Nas profundezas da caatinga piauiense, onde a terra pulsa com a sabedoria sedimentada ao longo dos séculos, nasceu em 10 de dezembro de 1959, Antônio Bispo dos Santos.
Ativista político e militante no movimento quilombola e nos movimentos de luta pela terra, atuou na Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí (Cecoq/PI) e na Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
Nego Bispo escreveu artigos e livros sobre a história de resistência do povo negro. Por seus feitos, poderia ser definido como muitas coisas: intelectual, filósofo, antropólogo, escritor, mas isso seria incoerente com sua biografia.
Ele próprio definia-se como um lavrador quilombola que semeou muito mais do que brotos.
Foi ele quem plantou as primeiras sementes de uma cosmologia contracolonial.
Em seu cerne, estava um modo de vida em completa harmonia com a natureza, em constante diálogo de pares e entre os diferentes, num movimento de eterna confluência.
Criado no semiárido, Nego Bispo aprendeu desde cedo a viver em comunhão com a natureza, a partilhar e a compreender a terra não como mercadoria, mas como um espaço de uso comum onde "a terra dá tudo o que a gente merece", em suas palavras.
Sua primeira escola foi o quilombo, seus primeiros mestres, a "geração avó". Era com esse termo que ele definia o grupo de pessoas que detém e transmite saberes, memórias e simbologias fundamentais para a continuidade do povo e de sua cosmovisão.
Foi iniciado nos saberes de seus ancestrais, como os de Mãe Joana, que lhe ensinou a máxima "A terra dá, a terra quer", uma síntese da relação cíclica e recíproca com o mundo que o cerca.
Sua educação formal se estendeu até a oitava série, mas sua verdadeira formação se deu na oralidade e na troca que estabeleceu com quem cruzou seu caminho.
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Além disso, a observação da agricultura comunitária, a "
Essa base sólida o ensinou que o saber não é propriedade, mas um bem que cresce ao ser compartilhado.
A visão comunitária explica também porque Nego Bispo não limitava o quilombo a um local físico.
Quilombo é, na verdade, um cosmo, um espaço de relacionamentos orgânicos onde a vida é priorizada antes do ter.
"O quilombo não é só a Terra, não. O quilombo é a Terra, é o vento, é o sol, é o mar, é a água… O quilombo é o cosmo. E enquanto houver cosmo, existe quilombo"
Nego Bispo tensionou também o debate sobre o aquilombamento, defendo a prática como uma forma de existência que se mantém e resiste, baseada em saberes ancestrais e em uma relação profunda com a terra e todos os seus compartilhantes.
Ser quilombola, ou "aquilombar", transcende a mera ocupação de um espaço físico; seria, antes de tudo, a prática de um modo de vida baseado em relacionamentos, diversidade e não um modo de vida de troca, mas de compartilhamento.
Até os anos 90, a trajetória de Nego Bispo o levou a participar ativamente do movimento sindical e partidário, além de outros movimentos de lutas sociais.
No entanto, em meados da década, chegou a conclusão que direita e esquerda utilizavam o mesmo repertório político - igualmente colonizado pelo pensamento europeu, branco e monoteísta.
Por isso, se desvinculou do partido e do movimento sindical após 1996, embora mantivesse amizade com os participantes. Enquanto isso, uma das formas que encontrou para ganhar a vida foi como adestrador de animais.
Essa experiência teria lhe revelado a profunda semelhança entre adestrar e colonizar, pois ambos se baseiam no princípio de que "quem nomina, domina".
Segundo ele, o primeiro passo para dominar um animal é dar-lhe um nome. Quando as pessoas dão nomes aos seus cachorros, por exemplo, não costumam considerar se o animal gosta daquele nome.
Querem, meramente, estabelecer uma relação de domínio e esperam que o pet comporte-se de acordo com suas estritas instruções. Sem espaço para o diferente, para o diálogo, para a espontaneidade.
Essa percepção foi transposta para o contexto das relações coloniais, argumentando que os colonialistas aplicam a mesma lógica: as primeiras ações dos colonialistas são nomear lugares, pessoas e gestos como forma de impor seu domínio.
A partir dessa compreensão, ele propôs a "Guerra das Denominações", uma estratégia para combater o colonialismo através da criação de novas nomenclaturas que subvertessem a ordem imposta.
