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Mulheres e tributação: a desigualdade de gênero que desafia a reforma tributária
Reportagem Seriada

Mulheres e tributação: a desigualdade de gênero que desafia a reforma tributária

Uma reforma que, para garantir uma política fiscal mais justa e equitativa à população brasileira, terá de ser progressiva, feminista e antirracista. O POVO+ ouviu mulheres fazendárias e especialistas em tributação de todo o País para demonstrar como os impostos são um meio de combater ou reforçar desigualdades — principalmente em relação às mulheres negras, base da pirâmide social
Episódio 2

Mulheres e tributação: a desigualdade de gênero que desafia a reforma tributária

Uma reforma que, para garantir uma política fiscal mais justa e equitativa à população brasileira, terá de ser progressiva, feminista e antirracista. O POVO+ ouviu mulheres fazendárias e especialistas em tributação de todo o País para demonstrar como os impostos são um meio de combater ou reforçar desigualdades — principalmente em relação às mulheres negras, base da pirâmide social
Episódio 2
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"Essa série de reportagens venceu o 1º lugar no 2º Prêmio Sintaf de Jornalismo (Sintafjor), em 2024, na categoria 'Jornalismo Impresso'"

 

A primeira e mais ampla reforma do sistema tributário brasileiro realizada sob a Constituição Federal de 1988 foi promulgada no fim de 2023 e, pela primeira vez na história do Brasil, tem a igualdade entre homens e mulheres como um dos critérios para avaliar medidas tributárias.

Depois de mais de 30 anos de discussões, a Emenda Constitucional Nº. 132/2023 dá as linhas gerais de uma política fiscal que deve ser mais justa e equitativa para a população brasileira — e aponta que, para cumprir seu papel, terá de ser progressiva, feminista e antirracista.

É o que sinalizam mulheres fazendárias e especialistas em tributação de todo o País ouvidas pelo O POVO+, que são unânimes em afirmar que a forma como o Estado brasileiro cobra impostos atualmente contribui para reforçar desigualdades de gênero, raça e classe — quando, ao contrário, os instrumentos tributários deveriam ser meios de combater essas assimetrias.

Produtos do universo feminino, especialmente os de higiene, são mais tributados  (Foto: Erin Lux / The tampon tax )
Foto: Erin Lux / The tampon tax Produtos do universo feminino, especialmente os de higiene, são mais tributados

São as mulheres, e principalmente as mulheres negras, base da pirâmide social brasileira, que enfrentam as maiores cargas de impostos no sistema tributário vigente — um cenário que pode mudar com a regulamentação e implementação da reforma.

Ainda que recebam menores salários em relação aos homens e, em grande maioria, precisem lidar com jornadas duplas e triplas, dentre outros diversos desafios, as brasileiras pagam, em média, 40% a mais em tributos do que eles.

Além desse custo proporcionalmente maior devido à regressividade tributária "Um tributo é regressivo quando ele não considera a capacidade econômica das pessoas e incide proporcionalmente mais em quem está na parte de baixo da pirâmide de renda. Nesse caso, quanto menor for a renda da pessoa, maior será a parcela dos seus rendimentos que será destinada ao pagamento desse tipo de imposto. Uma diarista com renda de R$ 2.200 e um gerente com renda de R$ 16.500, ao comprar um celular que custa R$ 1.000, dos quais R$ 400 são tributos, comprometem, respectivamente, 18% e 2,5% da renda. Ou seja, um mesmo aparelho pesou sete vezes mais na renda dela do que na dele." , produtos consumidos sobretudo por mulheres, como os de higiene menstrual, anticoncepcionais e bens relativos ao cuidado, são mais tributados que os tidos como masculinos.

