Nordeste, Ceará, Cariri. Um caso de violência contra uma menina de 13 anos no sítio Oitis choca o distrito de Inhumas, na pequena Santana do Cariri, a cerca de 500 quilômetros de Fortaleza. Aconteceu em
Os requintes de crueldade do
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As romarias e peregrinações são acompanhadas por milhares de pessoas que pedem intercessão e fazem promessas à "santa de Inhumas" — aquela erguida ao altar com vestido de chita que, 80 anos depois, seria reconhecida pelo Vaticano e viria a se tornar a primeira beata cearense.
No sopé da Chapada do Araripe, a aura sagrada de um vale encantado envolve o município de pouco mais de 17 mil habitantes como se cada pedra também carregasse consigo um fragmento de santidade.
De um lado, a considerada capital da paleontologia abriga fósseis e uma
Com a beatificação de Benigna, santanenses se preparam para transformações e percebem o turismo religioso como uma fonte para o desenvolvimento local, cuja dinâmica econômica já se destaca pelo turismo científico, mas também engloba atividades como a exploração mineral (puxada pela extração da pedra Cariri) e o comércio de artesanatos.
Além dos 30 mil visitantes que já recebe por ano, a cidade agora projeta um aumento significativo no fluxo de romeiros e turistas com a inauguração de um grande santuário em homenagem à beata.
O marco coloca Santana do Cariri ao lado de destinos religiosos já consagrados na região, como Juazeiro do Norte, com a figura de padre Cícero, e Barbalha, com a imagem de Santo Antônio.
Elevada aos altares, Benigna será homenageada com um monumento de 26 metros de altura capaz de acolher mais de 100 mil romeiros — com áreas para oração, estacionamento, ambulantes e grandes celebrações.
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As peças foram esculpidas por uma equipe de artesãos da empresa MultiPlay Parks, do município de Eusébio, na região metropolitana de Fortaleza (RMF), e transportadas ainda no fim do ano passado para Santana do Cariri.
O último pedaço a ser instalado na estátua gigante é o rosto de Benigna, justamente a parte do corpo que nunca foi definidamente reconstituída por falta de registros. A face que estampa a fé do povo santanense nasce a partir de um esforço mental entre memórias coletivas, documentos oficiais, discursos e narrativas do catolicismo.
Com a percepção de aumento no número de visitantes também surgem desafios para o pequeno município interiorano, já que a infraestrutura da localidade precisa ser ampliada para acomodar a crescente demanda por transporte, hospedagem e alimentação.
O translado de passageiros para chegar à cidade, por exemplo, é feito por topiques que saem em horários determinados de Crato, no triângulo Crajubar; já em Santana, não existe táxi e nem veículo por aplicativo, apenas mototaxistas que realizam pequenos trajetos.
Também não há hotéis na localidade, somente três pequenas pousadas; e poucas opções de restaurantes ou lanchonetes. Além disso, chamam a atenção questões como a necessidade de orientação entre os moradores e a especulação imobiliária que já cerca alguns terrenos próximos ao santuário, em Inhumas.
Esses são relatos de quem chega de fora mas que também inquietam pessoas nascidas e criadas em Santana, como o jornalista Joedson Kelvin, que é mestrando em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Envolto na narrativa desde criança, ele decidiu pesquisar a figura de Benigna e os símbolos associados ao rosto intrigante da menina — como o vestido de chita vermelho com bolinhas brancas, o pote e o lírio. Há dois anos residente em Fortaleza, o pesquisador percebe essas mudanças de maneira crescente sempre que faz a viagem de volta para a terra natal.
"É um consenso entre todas as pessoas com quem venho conversando e também observando, o que confirma o que eu já vinha sentindo: o município não está preparado nem para as movimentações que já acontecem agora, às vésperas da inauguração do Complexo", aponta.
Conforme testemunha Joedson, "falta estrutura, falta capacitação das pessoas para receberem esses romeiros e turistas, falta comunicação e orientação para que as pessoas saibam onde almoçar ou repousar. Falta harmonia entre os vendedores, uns não indicam outros por rixas, o que tem muito em cidade pequena".
"As pessoas da própria cidade ainda não têm dimensão do que está sendo construído lá. Eu entrei até o máximo permitido para entrar e é imenso, imenso", narra.
