A relação entre ambiente político conturbado em gestões municipais e a grande parcela de pessoas nessas cidades em que a população depende do Bolsa Família é inerente.
O contexto das contas públicas deficitárias nos municípios também é fator relevante. Estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV) aponta que o Ceará tem a maior quantidade de municípios do Nordeste com baixa liquidez nas contas.
Ao todo, 70,1% das prefeituras cearenses têm nota C de capacidade de pagamento (Capag), conforme atribuição da Secretaria do Tesouro Nacional (STN).
Seja por falta de projetos - ou falta de dinheiro para execução - ou suspeitas de corrupção, a correlação de problemas gera efeitos negativos especialmente aos mais pobres.
Nesse contexto, a dependência dos moradores do Nordeste de programas sociais do governo aumentou e alcançou 35% dos lares. Em 2019, esse percentual era de 29%.
Os dados fazem parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua - Rendimento de todas as fontes 2023.
O POVO conheceu realidades de municípios que dialogam com essa relação: Amontada (a 174,4 km de Fortaleza) e Pacujá (a 311,4 km da Capital).
Na primeira cidade, no último dia 22 de maio, a operação "Vigilantia", do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), com apoio da Polícia Civil e autorizada pelo Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), resultou no afastamento do prefeito Flávio Filho (PT) e de dois secretários municipais - um deles, o de Infraestrutura, o pai do prefeito.
A operação apura possíveis irregularidades na contratação de serviços de fornecimento de combustíveis e de limpeza pública pela Prefeitura de Amontada.
Há suspeitas de que recursos federais que deveriam ser destinados à saúde foram desviados.
No último dia 8 de julho, o prefeito conseguiu retornar ao cargo após autorização liminar do Supremo Tribunal de Justiça (STJ).
O ministro Otávio de Almeida Toledo proferiu decisão monocrática em que reverte o afastamento por entender que o processo investigatório e de afastamento só poderiam acontecer no âmbito federal, e não estadual, como ocorreu.
O processo, no entanto, ainda está em aberto e deve haver nova análise do mérito pelo pleno do STJ.
Ao O POVO, o Ministério Público do Estado do Ceará informou que vai recorrer da decisão junto ao Superior Tribunal de Justiça por meio do Núcleo de Recursos Criminais (Nucrim).
Sem qualquer relação com a operação, O POVO demandou a Prefeitura, ainda em abril, para entrevistas sobre a estrutura de assistência social do município.
A secretária do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS) e primeira-dama, Priscilla Mota, ou a equipe da Secretaria não atenderam a nenhum pedido.
Já, ao visitar o município, a reportagem só conseguiu entrar no Centro de Referência da Assistência Social (Cras) após encontrar uma liderança comunitária de Amontada ligada ao prefeito, que intermediou a liberação e acompanhou a equipe até o equipamento.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social (MDS) apontam que, dos 42.156 habitantes de Amontada, um total de 32.551 pessoas são atendidas por benefícios sociais no município, o equivalente a 77,2% do total.
Em Pacujá, o cenário político conturbado é similar. O prefeito eleito em 2020, Raimundo Filho (PDT) - com 23 anos à época do pleito e com vários parentes entre os secretários municipais, foi alvo da operação "Sufrágio II", do MPCE.
Esta culminou na decisão do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE) em favor de seu afastamento, do vice e de mais seis vereadores do mesmo grupo político, em junho de 2022.
A investigação revelou um esquema de compra de votos em troca de benefícios como passagens aéreas, materiais de construção, pagamento de exames médicos, além de depósito e entrega de valores em espécie.
Segundo o MP, foi criada uma "central de passagens aéreas" para compra de votos que beneficiou os candidatos, tudo sob conhecimento de Raimundo Filho.
O político recorreu da decisão ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e conseguiu voltar ao cargo com seu vice após decisão liminar do ministro Alexandre de Moraes, em decisão emitida em 30 de dezembro de 2023.
