De acordo com o dicionário, "rainha" significa “a soberana de um reino”. No futebol, especialmente no Brasil, quer dizer Marta. A alagoana de 37 anos, que saiu da pequena cidade de Dois Riachos-AL e gravou seu nome na história do esporte, foi seis vezes a melhor do mundo, maior artilheira da histórias das Copas — entre homens e mulheres — e diversos feitos incríveis.
O começo, claro, não foi fácil. O primeiro desafio de Marta foi dentro de casa: o pai abandonou a mãe da jogadora com seus outros três irmãos quando a atleta tinha apenas 1 ano. A situação adversa serviu como incentivo à camisa 10, que logo achou na bola seu refúgio. Desde sempre, destacou-se nos jogos do bairro onde morava, algo que gerava preconceito.
“Quando estava no segundo ano desta competição de futsal, o treinador de outra equipe disse: ‘Se deixar a menina jogar vou tirar o meu time’. Aquilo doeu tanto. Eu pensei que estava fazendo algo de errado”, relembrou Marta em entrevista à TV Globo. Na ocasião, ela se referia a discriminação que sofreu em 1997, quando disputou um torneio de futsal.
Apesar dos inúmeros empecilhos, a Rainha não deixou se abalar. Em 1999 atuou no juvenil do CSA, uma das equipes mais tradicionais de Alagoas e da qual Marta já declarou ser torcedora. A passagem pelo Azulão durou pouco, pois logo se transferiu para o Vasco da Gama, no ano de 2000.
No Cruzmaltino, foi campeã do Campeonato Brasileiro Feminino Sub-19. Depois disso foi emprestada para um período no Santa Cruz-MG até ser negociada em 2004, junto ao Umea IK da Suécia, onde sua história começaria a mudar. Logo nas duas primeiras temporadas, foi artilheira do país com 21 e 22 gols, respectivamente. Contribuiu de forma direta para que o clube fosse campeão nacional em 2006, 2007 e 2008.
Todo esse desempenho, claro, acabou sendo reconhecido. Depois de ser a terceira melhor do mundo em 2004 e segunda em 2005, veio, enfim, a primeira de cinco conquistas consecutivas que viria a ter. Em 2006, após uma jornada em campo monumental, foi a principal jogadora do ano. Feito que se repetiu em 2007, 2008, 2009 e 2010. Um recorde entre homens e mulheres — apenas o primeiro, até então.
Após marcar seu nome na Suécia, Marta foi contratada pelo Los Angeles Sol, dos Estados Unidos, onde seguiu encantando a todos. De cara, foi artilheira da liga nacional e levou o time da Califórnia ao segundo lugar do torneio. Ao todo, foram 19 partidas, balançando as redes em 10 oportunidades.
Faltava à Rainha do futebol escrever sua história no Brasil, o que ocorreu no segundo semestre de 2009. A atleta foi emprestada para o Santos, por um curto tempo de três meses. Pode parecer pouco, mas para Marta foi o bastante. Ao lado de um geração histórica do Alvinegro Praiano, que tinha em seu elenco jogadores como Cristiane e Érika, a camisa 10 conquistou a Copa do Brasil e a Libertadores da modalidade — esta de forma invicta. Marta foi a vice-artilheira da competição continental, com sete tentos anotados.
“Parece um sonho e estou muito emocionada. Que este movimento não pare por aqui e que a temporada beneficie as meninas que jogam no Brasil. Sabemos jogar bola. Futebol é para mulher também. Gostaria de ver os clubes grandes se inspirando na iniciativa do Santos e que montassem suas equipes femininas”, declarou a jogadora ao chegar ao Peixe. Em sua apresentação, recebeu a camisa 10 das mãos do Rei Pelé.
Marta ainda teria na sua trajetória clubes como FC Gold Pride-EUA, Western New York Flash-EUA, Tyresö-SUE, FC Rosengard e Orlando Pride-EUA. Foi na Flórida, no ano de 2018, que voltou a ganhar o prêmio de melhor jogadora do mundo, após oito anos desde a última condecoração.
No evento realizado em Londres, Marta, assim como em todos as vitórias, não escondeu a emoção. “Eu realmente estou sem palavras, pois é um momento fantástico. As pessoas falam: 'Você já foi tantas vezes e se emociona sempre'. Faço isso porque representa muito para mim”.
A história de Marta com a Amarelinha merece um destaque à parte. Afinal, o vínculo que começou em 2003, no Jogos Pan-Americanos de Santo Domingo, na República Dominicana. Lá, já deixaria seu cartão de visitas, ganhando a medalha de ouro com a seleção brasileira. No mesmo ano, disputou o primeiro Mundial, deixando sua marca em três de quatro confrontos.
