Essa deveria ser uma reportagem sobre corredores ecológicos, passagens que ligam fragmentos de unidades de conservação para permitir a transitação segura de animais silvestres e de flora entre um canto e outro. A ideia era explorar a presença desses corredores no Ceará, em uma reportagem recheada de dados, entre eles os de atropelamentos de animais silvestres.
Eu só não imaginava que seria praticamente impossível conseguir informações sobre esses acidentes no Ceará.
Por aqui, os animais silvestres basicamente morrem por atropelamentos sem estardalhaço. Não porque as mortes sejam poucas, rápidas e imperceptíveis; pelo contrário, elas são dolorosas e impactantes. O Instituto Pró-Silvestre (IPS), reconhecido pelo atendimento de animais silvestres acidentados, tem um rol de casos de atropelamento sensíveis.
O mais emblemático é o da onça-parda (Puma concolor) Rudá, datado de abril de 2022. O macho de dois anos de idade estava fugindo de um caçador em Martinópole (CE), ao lado da mãe, após ter sido alvejado em várias partes do corpo. Em dado momento da fuga, eles alcançaram uma rodovia. A mãe de Rudá conseguiu atravessar, ele não. Foi atingido por um carro e ficou com fraturas nas duas patas dianteiras.
Quando o Corpo de Bombeiros chegou para atender o felino, a mãe adentrou na mata. Com muito esforço, o IPS conseguiu reconstruir uma das patas, mas a outra precisou ser amputada. Não bastasse isso, o raio-x indicou dez projéteis de chumbo nos órgãos da onça.
Nenhum zoológico ou santuário quis receber a onça de três patas, que jamais poderia ser devolvida à natureza. Desde então, Rudá ficou em um pequeno alojamento do Centro de Triagem de Animais Silvestres do Ceará (Cetras/CE), e morreu no dia 10 de agosto de 2023, provavelmente consequência da intoxicação por chumbo.
A história de Rudá, no entanto, só existe nos registros do IPS. Na minha tentativa de encontrar qualquer dado de atropelamento de silvestres no Ceará, contatei
Depois, a secretaria e a superintendência de Meio Ambiente do Ceará (Sema e Semace), a Secretaria de Proteção Animal do Ceará (Sepa), o Corpo de Bombeiros, a Polícia Civil do Ceará e o
Já nas Universidade Federal do Ceará (UFC) e Universidade Estadual do Ceará (Uece), existe apenas uma pesquisa, em cada, analisando atropelamentos e outros fatores de risco nos campi do Pici e Itaperi, respectivamente. Falei — quem sabe em uma tentativa desesperada — até com o Museu de História Natural do Ceará (MHNCE), perguntando quantos dos animais taxidermizados eram provenientes de atropelamentos, como foi o caso da onça-parda Rudá.
O que a IPS pode afirmar é que, entre 2022 e 2024, foram atendidos pelo suporte veterinário da organização 39 animais atropelados. Obviamente, esse número está muito longe de contemplar o verdadeiro cenário do Ceará. Há um precipício entre essa estatística e qualquer outra que indique o real número de atropelados no Estado.
O “apagão” de dados é consequência da dificuldade de coleta e da ausência de equipes dedicadas a monitorar os mais de nove mil quilômetros de estradas pavimentadas no Ceará. Todas as informações sobre atropelamento de animais silvestres, em nível nacional, dependem de pesquisas pontuais de pesquisadores universitários.
Talvez o modelo mais bem sucedido de coleta nacional foi o Sistema Urubu, da Universidade Federal de Lavras (UFLA). O sistema era constituído por um aplicativo gratuito pelo qual qualquer pessoa poderia enviar fotos de flagras de animais vitimados nas rodovias. Uma vez com a imagem e a localização georreferenciada, especialistas analisavam o dado e, se homologado, ele apareceria em um mapa interativo com a imagem e o nome do autor do registro.
Infelizmente, o projeto foi suspenso por falta de financiamento. Mesmo assim, a adesão ao aplicativo foi muito maior na região Sudeste, o que reforça a fragilidade dos dados voltados para o Ceará. De acordo com o professor Alex Bagel, um dos criadores do sistema e coordenador do Centro Brasileiro de Estudos em Ecologia de Estradas, os dados do Sistema Urubu também não podem ser compartilhados porque, pela nova
“No Sistema Urubu, mais de 80% dos registros eram de animais de médio e grande porte”, explica o pesquisador. Essa amostragem, no entanto, é tendenciosa. Primeiro porque, em viagens de carro, é mais fácil enxergar grandes animais vitimados em detrimento dos pequenos.