O jovem ainda relata que notou placas de loteamento em territórios do entorno, o que indica que, embora a maior parte dos santanenses não tenha noção do que virá a seguir, existe uma parcela que está atenta a essa movimentação.
Mapa do Ceará com destaque para Fortaleza e Santana do Cariri
Para Maria da Penha, que cresceu no distrito de Inhumas e atualmente coordena o Memorial de Benigna, além de ser membro da comissão que trabalha no santuário, "Santana do Cariri já é uma cidade turística por conta da paleontologia".
"A gente já tem muitas visitações, só que realmente ainda deixa muito a desejar em relação à infraestrutura. A gente não tem hotéis, está começando a aparecer agora algumas pousadas. A estrada só é asfaltada de Nova Olinda até Santana, mas não tem asfalto por outras vias", conta.
E continua: "A cada dia que passa o fluxo é maior e aumenta essa necessidade. Existem alguns projetos, mas nada saiu do papel até agora. Tanto que os primeiros ônibus a chegarem aqui tiveram que ficar na cidade e vir de outras maneiras porque não tinha como fazer o percurso da estrada. São ruas estreitas, com muitas árvores".
Oração para Benigna
Benigna, alma Santa. Interceda a Deus por nós livrando-nos das mazelas, das tardes fatídicas, dos algozes da vida. Rogai por nós! Oh, Benigna mártir! Protegei o distrito de Inhumas, do qual também és padroeira. Abençoa o povo santanense e todos aqueles que buscam em ti o consolo nas horas de aflição.
Penha explica que "embora Santana seja grande em extensão territorial, as vias de acesso são de chão batido, sem asfalto. É uma cidade que você vem e você volta, porque não tem essa passagem para outras localidades como Assaré, Campos Sales, Salitre, aquelas partes lá".
Depois da beatificação, que aconteceu em 2022, Penha detalha que o fluxo de visitações cresceu exponencialmente, mas que o aparato oferecido não acompanhou esse ritmo. "Existe uma cobrança da equipe do santuário até pelas sinalizações, porque muitos romeiros chegam pra gente e dizem que tiveram dificuldade de localizar a cidade, de chegar até o santuário. Porque quando se chega em Santana, ainda é preciso andar mais 2 quilômetros até chegar em Inhumas, onde está o complexo", detalha.
Ela salienta que 97% das obras já estão concluídas para comportar 60 mil pessoas na frente da imagem e mais 40 mil atrás: "São 100 mil pessoas e a gente já vê uma movimentação que é atípica para esse período. Uma das nossas preocupações é que tem uma esplanada muito boa para celebrações religiosas, mas elas terão que ser feitas ou muito cedo ou à noite, porque não tem cobertura".
"Se a gente não tomar conta, os de fora vêm e tomam", assegura a comerciante Jéssica Linard. "Vai ficar grande isso daqui. Dá para crescer. Mas o pessoal daqui é muito desacreditado, aqui (no comércio) era pra ter mais gente. Cadê o povo de Santana para começar a agir? É preciso trabalhar para aguentar o impacto, porque vai ser um caos se não tiver (o que o público demanda)", diz.
A vendedora Regiane Campos, que comercializa artigos como chaveiros, terços, bolsas, camisas e imagens religiosas, complementa que "a maioria do pessoal compra em Crato e Juazeiro a mercadoria que deveria ser feita aqui. O dinheiro que era pra estar ficando aqui em Santana está ficando praticamente todo lá".
"A gente precisava de uma fábrica aqui para fazer essa imagens, ia empregar muita gente. Tem um motorista que vem aqui com a gente, ele disse que lá em Barbalha tem famílias que só trabalham pintando essas imagens. Com a demanda inteira que tem aqui, quantas famílias não poderiam fazer isso?", reflete.
A comerciante Adriana Roque começou a trabalhar com artesanato exatamente quando percebeu que havia necessidade do público visitante: "O pessoal chegava aqui, procurava um artesanato, uma água, um apoio e não tinha. Muitos pedem informação de 'onde é que fica isso?', então a gente acaba sendo também um guia".