Uma lâmina de barbear pode ser até 100% mais cara do que o produto idêntico direcionado ao público masculino — simplesmente por ser na cor rosa (o valor da imagem é simbólico; não representa exatamente o valor do item)(Foto: Adobe Stock)
Foto: Adobe Stock Uma lâmina de barbear pode ser até 100% mais cara do que o produto idêntico direcionado ao público masculino — simplesmente por ser na cor rosa (o valor da imagem é simbólico; não representa exatamente o valor do item)

Numa simples ida à farmácia é possível constatar exemplos disso: um pacote de cápsulas de um mesmo analgésico com a palavra “Mulher” em embalagem na cor rosa pode elevar em quase três vezes o preço do medicamento em relação a outro fabricado em embalagem comum.

No balcão do mesmo estabelecimento, outro exemplo a se perceber: enquanto anticoncepcionais e dispositivos contraceptivos como o DIU hormonal são tributados a uma alíquota de 30%, produtos como viagra, utilizado para disfunção erétil, tem alíquota de 18%.

De tão discrepantes que são esses números, os impostos sobre produtos que são voltados majoritariamente para o público feminino recebem o nome de “pink tax” (ou impostos rosa). Apesar de as cores não terem gênero, o mercado ainda segmenta mercadorias para mulheres e meninas ou homens e meninos pelas cores rosa e azul.

A diferença de renda entre mulheres e homens torna o sistema tributário desigual em relação ao gênero(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS A diferença de renda entre mulheres e homens torna o sistema tributário desigual em relação ao gênero

Lana Borges, coidealizadora do movimento Tributos a Elas, uma iniciativa de procuradoras da Fazenda Nacional para discutir questões de gênero no âmbito da economia, explica que, para além de medicamentos, essa porcentagem desigual também pode ser verificada em produtos com cores diferenciadas como brinquedos, eletroeletrônicos, itens de higiene pessoal e roupas.

Lana Borges é procuradora da Fazenda Nacional, coidealizadora do Tributos a Elas e autora do livro "Tributação e gênero: as políticas públicas de extrafiscalidade e a luta pela igualdade"(Foto: Lana Borges/Acervo pessoal)
Foto: Lana Borges/Acervo pessoal Lana Borges é procuradora da Fazenda Nacional, coidealizadora do Tributos a Elas e autora do livro "Tributação e gênero: as políticas públicas de extrafiscalidade e a luta pela igualdade"

A procuradora é autora do livro “Tributação e gênero: políticas públicas de extrafiscalidade e a luta pela igualdade”, obra em que argumenta sobre como as políticas públicas em favor da diminuição das assimetrias de gênero podem ser trazidas à tona com instrumentos tributários.

A narrativa da publicação parte do movimento das sufragistas britânicas pelo direito ao voto feminino.

Na Inglaterra, a recusa do pagamento de tributos por parte das mulheres decorria do fato de que, por estarem impedidas de votar, também estariam desprovidas de cidadania.

Borges conta que descreve esse momento e projeta, como argumento central, a premissa de que o ônus da tributação deveria ser acompanhado de direitos outorgados pela condição de cidadania.

No Brasil, demonstra ela, “existe um ambiente profissional próprio para as mulheres, repleto de diferenças, sejam salariais, sejam de acesso ao mercado de trabalho, sejam de volume de horas de trabalho”.

Numa era do consumo em que o gênero feminino é apontado como mais consumista, esse cenário levanta o seguinte questionamento: afinal, as mulheres gastam mais do que os homens ou apenas pagam mais caro?

 

 

Pink tax”: mulheres pagam mais tributos sobre renda e consumo

Um grande problema em relação às desigualdades de gênero é exatamente a preponderância da carga tributária sobre o consumo, ao invés da maior incidência sobre patrimônio ou renda das pessoas físicas. A afirmação é de Thayana Felix Mendes, procuradora da Fazenda Nacional e também integrante do movimento Tributos a Elas.

“A tributação sobre bens e serviços responde por mais de 15% do PIB nacional, enquanto a tributação sobre a renda e o patrimônio por 8%. E aí o problema é que a tributação sobre o consumo, que é indireta, que repercute no preço final de produtos e serviços no mercado, ela é regressiva. O que isso quer dizer? Como essa tributação tem mesma alíquota para todos, variando apenas em relação à essencialidade dos produtos e serviços, todas as pessoas suportam a mesma carga embutida no preço — independente de gênero, renda ou classe social”, demonstra.

