das pinturas rupestres. É que a urina e as fezes deles são muito ácidas, deslizam pelas rochas até as pinturas e desgastam o patrimônio.
Enquanto o guia Evair me explicava sobre a situação, ele disse o nome científico do mocó: Kerodon rupestris. O problema é que entendi “Kiridon”, e achei que era porque os mocós ficavam tão perto das pinturas que eram tipo os “queridinhos rupestres”. Essa ideia foi recebida com muitas risadas — rindo comigo ou de mim? — seguida da explicação de que o nome significa “dente com chifre” (Kerodon) e “aquele que vive nas rochas” (rupestris).
A superpopulação é tão preocupante que o parque está investindo em uma estratégia de controle dos animais. Por enquanto, nada saiu do papel: a responsável pelo projeto ainda está estudando qual a melhor maneira de lidar. Será o deslocamento dos animais? Ou então castração? Quais serão os impactos? De que forma será mais seguro para eles?
Enquanto isso, o parque continua preocupado. Com pouquíssimo dinheiro entrando na administração, a Serra da Capivara está desde 2010 sem equipe de conservação. Antes, eram 19 pessoas focadas em conservar as pinturas rupestres e garantir mais tempo de vida a elas — atualmente, são três.
Apesar disso, fiquei sabendo também que o cuidado e respeito com o patrimônio está tão mais consolidado que os técnicos em conservação se dispõem a cuidar das artes voluntariamente. Vez ou outra pedem autorização para isso. Não é o ideal, claro. Ninguém deveria trabalhar de graça, principalmente quando o foco é tão sensível, delicado e único.
O causo dos mocós é só um dos milhares de exemplos de como o desmonte dos órgãos ambientais e patrimoniais prejudicam toda a proteção dos parques e a garantia de emprego para quem vive desses projetos.
Enfim. Imersa nessas reflexões, o alívio cômico: o guia Gadelha chamou os roedores de “bocós”, o que me garantiu uma boa risada. No final das contas, passei o dia inteiro referindo-me a eles como bocózins. Fofos e complicados.
Dia 2
Niède é como uma entidade milagrosa para a Serra da Capivara. É praticamente impossível não admirar o trabalho da franco-brasileira na pesquisa e na visão de desenvolvimento regional da região.
Todo mundo parece ter uma história de Niède sendo irreverente, peitando machões do cotidiano à política. Diz que blefou contra um coronel que supostamente tinha mandado matá-la; ou marcou data e horário para apanhar na Praça do Relógio, em São Raimundo Nonato, quando um homem disse aos ventos que iria espancá-la com um pau. Também que esperava um político no estacionamento da obra parada do Aeroporto da Serra da Capivara para questionar onde estava o diabo do dinheiro do aeroporto; ou quando perdeu o título de cidadã são-raimundense (na primeira tentativa de laureá-la) por um protesto em que chamou a cidade de Urubulândia.
Honestamente, é possível preencher folhas e folhas com causos protagonizados por Niède Guidon, e talvez sejam essas estórias que me convençam da grandiosidade dela. Definitivamente são as que fazem todos os funcionários da Serra da Capivara rirem ao falar sobre ela, balançando a cabeça em descrença e deslumbre sobre tudo o que essa mulherona fez em prol do que acreditava certo e justo.
Diz que Niède ainda mantém o caráter de sempre, mas fisicamente já está frágil — se é que é possível usar essa palavra para definir a arqueóloga em qualquer instância. Já aos 90 anos, aposentou-se e vive no terreno do Museu do Homem Americano. É acompanhada pela coordenadora Rosa Trakalo e outros amigos do parque, e sempre torce o nariz quando qualquer assunto relacionado ao trabalho chega aos seus ouvidos. "Sim! Vocês vieram pra minha mesa pra falar de trabalho?!", diria ela.
Por isso, nem cogitei tanto conversar com Niède. Ela já está cansada de discorrer sobre a Serra da Capivara, apesar da paixão pelo espaço. Preferi deliciar-me com a Niède narrada por quem a seguiu e aprendeu partes do ofício durante a empreitada arqueológica. Há muito prazer e valor nisso, porque apesar de algumas histórias serem exageradas ou talvez imprecisas, são esses desvios que concretizam a imagem-legado dela: a de uma mulher absurdamente transformadora.
Dia 3
É divertido e acolhedor como todos da excursão estão genuinamente interessados e cuidadosos com o nosso trabalho. Todos estão atentos ao Fontenele, se ele precisa de ajuda ou de mais espaço, se dispõem a tirar fotos e participar como podem da produção do especial.
