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Bolsa Família: Dá para viver "muito bem" só com o benefício?
Reportagem Seriada

Bolsa Família: Dá para viver "muito bem" só com o benefício?

Poder de compra do benefício cresceu após retorno do programa em 2023, mas foi em janeiro deste ano que o valor alcançou R$ 679,42 e superou a cesta básica. O POVO mostra de que forma o repasse de recursos aos beneficiários mobilizam a economia de municípios do Interior
Episódio 1

Bolsa Família: Dá para viver "muito bem" só com o benefício?

Poder de compra do benefício cresceu após retorno do programa em 2023, mas foi em janeiro deste ano que o valor alcançou R$ 679,42 e superou a cesta básica. O POVO mostra de que forma o repasse de recursos aos beneficiários mobilizam a economia de municípios do Interior
Episódio 1
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O valor médio que o programa Bolsa Família paga aos beneficiários no Ceará alcançou R$ 679,42 no mês de janeiro.

Após completar 20 anos de criação em outubro de 2023 e ter em seu histórico a contribuição para que o Brasil deixasse o mapa da fome em 2014, foi apenas neste ano em que pela primeira vez o poder de compra proporcionado pelo benefício foi superior ao valor equivalente ao de uma cesta básica.

Montado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o estudo da cesta básica de alimentos dos brasileiros é composto de 12 produtos mínimos para a sobrevivência, que custaram R$ 618,32 em janeiro (mês analisado para termos o comparativo em relação ao valor repassado pelo Bolsa Família).

Poder de compra com o Bolsa Família (em relação ao valor da cesta básica)

 

Vale destacar que a cesta básica do departamento leva em consideração o consumo alimentício básico de apenas uma pessoa. Conforme a própria entidade, o salário mínimo necessário para sustentar uma família de dois adultos e duas crianças foi o equivalente a R$ 6.995,44 em junho passado.

Para o Bolsa Família, o ano de 2023 representou um marco na história da política de assistência social. O valor do benefício foi incrementado pagando o mínimo de R$ 600 e as condicionantes para acesso ao programa foram aperfeiçoadas.

Foi dada atenção extra a lares em que mulheres sejam as chefes de família e em que existam crianças na primeira infância (zero aos cinco anos e 11 meses).

Caixa Econômica Federal em Caucaia lotada em dia de pagamento de benefícios sociais(Foto: Aurélio Alves)
Foto: Aurélio Alves Caixa Econômica Federal em Caucaia lotada em dia de pagamento de benefícios sociais

Em períodos anteriores à pandemia, o valor médio do Bolsa Família era bem menor e o poder de compra era limitado, variando entre 42,9% e 57% do equivalente ao preço da cesta básica.

Supervisor técnico do Dieese no Ceará, Reginaldo Aguiar aponta que o gasto de maior peso para as famílias mais pobres é a alimentação, com quase a totalidade dos ganhos sendo destinada a esses custos. Por isso, considera importante a valorização do Bolsa Família.

Reginaldo lembra que o patamar de pagamentos do programa repõe as perdas ocasionadas pela inflação, já que o índice foi amplamente impactado pelos aumentos nos preços dos alimentos, que, ainda que tenham dado trégua nos últimos meses, estão em nível bem superior ao período pré-pandemia.

Única Casa Lotérica do município de Pacujá é responsável pelos pagamento dos benefícios sociais (Foto: Aurélio Alves)
Foto: Aurélio Alves Única Casa Lotérica do município de Pacujá é responsável pelos pagamento dos benefícios sociais

"O beneficiário do Bolsa Família é aquele que vive em situações calamitosas sem o programa, então eles demandam um tratamento diferenciado para que deixem a condição de vulnerabilidade e alcance o patamar de pessoa que tem a possibilidade de fazer três refeições no dia. O programa tem um olhar humanitário".

Reginaldo ainda enfatiza que transferência de renda não é exclusividade do Brasil, já que na Europa, desde a época das políticas de bem-estar social, e nos Estados Unidos, desde a pandemia, pagam-se auxílios grandiosos.

 

O poder do Bolsa Família no Ceará e o aumento da renda média

Ao fim de 2023, o número de famílias cearenses beneficiadas com o Bolsa Família chegou a 1,4 milhão. Em junho de 2024, chegou a 1,46 milhão.

Todos os 184 municípios possuem ao menos um grupo familiar beneficiado, sendo que o valor médio repassado foi de R$ 678,65.

