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Moradores de Pacatuba impedem retirada de turbina do avião da Vasp
Reportagem Seriada

Moradores de Pacatuba impedem retirada de turbina do avião da Vasp

| Tragédia da Aratanha | 40 anos depois do acidente que matou 137 ocupantes do voo 168, Corpo de Bombeiros do Ceará tenta remover turbina para o museu da Corporação militar
Episódio 5

Moradores de Pacatuba impedem retirada de turbina do avião da Vasp

| Tragédia da Aratanha | 40 anos depois do acidente que matou 137 ocupantes do voo 168, Corpo de Bombeiros do Ceará tenta remover turbina para o museu da Corporação militar
Episódio 5
Tipo Notícia Por

 

 

Durante as filmagens do "Voo 168 - a tragédia da Aratanha", produção do O POVO Mais (OP ), um flagrante fora do roteiro sobre os 40 anos do desastre com o Boeing 727-200 da Vasp, no Ceará. Perto da queda d'água onde o avião se despedaçou, mais de 10 bombeiros militares arrastavam com dificuldade uma das turbinas da aeronave. No acidente, ocorrido em 8/6/1982, nenhuma das 137 pessoas do voo sobreviveu ao impacto contra a serra mapeada no município de Pacatuba.

A cena da remoção do que restou da turbina para o Museu do Corpo de Bombeiros, em Fortaleza, foi incorporada à narrativa do primeiro longa-metragem do OP . O acaso surpreendeu a equipe do filme e chocou um dos principais personagens do documentário. O capitão aposentado Manoel Barbosa, 65, militar do Corpo de Bombeiros que participou em 1982 do resgate dos corpos, estava inconformado com a "surpresa".

Para o oficial, a turbina não poderia ser retirada do lugar onde o avião caiu e vitimou, instantaneamente, 128 passageiros e 9 tripulantes. "No meu entender, os destroços da aeronave pertencem ao local do sinistro. Já integram a memória e atraem visitantes para trilhas na serra da Aratanha", avaliou o militar da reserva.

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"Criou-se um burburinho e uma mobilização, via telefonemas e mensagens de whatsApp, se fez para impedir a remoção da turbina do Boeing da Vasp"

 

No dia do flagrante, 22 de novembro do ano passado, a notícia se espalhou rapidamente entre moradores da serra e da sede da cidade de Pacatuba. Criou-se um burburinho e uma mobilização, via telefonemas e mensagens de whatsApp, se fez para impedir a remoção da turbina do Boeing da Vasp.

Um guia de turismo, que pediu para não ser identificado, se comunicou com o dono do sítio Boa Vista - local onde estão duas turbinas e uma parte do trem de pouso do 727-200, e avisou da movimentação na mata. Por ser propriedade particular e não ter havido diálogo com o proprietário, a operação do Corpo de Bombeiros do Ceará foi cancelada depois de horas de esforço para tentar arrastar a peça.

"O dono do sítio ligou para uma autoridade em Fortaleza e um telefonema impediu que o turismo, em torno da curiosidade sobre o lugar do acidente, fosse prejudicado", contou o guia de turismo de Pacatuba.


"Durante a operação, alguns populares da comunidade pediram para que a turbina permanecesse, pois o local serve como ponto turístico"

 

Em conversa com O POVO, a assessoria de comunicação da instituição militar informou que "pediu autorização dos órgãos competentes para trazer a turbina para o Museu do Corpo de Bombeiros, uma vez que essa é uma das ocorrências emblemáticas da nossa corporação".

No entanto, durante a operação, "alguns populares da comunidade pediram para que a turbina permanecesse, pois o local serve como ponto turístico. E como estamos sempre do lado da comunidade, achamos o pleito justo e resolvemos deixá-la no lugar".

A peça, porém, não foi recolocada no lugar original. Um vídeo filmado por um trabalhador da serra e publicado no Instagram mostra a turbina sendo jogada de um alto próximo à queda d'agua, o que revoltou moradores e guias da Aratanha. 