Para quem nunca viu uma equipe pequena de jornalistas trabalhando, é mais ou menos assim: o fotógrafo cheio de bolsas e peso subindo nos cantos mais altos, se enfiando entre cactos e outros locais diferentões para conseguir um bom ângulo, uma boa luz e a imagem perfeita. Enquanto isso, a jornalista está cheia de papéis nas mãos — ou caderninhos — anotando freneticamente cada detalhe de informação, de ideias e de impressões, perguntando e ouvindo o mais atentamente.
No meio disso, cada um ajuda o outro. Como eu estava encarregada de filmar algumas imagens para os bastidores, fiquei com a bolsa do drone e da GoPro. Também ajudei carregando, em alguns momentos, o guarda-chuva (em caso de chuva, para proteger o equipamento fotográfico), o qual obviamente derrubei incontáveis vezes. Mas toda vez alguém corria para carregá-lo, especialmente o professor e economista Giubran Zarur. “Nós temos que ajudar a imprensa!”, brincava.
Tiraram fotos nossas trabalhando, perguntaram como nos sentíamos em relação ao que estávamos conseguindo capturar, também sobre jornalismo e outras vivências nossas com viagens à trabalho. Foi definitivamente uma sensação nova. Quando a equipe viaja por si só, tudo é sobre o especial. É igualmente divertido, mas às vezes fica difícil encontrar momentos para desanuviar.
Ficamos tão imersos nas brincadeiras que rimos juntos, fizemos piada e cumprimos como podíamos com nossos deveres de protetores. Explico: no começo da viagem, cada pessoa ficou secretamente encarregada de cuidar de outra. Conferir se tinha tomado o café da manhã, se já tinha entrado no ônibus, se estava seguro… No decorrer dos dias, enviamos cartinhas e mimos entre todos.
Penso que o resultado deste especial também será reflexo de um ambiente acolhedor partilhado entre aqueles que não fazem jornalismo, mas respeitam e entendem o impacto da nossa profissão. O quão bonito é isso?
Dia 4
Éramos um grupo especialmente barulhento. Durante toda a viagem, perturbamos abelhas facilmente irritadiças com a bagunça e recebemos pedidos de silêncio.
Mas no Boqueirão das Andorinhas, foi a primeira vez que nos percebi atônitos. Quietos, sentados no chão rochoso, com as caras voltadas para o céu alaranjado pelo pôr do sol. Conversamos enquanto esperávamos as andorinhas, com medo de elas sequer aparecerem. O dia inteiro esteve nublado e os andorinhões de coleira (Streptoprocne zonaris) tendem a se esconder nessas ocasiões.
O relógio já tinha marcado 18 horas, e então elas apareceram. Juntaram aos poucos, cantando. Acompanhávamos com o olhar e o corpo o voo ritmado das andorinhas.
De repente, uma queda abrupta. Um som como um...
Um rajado.
Um avião.
Um drone!
Elas descem de supetão, quebrando a barreira do som. Podem alcançar a velocidade de 100 quilômetros por hora durante o voo. "Aaaaaah", ninguém conseguiu evitar soltar um espanto alucinado. Elas são impressionantes. "Que coisa fantástica!!". A segunda queda livre dá outro arrepio na espinha. A terceira, a tristeza de que acabou.
A excursão chegou ao fim, após dias de caminhadas e contemplação. O show das andorinhas foi o equivalente à solta de fogos de artifício nos encerramentos de competições mundiais — ou qualquer coisa parecida.
Em roda, agradecemos o trabalho dos guias e do organizador do evento, o arqueólogo Igor Pedroza. No ônibus para retornar à Fortaleza, a artista e professora Aleksandra Holanda cantou uma música que ela e o marido Eros Augustus escreveram para a excursão.
Todos cantaram, acompanharam com palmas (às vezes sem ritmo, mas faz parte!) e aplaudiram a obra quando foi o momento de acabar.Para quem quiser conferir, o vídeo está disponível no instagram da Alek. Bom proveito!
No próximo episódio…
Falar de Arqueologia está bem longe da neutralidade. É importante ter senso crítico e atenção às nossas interpretações. O terceiro episódio do especial Rastros Arqueológicos, a ser publicado no dia 24 de abril, discute como o colonialismo científico se traduziu na arqueologia exercida no passado e no presente.
Série de reportagens aborda descobertas arqueológicas pelo olhar científico, cultural e de desenvolvimento socioeconômico pelo Ceará, Nordeste, Brasil e Mundo.