Uma das autoras do livro “O poder feminino entre percursos e desafios: as mulheres perante a legislação, a aplicação do Direito e as políticas públicas e tributárias”, Felix enfatiza que a tributação sobre o consumo é ainda mais regressiva para as mulheres.

Integrante do Tributos a Elas, Thayana Felix Mendes é graduada em Direito pela UERJ e procuradora da Fazenda Nacional desde 2008(Foto: Thayana Felix/Acervo pessoal)
Foto: Thayana Felix/Acervo pessoal Integrante do Tributos a Elas, Thayana Felix Mendes é graduada em Direito pela UERJ e procuradora da Fazenda Nacional desde 2008

“Tem um impacto ainda maior na nossa renda porque nós temos um comportamento de consumo muito específico na sociedade. Comprovadamente, as mulheres, principalmente as mulheres negras, consomem muito mais produtos e serviços voltados ao sustento da família, à criação dos filhos e produtos voltados a particularidades como menstruação. Produtos que são desproporcionalmente tributados no consumo. Isso afeta a capacidade das mulheres em acumular renda e transformar em patrimônio”, retrata.

Somado à menor inserção no mercado de trabalho, salários menores, às jornadas de trabalho duplas ou triplas, o resultado é de mais desigualdade de gênero — o que contraria um dos objetivos da Constituição, demonstra Felix.

“A igualdade entre homens e mulheres precisa ser uma igualdade material, a igualdade formal não basta. Se não existirem políticas públicas, inclusive tributárias, com discriminações positivas para as mulheres, as desigualdades continuarão se perpetuando e até se agravando. Para atingir esse objetivo de redução de desigualdades, a tributação pode e deve ser usada na sua função extrafiscal, de direcionar comportamentos, inclusive através de ações afirmativas fiscais”, expressa.

O fato de discussões como a pink tax sobre tributação e gênero e movimentos como o Tributos a Elas, Mulheres no Tributário e Women in Tax Brazil, é resultado de um esforço coletivo do qual a procuradora faz parte e que contou com o impulso das redes sociais e de movimentos mundiais para se expandir.

“Tivemos ideias que geraram em todo o mundo movimentos sociais importantes como os contra a pobreza menstrual, que é uma face muito evidente de desigualdade, e o impacto das redes sociais na união de mulheres com mesmos interesses e ideais, pois assim como todos os espaços de poder no nosso País, o ambiente acadêmico brasileiro, principalmente no Direito, é masculino, branco e heterossexual”, expõe.

Felix continua: “A difusão de ideias femininas é muito dificultada. As redes sociais permitiram a união de mulheres tributárias de todo o Brasil, que servem como escadas de ideias e acessos. Cada uma contribuindo um pouquinho no ambiente que pode”.

Apesar de terem uma remuneração menor que a dos homens, as mulheres pagam mais caro por produtos só porque são "embalados para elas"(Foto: Adobe Stock)
Foto: Adobe Stock Apesar de terem uma remuneração menor que a dos homens, as mulheres pagam mais caro por produtos só porque são "embalados para elas"

“Os coletivos como o Tributos a Elas, do qual faço parte, o Mulheres no Tributário, o Women in Tax Brazil, se reúnem a outras mulheres em grupos de estudos, em publicações de artigos e livros, em atividades parlamentares, para levar a pauta o mais longe possível. Temos conseguido acesso e parceria com deputadas, senadoras e lideranças femininas no executivo que somam forças. Mas, como eu disse, os ambientes de poder ainda são muito refratários à igualdade de gênero”, sobreleva.

