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Entre os santos do Catolicismo, existe uma categoria especial que não consta como oficialmente celebrada pela Igreja, ainda que possua uma devoção fervorosa entre os fiéis. São os chamados “Santos do Povo”. Muitas vezes oriundos de regiões interioranas e vítimas de mortes violentas, conhecidas como martírios, estas figuras são reverenciadas por comunidades que acreditam firmemente em suas intercessões e milagres.
Conforme a tradição católica, existem diferentes formas de cultos. O primeiro, e mais importante, é aquele voltado a Deus, chamado de "latria". Em seguida, há a veneração "hiperdulia", dedicada a Nossa Senhora. Mãe de Jesus Cristo, ela estaria acima de todos os santos. A veneração aos demais santos, a "dulia", completa a lista.
“Os santos são pessoas que, através de seu exemplo de vida, se tornam modelos para os fiéis”, explica Moisés Rocha Farias, professor de Filosofia e membro da Academia Brasileira de Hagiologia (Abrhagi), dedicada ao estudo dos santos.
Ele detalha que, desde o início da Igreja Primitiva, no primeiro século, eram considerados santos aqueles cristãos que deram suas vidas em testemunho à sua fé em Jesus Cristo. “O processo canônico, na verdade, só começou a acontecer a partir da Idade Média. Antes, os santos eram proclamados apenas pelo povo”, esclarece o especialista.
Mais de 20 mil pessoas em todo o mundo, entre homens e mulheres, já foram canonizadas pela Igreja Católica. Atualmente, o processo pode ser resumido em quatro etapas principais.
Nos dias atuais, antes mesmo de passar por esse processo, os chamados “santos do povo” são elevados ao status de santidade pelos próprios fiéis, que encontram neles um exemplo de vida cristã e um canal de comunicação com o divino.
Segundo o padre Tiago Oliveira, da Arquidiocese de Fortaleza, não há um certo ou errado na veneração de santos, sejam eles canonizados ou não. Essa forma de culto, na verdade, é o princípio de uma possível futura canonização.
“A devoção a eles começa de modo despretensioso. As pessoas encontram alguém que tem um belo testemunho de fé e, após o falecimento dessa pessoa, surge uma devoção crescente. Então os fiéis começam a pedir graças, a entregar ex-votos (item religioso que referencia uma graça alcançada), por exemplo. Isso chama a atenção de uma comunidade maior”, comenta.
Moisés Rocha Farias, que também é membro da Associação Brasileira de Filosofia da Religião (ABFR), complementa: “O povo entende que aquela pessoa, que tinha tantas virtudes, está mais perto de Deus e pode interceder por nós. Na teologia, a gente conhece isso como a comunhão dos santos”, diz.
Esses santificados, em geral, ainda têm como característica as narrativas populares que são passadas oralmente de geração em geração. “As pessoas conseguem ver naquela pessoa dons extraordinários, como feitos de cura”, ele acrescenta.
O papa Francisco, por exemplo, reconheceu a importância da devoção popular em algumas ocasiões. Em uma missa realizada em 2014 no Vaticano, por exemplo, o pontífice chegou a mencionar que há muitos dentro do povo de Deus que “não necessariamente estão canonizados, mas que são santos” porque “colocam em prática o amor de Jesus”.
Só no Ceará, conforme levantado pelo O POVO na série de reportagens "Santificados", há mais de 40 santos populares não canonizados pela Igreja.
O mais famoso deles é Padre Cícero, venerado principalmente no Cariri. Apesar de não ser oficialmente reconhecido pela Igreja Católica como santo, “Padim Ciço” é celebrado por milhares de devotos que acreditam em sua santidade e milagres.
O cearense, entretanto, está em processo de deixar de ser "apenas" santo popular. Em novembro de 2022 foi iniciado o processo de beatificação do Padre com a análise de dois inquéritos. O primeiro documento, que relata a vida e as virtudes do sacerdote, deve ser concluído e enviado para análise do Vaticano ainda em 2024.