"Eu não possuía nem esse ponto, comecei ali no meio do tempo, mas a gente viu a necessidade. Eu pesquisei no YouTube como fazia essas lembrancinhas e terços e estou fazendo até hoje", expõe.
Para além da oportunidade para o empreendimento, Adriana ressalta a relação com a benignidade da beata que tem provocado toda a mudança na cidade: "É muita fé, de gente de perto e de gente de longe. Às vezes vem só com o dinheiro da passagem, mas uma fé imensa. Esses dias veio uma pessoa aqui, tinha vindo outra vez sem andar, dessa vez ela correu pra abraçar. Jogou a muleta e veio correndo. É cada história que você fica chocado. A fé move montanhas".
A programação da festa de inauguração do santuário ainda nem existe, mas a cozinheira Dora, dona do restaurante Menina Benigna, já tem recebido pedidos de visitantes que viajarão para Santana no mês de outubro, quando ocorre a romaria de Benigna.
"Acho que vai vir muito mais pessoas do que costuma vir na romaria, e vai ser uma correria, porque não tem mão de obra. É difícil demais. Não é mais nem questão de dinheiro, é questão de vir tanta gente de longe e sair com fome", expressa.
"Como não consigo pessoas para trabalhar, eu trabalho só, então eu trabalho por agendamento. Porque às vezes chega um grupo grande, vão visitar as coisas, vão pra missa, quando dá 11 horas querem comida, aí pra você fazer comida para 80, 100 pessoas em duas horas não tem condições", coloca.
Para o secretário de Cultura e Turismo de Santana do Cariri, Ypsilon Félix, os benefícios do turismo religioso são evidenciados no desenvolvimento regional.
Ele cita que a Comissão de Turismo da Câmara dos Deputados aprovou, em maio, o requerimento do deputado federal Luiz Gastão (PSD/CE) para que a romaria de Benigna seja incluída no calendário oficial do Ministério do Turismo.
"A romaria, que acontece anualmente, celebra a vida e a fé da beata, atraindo milhares de fiéis e turistas. Com essa inclusão, espera-se maior reconhecimento e incentivo ao turismo religioso na região", aponta.
Cidades brasileiras que se desenvolveram pelo turismo religioso
A beatificação é o passo anterior à canonização, quando a pessoa oficialmente passa a ser considerada santa. O Brasil possui 52 processos de pessoas que foram beatificadas pela Igreja Católica — mas dessas, só seis nasceram do País; o restante são estrangeiros que viveram e morreram em solo brasileiro.
Desses, metade é de brasileiras que foram vítimas de feminicídio: Albertina Berkenbrock, Benigna Cardoso da Silva e Lindalva Justo de Oliveira, que foram assassinadas por homens que não aceitaram ser rejeitados.
Outros beatos brasileiros são Francisca de Paula de Jesus, milagreira mineira conhecida como Nhá Chica, Padre Victor, filho de uma mulher escravizada que pode ser o primeiro santo brasileiro negro; e o coroinha Adilio Daronch, mártir do Rio Grande do Sul.
As histórias de três mulheres que se tornaram ícones religiosos no Ceará são o tema do novo filme do O POVO+. Marcado para estrear nesta segunda-feira, 17, na plataforma de streaming do Grupo de Comunicação O POVO, o documentário “Ela não queria ser santa” relembra a trajetória de Maria de Bil, Mártir Francisca e Menina Benigna.
Com depoimentos de parentes, amigos e populares que conviveram e conheceram as três personagens, o filme também discute a responsabilidade dos homens que assassinaram Maria, Francisca e Benigna, mas que, devido ao "imaginário popular e inconsciente coletivo dessas histórias" são tratados como se estivessem tomados por uma entidade maligna.
"Ela não queria ser santa" foi gravado nas cidades de Aurora, Várzea Alegre e Santana do Cariri e registrou momentos emblemáticos da história de cada mulher que foi santificada.
Um dos destaques na produção é a primeira procissão da Menina Benigna após a beatificação pelo Papa Francisco. Confira o trailer a seguir e assista ao filme completo no O POVO+:
"Oie :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Até a próxima!"
Para marcar a estreia do novo filme do OP+, uma série de reportagens aborda os diversos aspectos da religiosidade popular e da santificação de meninas cearenses que foram mortas pela violência do machismo