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A máfia das apostas: como o Brasil está suscetível às fraudes
Reportagem Seriada

A máfia das apostas: como o Brasil está suscetível às fraudes

O País tem suscetibilidades estruturais que fazem com que as apostas fomentem ambiente de insegurança quanto às manipulações. Veja os oito pontos atrativos no Brasil para quadrilhas
Episódio 2

A máfia das apostas: como o Brasil está suscetível às fraudes

O País tem suscetibilidades estruturais que fazem com que as apostas fomentem ambiente de insegurança quanto às manipulações. Veja os oito pontos atrativos no Brasil para quadrilhas
Episódio 2
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As condições do futebol brasileiro o tornam um alvo bastante atrativo. O pesquisador Felippe Marchetti elenca oito pontos atrativos para quadrilhas operarem no Brasil: atrasos salariais, contratos de curta duração e baixa remuneração de atletas, pouca conscientização de jogadores, dirigentes e árbitros sobre o assunto, não profissionalização da arbitragem, falta de sistema de monitoramento amplo, baixa efetividade no mecanismo de denúncia e má governança da modalidade.

Pesquisador Felippe Marcheti (Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Pesquisador Felippe Marcheti

"No mercado global, 70% a 80% das apostas esportivas são ilegais, e a maioria das apostas são colocadas no futebol. Por isso que o futebol é o principal alvo. A liquidez é a quantidade de dinheiro investido naquele mercado de aposta. Quanto maior o volume de liquidez no mercado de aposta, mais difícil detectar a manipulação nesse bolo", conta Marchetti, que traçou tipos, potenciais alvos e condições de susceptibilidade para a manipulação de resultado no futebol brasileiro, em pesquisa desenvolvida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Em 2014, dados da Interpol (Organização Internacional de Polícia Criminal) apontavam que o mercado ilegal de apostas movimentava US$ 1 trilhão. Atualmente, não se sabe ao certo em quanto pode ter evoluído a estimativa. Mas é possível afirmar, segundo Marchetti, que 10% do dinheiro do crime organizado no mundo é lavado através dos mercados de apostas esportivas.

O estudo pioneiro detectou que os criminosos envolvidos nos esquemas de manipulação não costumam ser do meio esportivo. "Geralmente, são quadrilhas internacionais do Leste Europeu e, principalmente, da Ásia. Eles veem no mercado uma oportunidade de ganhar dinheiro de maneira fácil", explica Marchetti.

Os crimes mais recentes ocorreram em São Paulo. Até novembro de 2019, a Polícia Civil investigava oito casos de manipulação de resultados em partidas de futebol no estado, de acordo com blog Bastidores FC, do portal Globo Esporte. Os episódios sob suspeição foram registrados em jogos de pouca expressão, como de aspirantes e divisões distantes da elite.

De acordo com a Federação Internacional dos Jogadores Profissionais de Futebol (FifPro), 52% dos atletas no Brasil já vivenciaram atrasos salariais nos últimos dois anos. Além disso, o estudo liderado por Felippe Marchetti cita um levantamento da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), de 2016, no qual aponta que 83% dos jogadores ganham até R$ 1 mil por mês.

 

Salário dos jogadores no Brasil
Infogram

"Ganhar mal e ter o salário atrasado são fatores complicadores. Contratos de curta duração - a média de contrato de jogadores é de 11 meses no Brasil; no mundo é de 22 meses", explica Marchetti.

Outro dado relevante da pesquisa do gestor esportivo aponta para o calendário de funcionamento dos clubes brasileiros. Em 2018, das 267 agremiações, apenas 17% operaram até o fim da temporada. Enquanto isso, 221 equipes encerraram as atividades e não tiveram mais jogos antes do último trimestre.

Do ambiente de clubes e jogadores para o universo de quem conduz as decisões do jogo dentro de campo. "No Brasil, os árbitros não têm 13°, férias. Se ele se machuca, não tem tratamento, é por conta dele. Fica uma situação complicada", afirma o especialista.

Diante das condições do futebol brasileiro, jogadores e árbitros se tornam alvos de aliciadores. Nas ligas menores, atletas e clubes de pouca expressão são mais susceptíveis para a atuação de quadrilhas. Quando o cenário é a elite do futebol, nas principais divisões, a posição se inverte e passa a ser o árbitro o elo mais fraco e atrativo para criminosos.

A problemática se estende para quem deveria controlar o futebol nacional. A má governança das entidades, inclusive com casos de corrupção registrados, atrapalha a fiscalização efetiva no cenário da manipulação. Felippe Marchetti destaca a criação de Departamentos de Integridade do Esporte por parte da CBF e da Federação Paulista, mas ainda é pouco para o amplo universo do esporte no País.

"O Brasil é bem iniciante e possui pouquíssimas medidas. Há falta de compreensão ao que seria a manipulação de resultados. Muitos não têm noção de que existe e de como funciona, o tipo de punição e o risco que correm. Muitos dirigentes tratam como mito ou veem isso como uma obrigação moral de não manipular", comentou Marchetti.