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Além do exemplo de fé em vida, do martírio e, principalmente, de possíveis milagres após a morte, a identificação do povo com a trajetória de um santificado também é essencial para que a narrativa sobrenatural resista ao tempo.
“Na história do Nordeste, em especial, a fé se fez até mesmo necessária para manter o alento de viver em situações precárias. E é por isso que Padre Cícero é tão presente até hoje. Ele experimentou, de uma forma ou de outra, aquela realidade e soube dar uma resposta ao sofrimento do povo”, exemplifica Moisés Rocha Farias.
Na segunda-feira, dia 17 de junho, o documentário “Ela Não Queria Ser Santa”, novo filme exclusivo do O POVO+, conta a trajetória de três santas do povo que se tornaram ícones religiosos no Ceará: Mártir Francisca, Maria de Bil e Menina Benigna. A produção explora em detalhes a luta pela sobrevivência dessas mulheres, que sofreram feminicídios, e como essas tragédias as transformou em símbolos de "santidade".
Natural de Aurora, a jornalista Rozanne Quezado é fiel à Mártir Francisca e conta que sua história de devoção se originou ainda na infância. Ela conta que, ao ir junto à família ao sítio de um tio, passava pelo local onde Francisca havia sido assassinada.
“Havia apenas a pequena capela, que ainda hoje existe. Parávamos e a mamãe nos contava sobre o que houve ali. Para nós, crianças, aquele lugar era sagrado”, narra.
Passados 30 anos, Rozanne explica que leu sobre a morte de Mártir Francisca e viu que havia muita coisa que ligava ela com sua família: Francisca e a família viviam nas terras de um tio seu; ela era afilhada de seus avós; quem atuou como médico legista foi um tio-avô; o próprio pai de Rozanne foi jurado no julgamento do assassino Chico Belo.
A jornalista conta que costuma recorrer à Mártir Francisca nos momentos de aflição. “Não a vejo como 'santa', mas, como um espírito de luz. A fé, para mim, é acreditar que somos ouvidos quando nos dirigimos a Deus ou algum espírito de nossa devoção. O fato de a Igreja reconhecê-la ou não como santa não muda absolutamente nada”, sentencia.
Fiel desde criancinha à Menina Benigna, Maria da Penha, 62, que nasceu em Santana do Cariri, conta que morava próximo ao local do martírio da jovem. Ela relata que ficava impactada com o número de fiéis pagando promessas por graças alcançadas. Segundo ela, a beatificação da mártir fortaleceu sua crença.
“Eu sempre soube que as bem-aventuranças de Benigna iam ser reconhecidas, mas muitas vezes me perguntei qual geração minha ia contemplar esse momento. Tive oportunidade de participar da solenidade de beatificação e hoje sei que beata Benigna pode ir para os altares em todo e qualquer lugar do Brasil”, celebra Maria da Penha.
No Ceará, conforme apurado pelo O POVO na série "Santificados", cerca de 17 mulheres são consideradas santas pelo povo. Destas, sete foram assassinadas por companheiros, noivos, “admiradores” e parentes. É o que aponta a análise de Daniele Ribeiro Alves, doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
"É interessante que a maioria dessas santas têm características em comum e, apesar dos casos terem ocorrido há décadas, permanecem muito atuais. Na maioria das vezes eram pobres e jovens. São mulheres que disseram não, negaram o poder masculino, e, por conta disso, sofreram um feminicídio", aponta a socióloga.
Daniele explica que, nas narrativas das santas vítimas de feminicídio, o que desencadeou o processo de santidade foi o martírio, o sofrimento extremo que enfrentaram. No entanto, atualmente, é frequente limitar a lembrança delas apenas à perspectiva de castidade, negligenciando a crueldade dos atos que sofreram.
"Se exalta muito mais as características de virgindade, de feminilidade por uma lógica tradicional, do que a suas características de resistência. Vai se construindo uma história de uma idealização do feminino", conclui a especialista.
Para marcar a estreia do novo filme do OP+, uma série de reportagens aborda os diversos aspectos da religiosidade popular e da santificação de meninas cearenses que foram mortas pela violência do machismo