Thayana cita como exemplo uma das redações propostas na Emenda Constitucional Nº. 45/2019, convertida na Emenda Constitucional Nº. 132/2023 da reforma tributária, que previa expressamente a devolução de tributos (chamada de “cashback”) para reduzir desigualdades de gênero.

“Mas houve intenso debate na Câmara dos Deputados, com acusações entre parlamentares de imposição de ideologias de gênero e raça no texto constitucional. E, apesar dos esforços políticos, a redação aprovada acabou excluindo essa previsão. A questão de gênero foi reincluída na redação final da EC com a expresso ‘promoção da igualdade entre homens e mulheres’. Que, para ser implementada, vai exigir um esforço interpretativo de operadores do Direito que são homens, brancos e heterossexuais”, pontua.

Apesar de cores não terem gênero, o mercado ainda segmenta produtos para homens e mulheres por meio das cores azul e rosa(Foto: Adobe Stock)
Foto: Adobe Stock Apesar de cores não terem gênero, o mercado ainda segmenta produtos para homens e mulheres por meio das cores azul e rosa

A procuradora também observa que, por toda a estrutura social de desigualdades raciais e de gênero, a situação é mais grave para os negros, para as mulheres, mas mais ainda para as mulheres negras: “Elas não conseguem transformar rendimento em melhores condições de vida e muito menos em patrimônio. Veja que é uma estrutura cíclica que impede a mobilidade social”.

Ela explana que “a Constituição Tributária é, ou pelo menos deveria ser, orientada pela progressividade do sistema. Pelo princípio da Capacidade Contributiva, e agora também o da Justiça Tributária e da Redução da Regressividade, inseridos pela reforma, quem ganha mais deveria suportar maior carga proporcionalmente. E isso pode ser aferido por cálculos macroeconômicos das alíquotas efetivas que se aplicam tanto na tributação do consumo quanto sobre a renda das pessoas físicas. E essas alíquotas efetivas, comprovadamente, são menores para o topo da pirâmide social e maiores na base”.

“É preciso uma reforma tributária sistêmica rumo à progressividade fiscal, com instrumentos de compensação social, por medidas de ação afirmativa e transferências diretas de renda, que compensem o encargo financeiro suportada pelos grupos vulneráveis. Só assim, com uma tributação preocupada em ser uma política antirracista e feminista, conseguiremos alcançar alguma justiça tributária”, conclui.

 

 

Base da pirâmide, mulheres negras são as mais penalizadas pelo sistema tributário brasileiro

A pobreza no Brasil é racializada e feminilizada: a população negra é a mais penalizada pelo sistema tributário brasileiro, que recai mais pesadamente sobre as mulheres negras.

As casas chefiadas por essas mulheres, muitas delas mães solo, são as mais afetadas por situações de vulnerabilidade que vão desde a moradia precária até a insegurança alimentar e uma série de violências e violações de direitos — elas são base e são alvo ao mesmo tempo.

Estudiosas como a antropóloga brasileira Lélia Gonzalez alertam desde a década de 1970 sobre a situação específica das mulheres negras latino-americanas, que sofrem um processo de tríplice discriminação — enquanto raça, sexo e classe.

A tributação que incide sobre absorventes é considerada uma das principais fontes de discriminação de gênero perpetuadas pela legislação tributária(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS A tributação que incide sobre absorventes é considerada uma das principais fontes de discriminação de gênero perpetuadas pela legislação tributária

Quando se trata de injustiça fiscal contra esse perfil, pesquisadoras brasileiras advertem que são pouco eficientes políticas orçamentárias para promover igualdade de gênero e raça de um lado se a tributação aumenta essas desigualdades de outro.

Constatações que são comprovadas pela pesquisa “O papel da política fiscal no enfrentamento da desigualdade de gênero e raça no Brasil”, publicada em janeiro pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

“O sistema não é sensível às mulheres — uma vez que não considera o perfil de consumo distinto relacionado a esse grupo —, de modo que o sistema tributário acaba por ter viés sexista implícito”, diz o texto.