Conheça alguns termos que Nego Bispo propôs novas denominações
Desenvolvimento
Desenvolvimento dá uma ideia de desconexão e deslocamento
Saberes científico e empírico
Não há hierarquia de saberes, todos são válidos e construídos coletivamente
Pensamento Linear
O pensamento circular não é limitado, está sempre em movimento e permite múltiplos diálogos ao mesmo tempo
Ecologia
Rompe com a ideia de estar fazendo "bem" ou "mal" a natureza, e propõe uma relação harmônica e de troca
Violência Simbólica
Descreve o medo e a aversão que a sociedade eurocristã monoteísta nutre por tudo aquilo se difere dela
Descobrimento ou Invasão do Brasil
Se desloca da lógica binária e colonial, abrangendo a retomada da terra, modos de vida, línguas, águas, ventos e saberes tradicionais
Nego Bispo era um profundo crítico de todas as instituições coloniais. Segundo ele, era preciso sair de lógicas baseadas em experiências eurocêntricas, monoteístas e brancas.
Por isso, priorizava a oralidade como forma de transmissão de saberes e de resistência.
Ele afirmava que "mesmo que queimem a escrita, não queimarão a oralidade", e via seu próprio livro como uma forma de "ensinar o povo das escrituras a falar".
Um dos motivos que o afastou do movimento sindical foi justamente a avaliação de que a esquerda política adotou as regras do jogo impostas por quem os rivalizava.
Essencialmente, “lutar contra o capitalismo” era o mesmo que lutar contra um instrumento, e não contra a causa raiz, o colonialismo.
O contracolonialismo ganha aí seus contornos iniciais, sendo classificado por ele como um modo de ser, e não apenas um conjunto de ideias acadêmicas.
Existir, então, seria abraçar a ideia de que a vida está em um constante movimento não-linear.
Por isso, ele propunha "animalizar os humanos para desumanizar a animalidade", buscando um reequilíbrio nas relações com todas as formas de vida.
O contracolonialismo questiona também o trabalho como um "castigo" bíblico, defendendo a "preguiça" e a "vadiagem" como modos legítimos de vida que permitem desfrutar da natureza e da convivência.
Para ele, riqueza era ter tempo, lazer e a capacidade de compartilhar, não acumular bens materiais ou dinheiro.
Nego Bispo também considerava as universidades como "ninhos do colonialismo" que "roubam" os saberes orgânicos das comunidades, os sistematizam e os vendem como mercadoria.
Por isso se recusou a aceitar títulos honoris causa por entender que o saber quilombola é coletivo, não individualizável. Além disso, não via como poderia se encaixar em um dos pilares da
Pensar a circularidade e continuidade da vida. Muito além de discutir propósito e origem da vida, para o pensamento contracolonial, a circularidade do pensamento é uma oposição direta ao pensamento linear cartesiano, que tem um "limite" ou "fim".
Para ele, a roda da vida é um contínuo "começo, meio e começo", sem um ponto final. Em qualquer ponto que se entre ou saia da roda, estará sempre no começo ou no meio, mas nunca no fim. Essa circularidade é uma característica das manifestações culturais afro-brasileiras, como a capoeira, o samba e o batuque, por exemplo, que são dançados e praticados em roda.
Uma das aplicações mais claras desse conceito é na transmissão de saberes entre as gerações. Nego Bispo afirma que a geração avó é o começo, a geração mãe é o meio, e a geração neta é novamente o começo.
Esse ciclo garante que o conhecimento, as experiências e os modos de vida sejam passados adiante e continuem a existir, sendo reeditados e enriquecidos, sem que se percam. Isso difere do modelo colonial de educação, que muitas vezes desconsidera os saberes ancestrais e orgânicos em favor do conhecimento escrito e linear.
A mesma perspectiva também se estende à relação com a natureza. Em vez de uma visão de "preservação" ou "fim" dos recursos, a ideia de "começo, meio e começo" sugere uma relação de envolvimento e biointeração.
A terra dá e a terra quer, e se nos relacionamos com ela de forma cíclica – dando e recebendo –, a vida continua. Assim, o que apodrece na terra se decompõe e a retroalimenta, não é lixo, mas parte de um ciclo orgânico.
Logo, quando se propõe uma ação direta que nega o colonizador e exalta a tradição e ancestralidade, as comunidades antes subjugadas, como os quilombolas, passam a não ter "fim".
Elas continuam a existir e a se manifestar apesar das tentativas de apagamento. O conhecimento, assim, deve ser compartilhado e não mercantilizado, crescendo ao ser passado adiante, como rios que confluem e se tornam maiores.
A confluência se distingue da "coincidência", que não tem explicação e nega a origem dos acontecimentos. A confluência, ao contrário, explica os encontros. E quando nos encontramos com o pensamento de Nego Bispo, é como achar o começo. De novo.
Aprofunde-se no pensamento contracolonial
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