Além disso, a sensibilização para cada tipo de animal é diferente. A famosa “fofofauna” — mamíferos e aves socialmente vistos como bonitos — ganha mais empatia que répteis e anfíbios, por exemplo. “Ninguém para pra contar que um sapo foi atropelado. Já a onça-pintada (Panthera onca) vira notícia nacional”, pontua Alex.
Fato é que o atropelamento de animais silvestres é um fator de desequilíbrio ambiental pujante. A morte de um predador, como as onças-pardas, implica a quebra de um dos elos mais importantes no equilíbrio ecológico, já que os predadores são responsáveis pelo controle populacional das espécies. Já outras espécies, como os macacos, têm a função de dispersar sementes, e assim por diante.
“A magnitude de um atropelamento de um silvestre é muito grande, quando você para pra pensar”, reflete o médico-veterinário Bruno Pessoa, presidente do Instituto Pró-Silvestre e doutorando do Laboratório de Estudos Ornitológicos (Labeo/Uece). “Diferente dos animais domésticos, os silvestres têm um papel, uma função ecológica a fazer.”
Além disso, esses atropelamentos traduzem-se em acidentes de trânsito envolvendo pessoas. A depender da força do impacto com animais de grande porte, como onças e capivaras, pessoam podem ter lesões graves e demandar atendimento médico. Também faltam dados que relacionem atropelamentos de fauna e acidentes entre humanos. O DataSUS, por outro lado, indica com detalhes os acidentes envolvendo humanos: entre 2013 e 2023, por exemplo, o sistema aponta que 3.130 pedestres morreram após atropelamento de algum tipo.
Em caso de atropelamento de animais silvestres, ligue para o Corpo de Bombeiros (193) ou para a Polícia Militar (190).
De acordo com o presidente do Instituto Pró-Silvestre, a organização cearense recebe muitos cágados, raposas, cassacos (gambás) e aves grandes, como garças. Certa vez, chegou uma jiboia com a coluna vertebral fraturada, o que, nesse caso, atinge diretamente o sistema nervoso do animal. “Alguns indivíduos a gente consegue dar estabilidade, mas tivemos um caso de uma cobra que não conseguia defecar sozinha, só por estímulo”, lamenta Bruno. Ela foi encaminhada para o Santuário Répteis e Companhia, localizado em Juazeiro do Norte (CE).
Dos 39 casos de atropelamento do IPS, sete foram cágados e seis eram cassacos (gambás). Os círculos estão dimensionados pela quantidade de casos de indivíduos da mesma espécie. Clique nas fotos para ver detalhes:
“A gente recebe muita foto de animais que são atropelados e (os humanos) deixam na estrada, (o que impede o resgate por causa do tempo)”, comenta. Foi o que ocorreu com um bugio, também conhecido como guariba, espécie de macaco ameaçada de extinção e que tem uma população rara no Ceará: os guaribas-da-Caatinga (Alouatta ululata) que moram no Parque Estadual das Carnaúbas.
Nacionalmente, há informações dispersas e amplamente concentradas nas regiões Sudeste e Sul. Uma pesquisa publicada em 2018 na revista científica The Ecological Society of America reuniu 29 anos de dados (1988 a 2017) de atropelamento no Brasil, coletados entre 26 estudos científicos publicados e 45 comunicações pessoais. Foram 21.512 registros de vítimas, dos quais 83% foram identificados em nível de espécie (450 espécies). Veja no mapa abaixo:
Segundo essa pesquisa, as espécies com maior número de registros são o gambá (Didelphis albiventris), com 1.549 mortes, a ave tiziu (Volatinia jacarinai), com 1.238, o cachorro-do-mato (Cerdocyon thous), com 1.135 casos, a cobra-d’água (Helicops infrataeniatus), 802, e o sapo-cururu (Rhinella icterica), com 692 registros de atropelamento.
Algumas dessas espécies coincidem com as mencionadas por Bruno Pessoa nas experiências do IPS, como o cachorro-do-mato, também conhecido como raposa ou lobinho. “Semanalmente nós temos raposas atropeladas”, afirma. No entanto, cada região do Brasil terá um grupo diferente de espécies afetadas, reforça o professor Alex Bagel.
“No Sul, a capivara (Hydrochoerus hydrochaeris) é uma das espécies que mais morre. Em São Paulo, com a Mata Atlântica, temos muitas onças-pardas e tamanduás. No Pantanal, a anta (Tapirus terrestris)”, exemplifica o professor. Aí entra outro problema: a falta de sensibilização para com a Caatinga.