Os tributos que pesam mais sobre as mulheres também estão contidos em produtos ligados ao cuidado infantil e geriátrico como fralda, talco e carrinhos de bebê(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Os tributos que pesam mais sobre as mulheres também estão contidos em produtos ligados ao cuidado infantil e geriátrico como fralda, talco e carrinhos de bebê

De acordo com o relatório, a tributação sobre consumo e serviços afeta mais as pessoas negras porque uma parte da renda dessa população, que ocupa a maior parte da faixa mais pobre na comparação com as pessoas brancas, fica retida nos impostos — e para as famílias chefiadas por mulheres negras os impactos causados pela cobrança de tributos são ainda maiores.

Lares chefiados por mulheres gastam mais na subsistência do lar: alimentação, aluguel, água, energia, higiene, saúde, medicamentos. Lares chefiados por homens gastam mais em aquisição de veículos e imóveis.

A pesquisa ainda aponta que o acesso a melhores indicadores de educação, mercado de trabalho e representação política são dificultados para esse grupo populacional, público sobre o qual incide o maior ônus tributário e que representa 42% dos brasileiros mais pobres.

 

Os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2017 e 2018 também embasam o levantamento, que revela que as famílias dos 10% mais pobres destinam 26,4% da sua renda total aos tributos — com a população preta como a que apresenta mais chances de estar em condição de pobreza, o que reforça que pessoas negras são as mais afetadas pelos impostos no Brasil.

“Na prática, o desenho da tributação brasileira acaba produzindo reduções mais significativas da renda ou do poder de compra das famílias chefiadas por pessoas negras e, em menor intensidade, por mulheres”, realça o texto.

A principal recomendação do relatório para ampliar a potencialidade das transferências para a população negra é a ampliação das políticas assistenciais, como Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada (BPC), assim como a preservação dos subsídios às aposentadorias por idade e de agricultores familiares.   

 

 

Uma das principais mudanças previstas pela reforma é a unificação de cinco impostos cobrados atualmente com o objetivo de simplificar a cobrança: Programa de Integração Social (PIS), Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), de competência federal; e Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e o Imposto sobre Serviços (ISS), de competências estadual e municipal, por um Imposto sobre Valor Adicionado (IVA).


 

No caso dos tributos indiretos, os autores do estudo defendem a redução relativa de sua importância em relação à renda e consideram fundamentais políticas de renda que reduzam a vulnerabilidade dos mais pobres — “ou seja, ampliem o espaço orçamentário, de modo que o consumo não absorva toda a renda”.

Uma alternativa apresentada é a proposta de devolução do que é gasto com tributos indiretos para famílias inscritas no Cadastro Único (CadÚnico), apresentada no projeto de reforma tributária da Proposta de Emenda Constitucional no 45/2019, aprovada pela Câmara Federal.

De acordo com a advogada Luiza Machado, integrante do grupo de pesquisa de Tributação e Gênero do núcleo de Direito Tributário da Faculdade Getúlio Vargas (FGV), “a intersecção entre o patriarcado e o racismo posiciona as mulheres negras na parte inferior da pirâmide de renda no Brasil e, assim, elas auferem a menor renda média dentre todos os grupos brasileiros”.

Advogada e mestra em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Luiza Machado, integrante do grupo de pesquisa de Tributação e Gênero do núcleo de Direito Tributário da Faculdade Getúlio Vargas (FGV)(Foto: Luiza Machado/Acervo pessoal)
Foto: Luiza Machado/Acervo pessoal Advogada e mestra em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Luiza Machado, integrante do grupo de pesquisa de Tributação e Gênero do núcleo de Direito Tributário da Faculdade Getúlio Vargas (FGV)

Por isso ela destaca que “a regressividade tributária aumenta não só a distância entre ricos e pobres, mas também entre brancos e negros, entre homens e mulheres e, especialmente, aumenta a distância entre homens brancos e mulheres negras”.