Somente para o repasse do benefício, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) mostra que o montante repassado subiu em janeiro de 2024 e superou R$ 1 bilhão.

O Bolsa Família foi um dos principais fatores para que o rendimento médio das famílias brasileiras atingisse recorde histórico, de R$ 1.848 por pessoa, por mês, na média nacional.

Isso representa alta de 11,5% ante 2022, conforme pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Esse avanço diz respeito principalmente ao salto da renda dos brasileiros na base da pirâmide.

Valor pago de Bolsa Família varia conforme o perfil; entenda

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Considerando os 40% mais pobres da população, houve um aumento de 17,6%, para R$ 527 por mês por cada pessoa da família, em média.

Já entre os 5% mais pobres da população, pessoas em condição de pobreza e extrema pobreza, o salto foi de 38,5%.

Central de cadastramentos do CRAS, no bairro Jurema, em Caucaia(Foto: Aurélio Alves)
Foto: Aurélio Alves Central de cadastramentos do CRAS, no bairro Jurema, em Caucaia

No Estado, seguindo a tendência nacional, 83,8% das residências cearenses que recebem o Bolsa Família são chefiadas por mulheres.

Fortaleza é a cidade com o maior número de beneficiários. Em dezembro de 2023 eram 334,3 mil famílias, recebendo um valor médio de R$ 670,35.

Depois vem Caucaia (63,8 mil famílias), Juazeiro do Norte (34,9 mil) e Maracanaú (34,1 mil).

Além das cidades mais populosas, com maior número de beneficiários, existem aqueles municípios em que a proporção populacional de famílias que dependem do programa é muito grande.

A localidade com maior valor médio de repasse no Ceará, em janeiro, foi Itapipoca, com R$ 725,06, em média. Na sequência vêm os municípios de Marco (R$ 722,37), de Ibiapina (R$ 719,55), de Amontada (R$ 717,75) e de Itarema (R$ 716,83).

Na série de reportagens “Retratos do Bolsa Família”, O POVO visitou Caucaia, Pacujá e Amontada e conta histórias de famílias que receberam o benefício em 2023.

Elas lembram o seu histórico familiar e do quanto o recurso proveniente do benefício social faz a diferença no seu dia a dia, além do quanto esse benefício move o consumo nos municípios e fortalece a economia local.

Bolsa Família é basilar para redução da extrema pobreza, mas precisa evoluir condicionantes

O objetivo da inclusão de novas condicionantes para a inclusão de beneficiários no Bolsa Família é direcionar os valores para quem mais precisa.

Dentro dessa perspectiva, obrigações como manter a vacinação dos filhos em dia, matrícula e presença na escola são básicas.

 Antônia Borges da Silva, dona de casa e seus três filhos(Foto: Aurélio Alves)
Foto: Aurélio Alves Antônia Borges da Silva, dona de casa e seus três filhos

Mas, para a professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre a Pobreza, Alessandra Araújo, para além das exigências da União para que os candidatos ao benefícios continuem recebendo os valores, o Estado precisa evoluir na oferta de serviços públicos.

Especificamente sobre as exigências em relação à saúde e educação, Alessandra enfatiza que o redesenho do programa é positivo na teoria, mas é preciso garantir na prática o acesso dessa população em (muitas vezes) condição de vulnerabilidade a serviços de qualidade.

"O programa precisa avaliar seu desenho de tal forma que as pessoas que vêm na outra geração não fiquem dependentes ainda desse programa e isso não está dentro das condicionantes. Quer dizer, existe uma condicionante sobre frequência na escola e eu critico há muito tempo o seguinte: Qual a qualidade da escola? Existe algum condicionante para o ente municipal de melhoria da escola?", questiona.

A pesquisadora acrescenta ainda que, para além de garantir o mínimo para a sobrevivência, em torno do Bolsa Família deve ser criado um conjunto de ações para que essa política permita com que os beneficiários criem bases que permitam sua efetiva saída da pobreza.

"Sabemos que o Bolsa Família tem sido efetivo para reduzir a pobreza - principalmente a extrema. Ele não pode ser considerado um programa caro, então o custo benefício em termos econômicos é muito bom. Mas caso o benefício seja retirado, a família volta para pobreza, portanto é preciso combater a pobreza intergeracional", acrescenta.

 

 >> RETRATOS


Caucaia: A fome e o sonho de comprar um fogão

 

Ana Vitória da Silva Oliveira, 21 anos, dona de casa e mãe de quatro filhos(Foto: Aurélio Alves)
Foto: Aurélio Alves Ana Vitória da Silva Oliveira, 21 anos, dona de casa e mãe de quatro filhos

"Eu fiz o pedido do benefício social do governo porque a minha situação não é muito boa", começa a contar a jovem Ana Vitória da Silva Oliveira, 21.