 

Para assistir ao documentário Voo 168 - A Tragédia da Aratanha no OP+


 

"Não há nenhuma intervenção municipal no lugar do acidente (memorial às vítimas, sinalização, informações sobre o desastre e a serra), porque o local pertence a uma Área de Preservação Ambiental "

A assessoria de imprensa da Prefeitura de Pacatuba informou que desconhecia a operação para a remoção do fragmento do avião. E afirmou "que não há nenhuma intervenção municipal no lugar do acidente (memorial às vítimas, sinalização, informações sobre o desastre e a serra), porque qualquer movimento que altere a natureza desse patrimônio imaterial, deve ter autorização da Secretaria do Meio Ambiente do Ceará. Logo, o local pertence a uma Área de Preservação Ambiental (APA)".

Da sede de Pacatuba para o local do desastre com o 727-200 Vasp, onde foram encontrados restos mortais das 137 vítimas do desastre e destroços do avião, são quase duas horas de caminhada na serra. Trilha feita com guias de turismo e segurança.

 

 

>> Entrevista

Local do acidente da Vasp, no Ceará, precisa de estratégia de preservação e acesso na serra da Aratanha

 Para o museólogo Saulo Moreno Rocha, do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (Mauc), a decisão para a remoção de um objeto – que faz parte da memória de um lugar – deve passar por discussões com o poder público e a população. Ele ressalta, porém, que vestígio abandonado a céu aberto sem estratégia de conservação e acesso – a exemplo dos pedaços do avião da Vasp – não significa preservação do evento histórico ocorrida ali.

Confira a conversa com Saulo Moreno, mestre em Museologia e Patrimônio pelo Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio (PPG-PMUS)/UNIRIO/MAST (Demitri Túlio).

Saulo Moreno Rocha, museólogo do Mauc(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Saulo Moreno Rocha, museólogo do Mauc

O POVO – Os resquícios do avião devem permanecer no local, como quer a população?

Saulo Moreno Rocha - Como museólogo, o que posso afirmar é que a musealização de qualquer bem cultural ou evidência histórica deve ser feita, sempre que possível, a partir de uma avaliação ampla, crítica e democrática sobre os casos concretos e específicos.

Musealizar significa transformar em museu ou transferir algo para um museu. Existem algumas modalidades de musealização: a ex-situ, em que bens, objetos ou evidências são retirados de seus contextos originais ou de procedência e é feita uma recontextualização em museu, o que submete esse material a regras específicas de guarda, conservação, documentação, acesso e exibição; a in situ, quando não ocorre transferência ou mobilidade dos bens, pois eles são preservados e acessados no próprio contexto em que estejam inseridos, mas também recebem atenção especial e são tratados tecnicamente para que sejam comunicados e acessados.

Existe ainda a musealização no digital e a musealização temporária, quando um bem não é necessariamente incorporado a um acervo de museu, mas pode ser integrado por um período de tempo determinado a esse contexto, como em exposições temporárias ou de curta duração.

OP – Para uma retirada das peças, a população precisaria ser ouvida?

Saulo Moreno – Tendo em vista tais modalidades de musealização, a ativação de qualquer uma dessas possibilidades deverá levar em consideração a realidade específica que se pretende musealizar, os interesses em jogo, os valores atribuídos por diferentes sujeitos sociais e, antes de tudo, o interesse público, avaliando também as possibilidades de garantia de conservação e acesso.

Acho que escutar a população é essencial para se construir um consenso acerca do futuro dos fragmentos do avião e se eles deverão permanecer no terreno em que atualmente estão ou se deveriam ser deslocados para um museu.

Trata-se de um processo de negociação que deve ser construído pelas instituições envolvidas, com a escuta e participação ativa de todas as pessoas interessadas e com o acompanhamento de um(a) profissional Museóloga(o), com responsabilidade técnica para colaborar na construção da saída mais adequada.

OP – Levar a turbina para um museu sacraliza e restringe a democratização da memória?