Machado é autora de “Tributação e desigualdade de gênero e raça: como o sistema tributário discrimina as mulheres na tributação sobre os produtos ligados ao cuidado e à fisiologia feminina”, pesquisa em que apresenta pelo menos três formas pelas quais os tributos no Brasil reforçam as assimetrias entre homens, mulheres, pessoas brancas e pessoas negras.

“A primeira é a regressividade tributária, a segunda é a relação entre a tributação e a divisão sexual do trabalho e, por fim, a discriminação na tributação sobre os produtos ligados ao cuidado e à fisiologia feminina. Identifiquei, por exemplo, que a tributação sobre os anticoncepcionais é cerca de 30%, mais de três maior que a tributação incidente sobre as camisinhas, que é de 9,25%”, explica ao O POVO+.

A pesquisadora aponta que, “além disso, a tributação sobre os produtos ligados ao trabalho de cuidado também é superior à dos produtos que não são essenciais ou que são hegemonicamente consumidos por homens. Isso tem um reflexo na questão da igualdade de gênero pois são justamente as mulheres as mais responsabilizadas pelo trabalho de cuidado”.

É o caso da tributação sobre absorventes, tampões e coletores menstruais, como mostra a reportagem do O POVO “Pobreza menstrual: quanto a dignidade custa mais caro para quem tem útero”.

Além desses, há também os tributos que incidem sobre métodos contraceptivos e produtos como pomadas que previnem assaduras, lenços umedecidos, talcos, bicos adaptadores de mamilo para amamentação, dentre outros acessórios ou itens voltados ao cuidado com bebês.

Discriminação indireta na tributação brasileira


“Durante o processo de reforma tributária, nós, do Grupo de Pesquisa de Tributação e Gênero conseguimos incidir de forma a fomentar o debate sobre essa intersecção. Felizmente, com o apoio de diversos movimentos, organizações e instituições, tivemos duas vitórias fundamentais”, comenta.

“A primeira foi a inclusão dos absorventes no rol de produtos com a alíquota reduzida ou até zerada. A segunda foi a inserção da análise de gênero nos benefícios tributários. Agora, os benefícios tributários serão avaliados a cada 5 anos de acordo com a promoção da igualdade entre homens e mulheres, uma vitória histórica que consta na Constituição”, detalha.

Para a advogada especialista em Direito Tributário, “gênero, raça e classe são opressões/explorações que se entrecruzam e posicionam indivíduos na sociedade. Dessa forma, qualquer análise que não observar essas três estruturas será uma análise parcial, insuficiente. Com a tributação não poderia ser diferente; observar apenas como o sistema tributário atua nas classes de renda oculta desigualdades de gênero e raça e impede que possamos encontrar soluções adequadas para problemas complexos”.

Leia mulheres | Livros citados nesta reportagem + dica de leitura bônus


Luiza narra, no livro, que, em 2021, a proposta de isenção do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para absorventes menstruais apresentada ao Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) pela então secretária da Fazenda do Estado do Ceará, Fernanda Pacobahyba, foi rechaçada pelo plenário — que argumentou que o benefício iria favorecer mulheres abastadas que podiam pagar por eles.

Na reunião seguinte, foi aprovado convênio para conceder benefício fiscal a itens como telha de fibrocimento, tijolo refratário, tubo e manilha de concreto — sem nenhuma ressalva sobre se esses produtos seriam adquiridos por pessoas ricas ou para a construção de um resort em Trancoso, como disse Pacobahyba em artigo publicado no O POVO, à época.

Dias após o veto do então presidente Jair Bolsonaro à distribuição gratuita de absorventes femininos para estudantes de baixa renda e pessoas em situação de rua pelo Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, a norma de isenção proposta pela então titular da Sefaz-CE foi aprovada no Confaz.