Mãe de quatro filhos, sendo que o primeiro concebeu aos 15 anos, aguardava na fila da Caixa Econômica Federal, no Centro de Caucaia, desde a madrugada.

Ela conta que a sua situação piorou quando a pensão que recebia do pai deixou de ser paga por conta de sua idade.

A vida com o companheiro - que trabalha informalmente num açougue abatendo frangos - e os filhos não é mais a mesma. A condição da casa é precária, em que falta dinheiro até para a alimentação.

Aguardou três meses até a aprovação do benefício. Sem dinheiro, acordou às 2h30min para conseguir uma carona de Pentecoste, onde mora, até Caucaia (distante 1h12 min).

Enquanto conversava com O POVO, uma mulher que também aguardava na fila confidenciou que Ana Vitória não havia comido nada e que precisou ser acudida enquanto esperava, porque passou mal em meio a quase seis horas de espera.

Ana Vitória passou a receber R$ 1.050 de Bolsa Família. "Vai ser uma ajuda muito boa", fala ela, que pensa em adquirir primeiro o básico para os filhos, mas sonha em comprar um fogão para cozinhar para a família.


Amontada: Casal de agricultores e a filha

 

Camila Roseno da Silva Marques, 26 anos e Antônio Soares de Oliveira, 38 anos, agricultores de Amontada: benefício cobre despesas da filha Ludmila(Foto: Aurélio Alves)
Foto: Aurélio Alves Camila Roseno da Silva Marques, 26 anos e Antônio Soares de Oliveira, 38 anos, agricultores de Amontada: benefício cobre despesas da filha Ludmila

Beneficiários do Bolsa Família há aproximadamente cinco anos, o casal de agricultores familiares Camila da Silva Marques, 26, e Antonio Soares de Oliveira, 38, vê no programa uma ótima ajuda para o sustento da filha Ludmila.

Moradores do distrito de Varjota, em Amontada (a 168,90 km de Fortaleza), eles contam que o inverno foi rigoroso na região, mas que as plantações de feijão, milho e jerimum aguentaram bem, garantindo sua subsistência, mas alguns vizinhos não tiveram a mesma sorte e perderam a produção.

Camila conta que a mãe também já foi beneficiária de programa social na sua infância e celebra pelo aumento de valor pago pelo benefício para melhoria da qualidade de vida, mas reclama: "Os preços em geral subiram muito", por isso o poder de compra com o benefício é básico.

Para comprar o básico da alimentação ainda é preciso pesquisar muito. Comprar um alimento diferente... Nem pensar, não sobra.

"O benefício deveria servir não só para alimentação, preciso ter algo caso minha filha tenha algum problema de saúde e precise de remédios, imprevistos", desabafa.

 


Pacujá: Caso de pobreza e falta de perspectiva

 

Antônia Borges da Silva, de Pacujá,  mostra como será o almoço de sua casa(Foto: Aurélio Alves)
Foto: Aurélio Alves Antônia Borges da Silva, de Pacujá, mostra como será o almoço de sua casa

A convivência com panelas quase vazias ao cozinhar se tornou uma situação de “normalidade" por muito tempo na vida de Antônia Borges da Silva.

Analfabeta, ela cria com dificuldades os filhos de 16, 14 e 10 anos, e relata sofrer no comércio, já que pessoas desonestas tomam valores maiores do que o devido por ela.

Ela conta que recebe aproximadamente R$ 800 de Bolsa Família por mês. Além dos filhos, o pai adoentado também mora na residência simples, com quase nenhuma posse. Nem mesmo um fogão a casa possui.

No momento em que recebeu a visita do O POVO, Antônia preparava o almoço no fogão à lenha e uma fumaça tomava de conta da casa, em uma área pobre na sede de Pacujá (a 295,36 km de Fortaleza).

Ela mostrou a panela cheia de água fervente, pouquíssimo tempero e uma quantidade de arroz que caberia em uma mão para ser cozida e distribuída entre os cinco.

Fatias de mortadela iriam complementar o almoço naquele dia, em que o desjejum havia sido café preto puro. E só.

No fim da conversa, Antônia é questionada sobre seu nome completo e idade. Algo de praxe nas entrevistas. O nome, ok, mas a idade, não lembrou.