Enquanto o prefeito esteve afastado, a realidade política do município permaneceu caótica. Em aproximadamente um ano e meio, três prefeitos interinos.
Em meio ao vai-e-vem político, dos 6.175 habitantes, 83,4% deles - um total de 5.151 pessoas - são beneficiários de programas sociais.
Em Pacujá, O POVO conversou com a titular da STDS e primeira-dama do município, Alana Abreu.
Ela destaca que, além dos programas do Estado e da União, as famílias pobres do município têm acesso a projetos municipais de transferência de renda, como o Renda Mais Pacujá, pagando mensalmente R$ 100 para 124 famílias em situação de extrema pobreza.
A situação fiscal do município, no entanto, não é boa. Segundo Alana, estão endividados, inclusive com a Enel Ceará, o que impede que novas ligações sejam feitas, atrasando entregas de obras, como de uma praça em área pobre da cidade.
"Como ficamos afastados e só retomamos a gestão no fim de dezembro, é como se estivéssemos iniciando o trabalho. Estamos nos organizando, temos planos, mas tem muita coisa para fazer", destaca.
Alessandra Araújo, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre a Pobreza (LEP), destaca que os municípios pequenos sofrem com a baixa atividade econômica.
Ela lembra que falta muitas vezes preparo técnico aos prefeitos para saber lidar com as demandas exigidas pelo cargo.
Em meio às dificuldades locais, ela também cobra estímulos do governo estadual para além de uma política industrial, mas que promova o setor de serviços também.
"A indústria foi o motor da economia no século passado. Hoje isso acontece pelos serviços. É preciso estar mais atento às necessidades da população no Interior, fazer um levantamento robusto do potencial econômico dos municípios, mapear oportunidades", afirma.
Importante constatação que O POVO fez em visitas às cidades de Caucaia, Amontada e Pacujá e ao conversar com muitos beneficiários homens é a busca pelo programa em momento de crises, como desemprego, perda de lavouras (no caso dos agricultores) e casos de empregos informais e precarizados.
A reportagem escutou história de homem que não conseguia colocação profissional e enquanto não recebia o benefício precisava trabalhar por diárias de R$ 30 como servente, capinando lotes.
Segundo ele, o valor não dava para garantir o básico para sua casa, já que não era garantido durante todo o mês essas diárias.
Já entre as beneficiárias mulheres chefes de família está a alta incidência de dependência intergeracional pelo benefício social. São pessoas que já foram “filhas do Bolsa Família” e que hoje sustentam seus filhos com o benefício.
Questionado sobre essa incidência, Daniel Duque, pesquisador da área de Economia Aplicada do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV/Ibre), avalia que o desenvolvimento dos beneficiários na pirâmide social a partir do recebimento do programa só acontece a depender de um número maior de fatores além da força do Bolsa Família.
Para ele, sozinho o programa não vai ter o poder de tirar as pessoas da condição de pobreza e, caso seja cortado, haverá muitos casos de pessoas que retornarão à condição de vulnerabilidade social e até fome.
"Garantir uma renda fixa mínima é obviamente um avanço importantíssimo em relação ao histórico do nosso país".
Mas enfatiza: "O programa é um primeiro passo importante mas não garante solidez social e econômica robusta, pois seriam necessárias políticas sociais permanentes e robustas, mais empregos e políticas educacionais que permitam o crescimento da renda".
Dentro desse contexto, Daniel produziu um estudo que institui a Taxa de Miséria no Brasil e no mundo, que monta um ranking a partir de taxas de desemprego e inflação ao longo dos anos de 2019, 2022 e 2023.
Nessa listagem, o Brasil demonstra evolução, já que apresentava o pior resultado em 2019 e, com a melhora do cenário de emprego puxando o bom desempenho, conseguiu superar Chile e Colômbia na lista.
Daniel destaca que esse cenário positivo em relação ao mercado de trabalho se sustenta pelo avanço do setor de serviços impulsionando a geração de empregos, enquanto o Bolsa Família ajuda indiretamente a reduzir o percentual de pessoas desocupadas, pois reduz o contingente de pessoas em busca de trabalho.
