As santas do povo do Cariri foram assediadas, perseguidas e esfaqueadas. Depois de mortas brutalmente, os femicídios transformaram-se em martírios; os feminicidas, em diabos; e a injustiça, em santificação.
As histórias das sertanejas Benigna Cardoso da Silva (morta aos 12 anos), Francisca Augusto da Silva (com 16) e Maria Antônia da Conceição (idade desconhecida) são marcadas pela violência e cultuadas pela dor, palavras intimamente ligadas à religião.
Antes de chegar ao feminicídio santificado, porém, é necessário aprofundar-se na relação intrínseca da violência e da religião. Aqui, falaremos apenas do cristianismo, mas o paradoxo de guerra e paz é presente em praticamente todas as religiões e seus respectivos mitos.
De acordo com Magali Cunha, doutora em Ciências da Comunicação, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser), a violência é parte basal da origem da religião. O Antigo Testamento da Bíblia, por exemplo, traz um Deus “belicoso e violento”, que usa da violência para defender um povo escolhido em detrimento dos outros.
É o que o doutor em Teologia e padre Márcio Fabri dos Anjos explica no artigo Violência e religiões: uma introdução: a luta pela sobrevivência vira terreno fértil para o surgimento de religiões e deuses que legitimam a violência contra o inimigo.
“A vitória contra os inimigos é atribuída à misericórdia e ao amor ciumento de Deus para com o seu povo. Isto permite orações cercadas pela violência, como nos salmos em que se pede explicitamente a humilhação, o castigo e a morte dos inimigos”, descreve o autor.
Criam-se então os mitos — ou seja, o rol de histórias sagradas que compõem as religiões — e o desejo de reconstruí-los. O geógrafo Christian Dennys, pesquisador de geografia humana e religiosa na Universidade Federal do Ceará (UFC), relembra os estudos de René Girard: “Segundo ele, o grande desejo de imitar o outro e de reconstruir as origens nos ritos de celebração coletiva repetitiva, alimenta esse tabu e fortalece a religião pela violência expiatória”.
A violência-religião é estudada há muito tempo pela antropologia da religião, da sociologia da religião, das ciências da religião e da teologia; no entanto, os religiosos ainda silenciam e rejeitam o tema. “É algo que provoca incômodo. Ter atos de violência justificados pela religião acaba não sendo um elemento muito reconhecido pelos religiosos, apesar de várias expressões religiosas condenarem o uso da violência e atuar pela promoção da paz”, reforça a pesquisadora Magali Cunha.
Esse é o grande paradoxo da Bíblia. Se o Antigo Testamento é marcado pelo Deus belicoso, o Novo Testamento é o Jesus pacífico. “Então a gente tem essa tensão dentro da própria Bíblia”, pontua Magali, “e em outras religiões também, tanto é que há vertentes de grupos religiosos que se baseiam em ações violentas como justificativa para decisões e posturas.”
Enquanto os traços de violência contra o outro são silenciados pelos religiosos, o martírio, o sacrifício e as chagas são ressaltadas e vistas como um
São essas violências sofridas em nome da fé que santificam pessoas, justamente pelo compromisso delas em manter os preceitos religiosos no espaço público, “o que provoca perseguição, dificuldades e dores”, diz Magali. Daí o martírio de Maria de Bil, Menina Benigna e Mártir Francisca; também por isso Menina Benigna é cultuada como beata da castidade, o valor cristão que ela estaria tentando assegurar.
Mesmo sendo doloridas, essas histórias dão conforto, alento e paz para os fiéis. "Isso tem a ver com a fé popular. No Brasil, a gente tem arraigado um catolicismo popular que vem de séculos, uma fé popular das pessoas que têm os santos em casa, das pessoas que participam das romarias, vão nos lugares sagrados, levar seus agradecimentos, fazer pedidos", descreve Magali.
Essa experiência transcendental é uma forma de projeção, tão forte que permite o culto a santos não reconhecidos pela Igreja Católica; os santos do povo. "É uma forma de projeção. O sofrimento que eu também vivo é superado nessa pessoa santificada", explica a pesquisadora.
“Espiritual e materialmente, a dor é um código de amadurecimento e fidelidade à vida, à graça e ao mistério cósmico que chamamos de Deus”, diz o geógrafo Christian, “mas as desigualdades e assimetrias das condições efetivas da dor projetam sacrifícios muito injustos e desproporcionais”.
Ou seja, a dor em nome da fé exigida de grupos marginalizados é ainda maior, já que essas pessoas estariam vivendo em condições vulneráveis justamente para amadurecer e encontrar Deus. Entram aí as mulheres, principalmente no contexto de um Cariri machista com altos índices de violência contra a mulher, que ao serem assassinadas o culpado vira o diabo, não o homem.
“Há uma tendência de uma leitura espiritualizante de certas situações, especialmente em relação a pessoas santas. Essas leituras retiram situações da vida para espiritualizá-las e colocá-las num patamar mais transcendente, de uma leitura mais mística, para reforçar leituras religiosas”, comenta Magali. “É, sim, uma forma de retirar a culpa dos feminicidas.”