 

>> PONTO DE VISTA

O Bolsa Família e o cotidiano fora da Capital

O POVO percorreu quase 650 quilômetros de estrada em quatro dias de viagem pelo Ceará. Em meio aos dias chuvosos e quentes de praticamente uma banda do Estado percorrido, do litoral, passando pelo sertão até chegar ao pé de serra.

A primeira parada foi em Caucaia, nos arredores da avenida Edson da Mota Corrêa e com parada no tradicional Mercado do Povo Juaci Sampaio Pontes, ou Feira da Caucaia, onde conhecemos Alexandre Rocha da Silva, 57, dono de um frigorífico há 30 anos no mercado.

Ele destaca que nem os programas sociais têm sido capazes de reavivar os grandes dias do mercado público em relação à concorrência ferrenha das redes de supermercados e reclama da ideia de transferir os feirantes para um novo mercado em construção, mais longe da região central da Caucaia.

 Alexandre Rocha da Silva, 57 anos, açougueiro do Mercado Público no centro da Caucaia(Foto: Aurélio Alves)
Foto: Aurélio Alves Alexandre Rocha da Silva, 57 anos, açougueiro do Mercado Público no centro da Caucaia

Mais de uma centena e meia de quilômetros depois, comprovo mais uma vez que entrevistar é também saber o preço cobrado pelo salgado e suco em frente à Lotérica, no centro de Amontada.

É ouvir sobre a vida e a história das pessoas, de quem vive e conhece a realidade do município tão bem que prefere não ser identificado com medo "de se prejudicar", porque vende salgados para complementar a renda que tem em sua base também o Bolsa Família, principal fonte de recursos da maioria dos clientes.

No segundo menor município do Ceará, a pequena cidade de Pacujá não possui economia pujante. Em busca de informações sobre o que poderia movimentar a pauta econômica e gerar empregos, descubro que décadas atrás os pacujaenses eram conhecidos pela excelência da produção de selas para animais.

Os áureos tempos se foram e a esperança de novos grandes projetos para uma nova guinada produtiva parece ser do tamanho do município, bem pequeno.

Lá, de quase nenhum bem ou posse em uma casa paupérrima visitada pela reportagem, chama atenção a TV de tubo com conversor para tornar possível sua serventia em pleno 2024.

O papel da programação de televisão também me deixa "encasquetado": Seria a TV uma ferramenta para enganar a barriga, que insiste em roncar de fome?

Bastam apenas 650 quilômetros para notar um cotidiano fora do radar da Capital. A pobreza no Interior existe e seu impacto é grande na vida daqueles que vivem com o mínimo, que nem chega a ser o básico.

Leila Cidade, assistente social do CRAS, em Caucaia(Foto: Aurélio Alves)
Foto: Aurélio Alves Leila Cidade, assistente social do CRAS, em Caucaia

Com essa reflexão, lembro da conversa que tive com Leila Cidade, coordenadora do Centro de Referência da Assistência Social (Cras) da Jurema-Caucaia.

Ela contava que as tentativas de fraude eram muitas e que uma força-tarefa era necessária para fazer busca ativa nas comunidades, entrevistar e visitar famílias que pedem benefícios.

Já houve casos de pessoas que viviam bem, em casa duplex, solicitando benefício.

"Infelizmente as pessoas desenvolveram estratégias para acessar benefícios, principalmente o Bolsa Família, sendo casados informam que são solteiros que moram sozinhos, dizem que são catadores de recicláveis..."

Como há cruzamento de dados, o Governo Federal tem liberado apenas uma certa quantidade de cadastros unifamiliares para cada município. Quem atinge a cota, novos pedidos não são liberados.

Então, o morador do duplex com garagem, que frauda para receber o que considera uma "mixaria" de R$ 600, pode estar matando de fome aquele que enxerga esse mesmo valor como tesouro.

Essa e outras histórias cotidianas você vê no Especial Retratos do Bolsa Família. Leia com atenção: Isso é a vida real. 

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"Oie :) Aqui é Samuel Pimentel, repórter de Economia do O POVO e apresentador do programa de educação financeira Dei Valor. Qualquer comentário ou sugestão é só falar comigo. Quer curtir mais conteúdos? Vem navegar no OP+"

  • Texto Samuel Pimentel
  • Edição OP+ Regina Ribeiro, Fátima Sudário e Beatriz Cavalcante
  • Fotos Aurélio Alves
  • Recursos digitais e infográficos Karyne Lane
  • Identidade visual Cristiane Frota
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