“Ao iniciar a leitura, fui surpreendida com a menção, tão carinhosa, pelo trabalho que desenvolvemos. Fico muito honrada e agradecida por fazer parte não só dessa conquista, mas dessa menção em sua obra. Indico a todos a leitura. É uma grande oportunidade de ampliar a ótica sobre as tributações de produtos ligados às necessidades básicas femininas e uma forma de pensar na importância de garantir dignidade para inúmeras mulheres em situação de vulnerabilidade”, comentou Pacobahyba.

 

 

Educação fiscal é uma das premissas para melhor percepção das desigualdades tributárias

“A tributação deve servir à redução das desigualdades e promover solidariedade”, afirma a ex-titular da Sefaz-CE (2019-2022), atual presidente da Fundação Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), autarquia vinculada ao Ministério da Educação (Mec).

Em entrevista ao O POVO+, Fernanda Pacobahyba observa que, “infelizmente, com o nível de desigualdade que há no País, uma parcela expressiva da população passa a ter dificuldade para acessar itens básicos. A tributação pode dificultar isso caso não consiga estabelecer tratamentos menos graves para itens essenciais”.

“Estudos já demonstram o quanto itens femininos são mais gravemente tributados, em um contexto em que a maior parte dos lares brasileiros já é chefiada por mulheres. Com isso, a massiva renda dessas mulheres vai para o consumo, e a tributação sobre consumo é muito elevada comparada a patamares internacionais”, continua.

Auditora fiscal jurídica da Receita Estadual do Ceará, Fernanda Pacobahyba foi a primeira secretária da Sefaz-CE em 183 anos de história. Atualmente é presidente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)(Foto: Anderson Gama)
Foto: Anderson Gama Auditora fiscal jurídica da Receita Estadual do Ceará, Fernanda Pacobahyba foi a primeira secretária da Sefaz-CE em 183 anos de história. Atualmente é presidente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)

“A reforma tributária vem com a ideia de neutralizar esse debate — apesar das críticas que podemos fazer ao texto aprovado, que foi o possível diante da perpetuação de muitas tributações diferenciadas para alguns itens ou grupos”, coloca.

A economista Nathalie Beghin, do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), sugere que “a reforma tributária, para acontecer, terá que será que ser progressiva, antirracista e feminista”. Sobre a afirmativa, Pacobahyba reflete: “Não sei se podemos ter tantas pretensões quanto à reforma tributária, especialmente se considerarmos que a tributação espelha as estruturas de poder de um país e que definem que suportará os ônus da vida em sociedade”.

“Na minha percepção, se ela fosse neutra, com pouquíssimas exceções, acho que já seria um avanço para a nossa sociedade. Falta-nos maturidade institucional e social para passos maiores que esse, na minha compreensão”, opina.

Educação é a chave — não apenas a fiscal, mas também ela —, segundo a fazendária: “A educação fiscal é apenas uma especialização da educação e há um consenso do papel da educação para construir uma sociedade melhor”.

“Primeiro, uma discussão que nunca foi travada com maturidade no Brasil tem a ver com a defesa dos tributos como própria base para a democracia. Quando vemos as discussões sobre estado mínimo, fico a imaginar quanta desconexão com a realidade ainda vivenciamos”, destaca.

A presidente do FNDE afirma, em segundo lugar, que “o Estado brasileiro fez a opção por um estado social e este tem um custo elevado, especialmente na promoção de serviços. Para dar só um exemplo, na educação básica, grande parte dos gastos estão relacionados a pagamento de professores e de todos os profissionais que a estruturam. Ora, como prescindir isso?”.

“Pior, hoje com conquistas relevantes como as relacionadas à educação especial e inclusiva, certamente teremos custos maiores para que tenhamos profissionais habilitados para lidar com o autismo, por exemplo. A educação fiscal vem colocar essa conta na mesa, confrontando-as com as aspirações legítimas da sociedade”, pondera.

“A pauta da educação fiscal é uma pauta a ser apropriada por toda a sociedade, para que tenhamos mais legitimidade no discurso e para que as pessoas não fiquem achando que é apenas um momento corporativista dos fiscos. Educação é a chave”, defende.

"Oie :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Até a próxima!"

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