“Essas leituras também mantêm a violência em vários níveis da vida, não só nessas situações, mas quando se culpa o diabo por todas as mazelas que pessoas possam estar vivendo, desde o desemprego a uma doença”, continua a pesquisadora. Além do diabo, o próprio Deus pode voltar à figura violenta e bélica ao castigar alguém por qualquer tipo de erro.
“Nós ouvimos sobre isso recentemente com as chuvas do Rio Grande do Sul, pessoas dizendo que a população estava sendo castigada porque não fez uma certa escolha religiosa. Então há essas leituras que reforçam e mantêm a violência, e no caso dessas mulheres negam a ação humana e colocam uma leitura espiritualizante que desloca as questões para um plano espiritual que justificaria a santidade delas.”
Tanto na igreja católica, quanto nas igrejas evangélicas, existem teologias que reforçam a violência. É o caso das teologias de guerra espiritual, que devem ser enfrentadas com jejum, oração, participação em missas e em eventos musicais e religiosos… Todos eventos religiosos normais, até essa mesma teologia reforçar a violência com a escolha de governantes que defendem armamentos, vingança contra criminosos e a pena de morte, comenta Magali.
“A gente tem visto essa atitude muito violenta das pessoas, inclusive nas próprias relações, com discursos de ódio, com agressões mútuas nas mídias sociais. Isso tudo é resultado de discursos que são religiosos e que alimentam ciclos de violência”, diz a pesquisadora.
Não por acaso, os discursos religiosos de manutenção da violência viram ferramentas de poder e controle. Adicione na mistura o machismo e a misoginia reforçados pelo viés religioso e chegamos ao cenário político de aprovação do Projeto de Lei 1904/2024, que equipara o aborto a homicídio.
“Isso tudo é resultado desse incentivo à violência pela leitura religiosa. Eu não vejo as igrejas superando isso num momento em que a gente vive, pelo contrário: eu vejo as igrejas reforçando isso, inclusive pelo viés político, no apoio a políticas públicas de vingança contra criminosos e de vingança contra as mulheres, que não se comportam diante de certos padrões que são colocados com base em princípios religiosos”, argumenta Magali.
De acordo com Christian, a igreja sequer é capaz de quebrar o ciclo de violência de gênero. “Ela não quer e nem pode fazer isso. Teria de se desfazer como ‘romana’ e imperial”, alegoriza. Para ele, a pergunta é se o Estado (laico, diga-se) é capaz de prover políticas públicas protetivas à mulher mesmo com as “estruturas culturais cristãs tão alienantes de suas obrigações igualitárias”.
“Se sim, jamais estaríamos debatendo dessa forma tão violenta um PL como o 1904/2024”, pondera. “Se não, temos o risco de ignorar que toda a escolaridade da sociedade brasileira é insuficiente para conter o poder eclesial fundamentalista. E por um grande motivo estrutural: a desigualdade socioterritorial brasileira é um projeto exitoso e inabalável”, lamenta.
O Cariri das santas do povo transforma-se no cenário perfeito para exemplificar esse paradoxo de violência e paz. Apesar de ser uma região culturalmente fervorosa, de ser antro de inovações científicas e humanísticas, ainda é líder em desigualdades e feminicídios.
“Infelizmente, o estado continuará tratando o feminicídio como um problema menos importante que o desemprego, o desenvolvimento rural, as questões produtivas e ambientais”, analisa o geógrafo cearense. “E seguindo Girard, por mimetismo, muitas Benignas ainda serão sacrificadas nesta longa história de violência da desigualdade social.”
As histórias de três mulheres que se tornaram ícones religiosos no Ceará são o tema do novo filme do O POVO+. Marcado para estrear nesta segunda-feira, 17, na plataforma de streaming do Grupo de Comunicação O POVO, o documentário “Ela não queria ser santa” relembra a trajetória de Maria de Bil, Mártir Francisca e Menina Benigna.
Com depoimentos de parentes, amigos e populares que conviveram e conheceram as três personagens, o filme também discute a responsabilidade dos homens que assassinaram Maria, Francisca e Benigna, mas que, devido ao "imaginário popular e inconsciente coletivo dessas histórias" são tratados como se estivessem tomados por uma entidade maligna.
"Ela não queria ser santa" foi gravado nas cidades de Aurora, Várzea Alegre e Santana do Cariri e registrou momentos emblemáticos da história de cada mulher que foi santificada.
Um dos destaques na produção é a primeira procissão da Menina Benigna após a beatificação pelo Papa Francisco. Confira o trailer a seguir e assista ao filme completo no O POVO+:
Para marcar a estreia do novo filme do OP+, uma série de reportagens aborda os diversos aspectos da religiosidade popular e da santificação de meninas cearenses que foram mortas pela violência do machismo