Além do Bolsa Família, os inscritos no Cadastro Único (CadÚnico) possuem outras alternativas de programas sociais no âmbito estadual.
Dois grandes projetos se destacam: o Ceará Sem Fome, lançado em 2023 na gestão Elmano de Freitas (PT), e o Cartão Ceará Mais Infância, lançado em 2017 no governo Camilo Santana. Há ainda o Vale Gás Social, em vigor desde 2020.
No caso do primeiro projeto estadual, além das marmitas distribuídas para pessoas em situação de extrema pobreza, há a possibilidade de recebimento de R$ 300 no Cartão Ceará Sem Fome, que só pode ser utilizado em pontos de venda cadastrados e com uso exclusivo para alimentos, além da distribuição de “quentinhas”. São 53 mil famílias atendidas.
O Cartão Mais Infância integra o Programa Mais Infância Ceará de combate à pobreza infantil e beneficia 150 mil famílias nos 184 municípios do Ceará.
As beneficiárias recebem mensalmente R$ 100 caso possuam crianças com idade entre zero e cinco anos e 11 meses. Em 2024, a previsão é de que o programa receba R$ 193,25 milhões em investimentos.
O outro programa de maior envergadura do Governo do Estado na área social diz respeito ao investimento previsto de R$ 58,3 milhões em 2024 para distribuição de tíquetes de botijões de gás de cozinha de 13 kg.
Somente no primeiro lote distribuído neste ano foram beneficiadas 207,8 mil famílias. Desde 2020, mais de 2 milhões de tíquetes já foram distribuídos às prefeituras, que fazem o repasse conforme o cadastro.
A lista de projetos de transferência não é a única oferta. Segundo a secretária de Proteção Social (SPS), Onélia Santana, outras ações também compõem a política social do Ceará de forma a fortalecer a atenção básica de saúde, educação, cultura e com olhar especial para a empregabilidade.
Um dos projetos de destaque neste sentido é o Criando Oportunidades, em que cearenses inscritos no CadÚnico de todos os municípios têm acesso a cursos em vários segmentos do mercado de trabalho.
No ano passado, todos os municípios do Estado foram beneficiados com pelo menos um curso profissional.
Após a finalização do curso, o Governo também dá apoio para que os profissionais formados também consigam comprar os equipamentos de trabalho.
O objetivo é capacitar mulheres chefes de família cadastradas no CadÚnico, jovens a partir dos 16 anos, trabalhadores em busca de emprego e grupos socialmente vulneráveis.
Em 2023, mais de 47,5 mil pessoas passaram por capacitações nos programas Criando Oportunidades e Empreendedor Criativo, que oferecem formação para pequenos empreendedores nos Centros de Inclusão Tecnológica e Social (Cits), que possuem sete unidades em Fortaleza.
"De fato, nos colocamos nos locais de maior vulnerabilidade que precisam dessas intervenções. Temos também um cientista chefe na SPS para fazer a avaliação das políticas públicas e um sistema de monitoramento e avaliação para analisar, remodelar e ampliar", destaca Onélia, adiantando que para 2025 a intenção é ampliar em 50% o alcance do programa de capacitações.
Recém-saídos de um período de pandemia em que a pobreza aumentou de tal maneira que passou a ser comum a "fila do osso", garantir o que está expresso na Constituição e na Declaração Universal dos Direitos Humanos passou a ser urgente.
A importância dos benefícios sociais foi além do impacto político ou econômico, mas uma forma de garantir o básico para a sobrevivência.
Leandro Bessa, subdefensor geral da Defensoria Pública do Estado do Ceará e autor do livro "O papel da Defensoria Pública na resistência à criminalização da pobreza", pela editora Lumen Iuris, destaca a relação entre deveres do estado como promotor de bem-estar social e o papel do Bolsa Família.
Para Leandro, a partir do crescimento da demanda popular, importantes programas além do Bolsa Família foram lançados em nível estadual e até municipal.