“Essa é uma falha. As pessoas acham que a Caatinga não tem vida, elas desconhecem a própria fauna”, afirma Bruno. “A nossa biodiversidade é muito grande”, reafirma, mas se nós a desconhecemos, é difícil sensibilizar a sociedade para a provável epidemia de atropelamentos no Estado.
Aliás, esperar que as unidades de conservação (UC) cumpram toda a função de proteger a fauna é equivocado. No Ceará, muitas UCs estão próximas de ou são cortadas por estradas, o que pode ser um problemão para a fauna local. Digo isso porque, durante minha apuração, indicaram-me um estudo publicado em julho de 2024 na revista científica Austral Ecology, realizado em uma área protegida da Amazônia paraense.
Nele, em dois anos de monitoramento, os pesquisadores registraram 2.795 animais atropelados em uma área protegida no oeste do Pará. Foram cerca de 14 animais mortos por dia, mas o número real pode ser até 40 vezes maior. Isso porque muitas carcaças desaparecem com as chuvas ou outras condições climáticas, ou então viram comida de outros animais antes de serem catalogadas pelos humanos.
Diferente de outros estudos, essa pesquisa indicou que os anfíbios são os mais afetados pelos atropelamentos, “apesar de serem os mais negligenciados nos monitoramentos de animais atropelados”. Aqui, anfíbios são a maioria dos casos (54%), seguidos de répteis (22%), mamíferos (17%) e aves (8%).
O ideal seria existir um banco de dados nacional e integrado com essas informações. Infelizmente, cada estado terá um tipo de coleta diferente — se houver —, em geral presentes nas rodovias concedidas a empresas privadas ou feitas por grupos de pesquisa acadêmicos.
De qualquer maneira, as informações que já existem embasaram a criação do U-Safe, um aplicativo da empresa EnvironBIT, fundada pelo professor Alex Bager. A iniciativa mapeou 401 mil quilômetros de estrada no território nacional, estabelecendo as zonas de risco de atropelamento do Brasil inteiro.
Eles fizeram isso com base nos dados de pesquisas publicadas e coletas próprias, estabelecendo variáveis que condicionam o atropelamento. São mais de 600 variáveis analisadas, tanto relacionadas aos animais mais afetados, quanto às características das estradas. Ou seja, se o atropelamento ocorreu em uma estrada reta, curva, em subida, ou descida; e também qual o tipo de comportamento do animal vitimado.
Com isso, eles podem indicar um mapa de risco das estradas. O aplicativo (por enquanto, disponível apenas para empresas contratantes) funciona como um Waze: enquanto você estiver dirigindo, ele avisará se você está em uma área de maior ocorrência de atropelamentos, recomendando-o diminuir a velocidade. Os dados variam entre dia e noite e local.
“Todos nós temos corresponsabilidade no atropelamento”, frisa o professor. “Quase tudo que consumimos no Brasil é transportado por rodovia, por caminhão; e isso é motivado por um comércio, pelos consumidores. Todos nós deveríamos pensar em como minimizar esse impacto”, defende.
O objetivo inicial de ir atrás dos dados de atropelamento de animais no Ceará era embasar a importância da criação de corredores ecológicos no Estado. Corredores ecológicos são passagens naturais que unem fragmentos de unidades de conservação, permitindo a transitação segura de fauna e flora — ocorre que as rodovias são grandes obstáculos, reduzindo a eficácia desses corredores.
Sem dados sobre atropelamento de animais silvestres, é inviável projetar políticas de conservação que levem em consideração o hábito natural dos animais de se locomoverem. Ou seja, só criar unidades de conservação não é suficiente para garantir a segurança dos animais; sem estatísticas, estamos totalmente no escuro sobre a eficácia das UCs, quando considerados os fatores urbanos e rurais do entorno.
A boa notícia é que a Secretaria de Proteção Animal do Ceará (Sepa) deve começar ainda nesta semana (a primeira de setembro de 2024) a organização para fazer o levantamento de dados de atropelamento de fauna silvestre. Quem vai encabeçar o projeto é a Célula de Silvestres.
Entendida a dimensão do apagão de dados sobre atropelamento de animais silvestres no Ceará, finalmente podemos discutir sobre a solução: os corredores ecológicos. No próximo episódio, vamos explicar como os corredores ecológicos funcionam, se o Ceará tem corredores eficazes, e também como podemos implementar estratégias que criem passagens seguras para as faunas urbana e silvestre.
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