Porém, seria em 2007 que a alcunha de Rainha faria total sentido. Essa temporada foi mágica tanto para ela quanto para o esporte feminino brasileiro. No Rio de Janeiro, o Brasil foi novamente medalha de ouro dos Jogos Pan-Americanos, com Marta incomodando as adversárias por 12 oportunidades, sendo a principal goleadora do certame. A decisão daquela edição foi diante da temida equipe dos Estados Unidos. A Canarinho não tomou conhecimento e goleou por 4 a 0, em pleno Maracanã lotado.
Este resultado empolgou os torcedores para o que viria alguns meses depois: Copa do Mundo. Na China, o Brasil se credenciava como uma das principais candidatas a conquistar a taça. No Grupo D, o time comandado à época por Jorge Barcellos estava junto das anfitriãs, Dinamarca e Nova Zelândia.
A primeira fase foi impecável. Goleadas sobre as neozelandesas e dinamarquesas por 4 a 0 e 5 a 0, respectivamente, e um triunfo magro por um tento de diferença sobre as chinesas.
Nas quartas de final, um embate complicado contra a Austrália que foi vencido por 3 a 2. Na semifinal, mais uma vez os Estados Unidos pelo caminho. Mas, assim como no Rio, placar elástico, um novo 4 a 0, e vaga na grande final.
A decisão foi frente à forte Alemanha. Era a primeira grande chance de Marta ganhar o principal torneio da modalidade. No entanto, as brasileiras foram superadas por 2 a 0 e encerraram com o segundo lugar. A camisa 10 terminou como melhor jogadora da Copa e artilheira, com sete gols. Em 2011 e 2015, a equipe participou de mais dois Mundiais, porém, em ambos, foi eliminada nas oitavas de final.
No ano de 2008, o Brasil disputou as Olimpíadas de Pequim e novamente ficou com a prata. Desta vez, de forma dramática, com um revés contra os Estados Unidos, onde as americanas marcaram seu tento decisivo na prorrogação.
Depois de uma participação frustrada nos Jogos Olímpicos de Londres-2012, a chance para Marta e sua histórica geração ficarem com o ouro seria no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro. Entretanto, a boa campanha que vinha fazendo acabou sendo parada pela Suécia, nos pênaltis. No duelo pelo bronze, a seleção também não conseguiu passar pelo Canadá.
Na Copa do Mundo 2019, disputada na França, Marta balançou as redes em apenas duas oportunidades. Os números baixos e a saída precoce, novamente nas oitavas de final, até poderiam marcar um certame apagado da camisa 10. Porém, mais uma vez, a melhor da história provou por que é conhecida desta forma.
Isso porque os dois gols foram suficientes para a alagoana se tornar a maior artilheira da histórias da Copas, entre homens e mulheres. A brasileira ultrapassou o alemão Miroslav Klose e chegou aos 17 tentos, isolando-se no primeiro lugar do ranking.
“A gente está quebrando muitas barreiras. Esse recorde representa bastante. Pois não é só a Marta, mas é um recorde das mulheres. Muitos dizem ainda que o futebol é para os homens, mas este recorde é tanto do futebol masculino quanto do feminino”, pontuou.
A “last dance” de Marta em Copas não aconteceu da forma que era esperado. No Mundial realizado este ano, na Austrália, o Brasil não foi bem e acabou sendo eliminado ainda na fase de grupos. Marta atuou em todas as partidas — apenas uma como titular.
Depois do confronto frente à Jamaica, que marcou a saída da seleção, a jogadora deu uma forte declaração sobre o futuro do esporte feminino: "Não era, nem nos meus piores pesadelos a Copa, que eu sonhava. Mas é só o começo. O povo brasileiro pedia renovação, está tendo renovação. Eu terminei aqui, mas elas continuam”, disse.
“A Marta acaba por aqui. Estou muito grata pela oportunidade que tive de jogar mais uma Copa. Continuem apoiando, porque elas continuam”, declarou em entrevista pós-jogo, concedida à Globo.
O futuro de Marta ainda é incerto, A jogadora ainda não deixou claro se irá ou não continuar brilhando nos gramados. O fato é que o legado já foi deixado e pode ser visto a cada dia no Brasil. O cenário atual em relação ao de 2000 — quando a camisa 10 iniciou a carreira — é bem distinto.
“Eu não tinha uma ídola no futebol feminino. Como eu ia entender que eu poderia ser uma jogadora, chegar à seleção, sem ter uma referência? Hoje a gente sai na rua e os pais falam: 'Minha filha quer ser igual a você'. Hoje temos nossas próprias referências. Não teria acontecido isso sem superar os obstáculos", finalizou.
De qualquer forma, o esporte e seus espectadores foram privilegiados em poder acompanhar 486 vezes a melhor de todos os tempos.
Assista a lances incríveis da jogadora Marta
https://www.youtube.com/watch?v=253r6FlLedk
https://www.youtube.com/watch?v=k-K2U5HP25I
Série vai explorar personagens - famosos e anônimos - para destacar histórias de vida