Saulo Moreno - Depende de como o processo ocorre e de qual instituição estamos falando. Musealizar nem sempre significa sacralizar e impedir o acesso, pelo contrário, no geral, a transferência de bens para um museu busca garantir a sua integração a um circuito positivo de acesso e democratização, lançando-os a uma dimensão pública, característica dos museus.

Mas, novamente, reafirmo a importância das especificidades de cada processo. Se os vestígios atualmente estão somente dispersos por uma área aberta, de mata, sem qualquer sinalização, sem estratégias de conservação e de acesso, sem trilhas adequadas, não considero que esse estado de coisas seja o ideal para garantir a sua ampla divulgação.

Os museus operam de forma profissional e ética para garantir que os bens sob sua guarda sejam acessados por amplos públicos, traçando diferentes estratégias, como ações educativas, publicações, exposições, etc.

OP – Estar a céu aberto não significa preservação.

Saulo Moreno – Os museus possuem dinâmicas específicas voltadas à preservação, à pesquisa e comunicação de bens culturais, o que implica em inúmeros trabalhos especializados que visam garantir a integridade dos bens, a acessibilidade e a democratização. Estar a céu aberto não necessariamente representa um salto de acesso, pode ser também um impeditivo, a depender das condições específicas do lugar.

".. idealmente, creio que poderia ser feito uma negociação, levando alguma peça para o museu, garantindo assim uma representação desse fato histórico no acervo, e, por outro lado, poderia ser realizada a musealização in situ, ou seja, no sítio histórico"

 

OP - A serra da Aratanha, local do acidente, se tornou um museu vivo dessa memória?

Saulo Moreno - Se as pessoas do lugar consideram a Serra um espaço de memória relacionado ao acidente, o que podemos dizer é que pelo fato ocorrido e pelas evidências ali presentes, o local é um sítio histórico, uma área valorada como historicamente importante por conta do episódio.

Contudo, a ideia de “museu vivo” não é o termo mais adequado, pois ser museu implica em um trabalho de memória, quer dizer, devem existir ações encadeadas e permanentes com vistas à preservação, à educação, à pesquisa e à divulgação desse legado. Agora, se as pessoas atribuem a esse sítio a ideia de museu, não podemos desconsiderar, mas julgo mais pertinente considerá-lo como um sítio histórico.

OP - O que seria o ideal, a construção de marcos no local do acidente?

Saulo Moreno - Considero que é essencial o diálogo e a busca por consenso. Uma integração entre o contexto museal e o primário, por exemplo, seria bastante proveitoso. No museu, um vestígio do avião remeterá invariavelmente à Serra e, como sabemos, nem todas as pessoas poderão ir até lá, ver in loco onde aconteceu o acidente e o que ainda resta.

Portanto, esse item no museu possibilitará uma ampliação das percepções dos públicos que o visitarem acerca do que ocorreu. Contudo, também considero justas as reivindicações das pessoas que lá residem e que atribuem valores socioculturais àqueles vestígios.

Sendo assim, idealmente, creio que poderia ser feito uma negociação, levando alguma peça para o museu, garantindo assim uma representação desse fato histórico no acervo, e, por outro lado, poderia ser realizada a musealização in situ, ou seja, no sítio histórico, com a construção de um museu a céu aberto, com informações sobre o que ocorreu ali, sinalização dos vestígios, um centro de interpretação, enfim. São variadas as possibilidades.

OP – Um acompanhamento técnico.

Saulo Moreno – Destaco que é essencial que esses processos sejam feitos com o acompanhamento de um(a) museólogo(a), pois é esse profissional que poderá auxiliar na elaboração dos caminhos que poderão ser seguidos para a conquista da melhor situação, atendendo ao máximo as expectativas dos vários sujeitos envolvidos. Com isso, ganhará a população da Serra, o museu que está sendo criado e toda a população, que se beneficiará do acesso a esse fato histórico e suas implicações até o presente.

 

 

Para assistir aos bastidores da filmagem do documentário Voo 168 - A Tragédia da Aratanha

 

 

Para saber mais sobre a tragédia da Aratanha

 

 

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