E eles desenvolvem um importante papel na redução da extrema pobreza e insegurança alimentar.
Ele lembra que essa garantia de direito à alimentação só foi implementada na Constituição em 2003 e que, portanto, há obrigação do Estado de prover essa demanda.
O subdefensor geral entende que as condicionantes são necessárias e existe espaço para aperfeiçoamentos de forma a melhorar ainda mais o impacto de programas como o Bolsa Família na população, diminuindo corrupção e fraudes.
Sobre o valor pago, ressalta que ele ainda é aquém do necessário para resolver todas as demandas básicas de uma família.
"Levando em consideração o conjunto de necessidades básicas, o valor é bem inferior, apesar de representar um incremento importante para garantir a segurança alimentar".
"Mas ainda vão ficar restando todas as outras necessidades, como a de moradia (o que acontece muitas vezes de beneficiários que moram em condições precárias - atendemos casos assim na Defensoria), de acesso à educação e saúde. Existem muitos outros direitos que infelizmente ainda precisam de recursos além do que o Bolsa Família oferece", complementa.
Figura conhecida na pequena cidade de Pacujá, Eva Silva do Nascimento, 48, quase caiu nos prantos na única casa lotérica do município após mais um mês em que não conseguiu sacar os R$ 600 de Bolsa Família a que tinha direito até bem pouco tempo. O benefício foi cortado.
Decepcionada, ela disse que sua situação era difícil. Mora sozinha, mas precisa se deslocar até a casa dos pais idosos e doentes para cuidar deles e depois ir trabalhar à tarde na Câmara Municipal.
Ela conta que só não ficou sem renda por conta desse serviço, de meio período, que conseguiu após seu padrinho político ter arrumado um emprego. A maior desconfiança de Eva, no entanto, recai sobre o prefeito, seu ex-patrão e ex-padrinho político.
Eva desconfia que ele "moveu palitinhos" para que seu benefício fosse cortado após rompimento de seu apoio "no momento em que mais precisou de ajuda", quando seu pai precisou de cirurgia de emergência após quadro de câncer de próstata. O prefeito não ajudou, o seu opositor, sim.
O POVO questionou a Prefeitura de Pacujá sobre o caso e recebeu como resposta que uma atualização cadastral havia sido feita no início do ano e que algumas pessoas tiveram o benefício cortado.
Eva havia sido uma das prejudicadas e seu emprego de meio período era a explicação, já que o valor do salário superou o limite do Bolsa Família.
Semanas depois, o então opositor e padrinho político de Eva apareceu nas redes sociais junto do prefeito anunciando uma aliança política.
Ser pobre, agricultor e morador de zona rural não faz de ninguém um cidadão de segunda categoria. Essa afirmação é de Antônio Duarte Rodrigues, 53.
Morador da localidade de Poço Comprido, distante 18 km da sede de Amontada, ele diz que as condições de vida em sua região não são das melhores, principalmente em anos de invernos vigorosos.
Ele conta que a comunidade costuma ficar ilhada sempre que chove muito.
"Não tem condições de sair de casa por causa de uma passagem molhada, já teve até acidente durante esse período invernoso. Minha esposa tem problemas renais, de pressão (arterial) e se precisar de socorro, uma ambulância, não conseguimos".
Ele diz ainda que mesmo entre os que têm a saúde em dias, a travessia de acesso só ocorre de modo arriscado. "Tem de se molhar todinho".
Nesse contexto, destaca que agora a dependência pelos recursos do Bolsa Família aumentaram, já que os prejuízos na lavoura foram grandes.
Mas afirma: "Nem só de benefício social vive o cidadão." Cobra ele da prefeitura ações nas comunidades mais pobres de Amontada.
"Oie :) Aqui é Samuel Pimentel, repórter de Economia do O POVO e apresentador do programa de educação financeira Dei Valor. Qualquer comentário ou sugestão é só falar comigo. Quer curtir mais conteúdos? Vem navegar no OP+"
Especial sobre o cenário do Bolsa Família no Ceará