O POVO entrou em contato com a CBF para saber sobre as ações do Departamento de Integridade do Esporte, mas não obteve nenhuma resposta até o fechamento da reportagem. Já Ministério Público do Ceará (MP-CE) foi acionado para informar sobre a existência de casos nos últimos anos sob a fiscalização do órgão estadual. Entretanto, a reportagem foi informada de que não houve registros.


Como o futebol cearense enfrenta o risco de manipulação

A Federação Cearense de Futebol (FCF) não possui um Departamento de Integridade ao Esporte. Entretanto, o órgão máximo da modalidade no Ceará diz que o tema está recebendo a "devida atenção".

"Já entramos em contato com empresas que trabalham neste segmento de fiscalização de partidas para evitar manipulação de resultados. Por questões de sigilo da operação, não se pode declarar os campeonatos e jogos que são fiscalizados", comunicou a Federação por email ao O POVO.

De acordo com a FCF, a entidade nunca tomou conhecimento de nenhum caso de compra e venda de resultados dentro dos campeonatos que organiza. Questionado pelo O POVO se promove palestras ou disponibiliza conteúdos de conscientização para jogadores, treinadores, dirigentes e árbitros que atuam em suas competições, a Federação explicou que vai estudar a proposta.

"Ainda não houve nenhum evento especial promovido pela Federação. É algo a ser pensado e a ser conversado com os clubes", informou.

O POVO pediu o posicionamento da FCF sobre a pesquisa liderada por Felippe Marchetti, que traçou um cenário do futebol brasileiro e os atrativos para quadrilhas de manipulação de resultado. Entre os conceitos do estudo, está a situação dos árbitros como principal alvo nas principais divisões, enquanto os jogadores estão em posição de risco nas ligas menores, em meio ao baixo salário de atletas e a não profissionalização da arbitragem.

"Poucas Ligas ao redor do mundo tem árbitros profissionais. Utilizar tal fundamento abre margem para pensarmos que isso pode acontecer, inclusive, em grandes Ligas da Europa. Temos total confiança em nossos árbitros e acompanhamos sua vida dentro e fora de campo, inclusive a Federação disponibiliza uma psicóloga, especialista no assunto, para acompanhar todos os árbitros do seu quadro", diz a Federação.

"Em relação aos jogadores de ligas menores, entendemos que deve haver a análise de todos os jogos para verificar a existência de comportamentos estranhos dentro das partidas. Como grande auxílio nisto, podemos destacar a transmissão ao vivo de inúmeros jogos pela FCF TV. Acreditamos que com tamanha exposição, podemos inibir certos tipos de comportamento. Em relação aos jogos não transmitidos, temos representantes da Federação que irão elaborar relatórios, caso encontrem algo anormal em qualquer uma das partidas", afirmou a entidade.


“O árbitro hoje é muito vigiado”

Analista de desempenho de campo da CBF, Almeida Filho conta bastidores de uma tentativa de aliciamento para manipular resultados da Série B e explica evolução no monitoramento da arbitragem brasileira

Três anos após a Máfia do Apito estourar no futebol brasileiro, dois árbitros cearenses dos quadros da FCF e da CBF foram procurados em 2008 pelo ex-árbitro da Federação Maranhense, Eduardo Barilari. A proposta gira em torno de R$ 15 mil a R$ 20 mil para a manipulação de resultados em jogos da Série B do Campeonato Brasileiro. A dupla denunciou o aliciador que acabou sendo expulso da arbitragem.

Um dos árbitros procurados por Barilari é Almeida Filho, atualmente analista de desempenho da arbitragem de campo da CBF. Em entrevista ao O POVO, o profissional cearense conta os bastidores do aliciamento que sofreu e exalta o crescimento da fiscalização dos homens do apito.

"Naquela época (2008), não tinha site de apostas. A questão dele era beneficiar um clube. Encontrava um contato com um clube, oferecia uma quantia e o clube acreditava que daria certo. Ele ligava: 'Almeida, quero te contratar para apitar a favor de time tal'. Na mesma hora, eu liguei para a Federação e CBF", afirmou.

Almeida conta que Barilari não mencionou nenhum dirigente envolvido no esquema, na época. "Ele nos procurou porque apitávamos muitos jogos da Série B. Graças a Deus, aqui nós temos árbitros bons, regulares e mais ou menos, mas não bandidos."

Na ocasião, Almeida Filho foi afastado por um mês pela CBF, enquanto era feita investigação sobre o caso. O Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) absolveu o árbitro. O outro juiz cearense que denunciou Barilari também foi absolvido.

Para Almeida Filho, a fiscalização sobre os árbitros aumentou bastante desde o caso da Máfia do Apito, dificultando esquemas semelhantes com a atuação de membros da arbitragem. "O árbitro hoje é muito vigiado. Para você apitar, não pode ter nome no SPC, Serasa, nada na Justiça comum, nem na Federal", diz ele.

Almeida Filho é analista de desempenho de campo da CBF(Foto: Ronaldo Oliveira)
Foto: Ronaldo Oliveira Almeida Filho é analista de desempenho de campo da CBF

O analista explica ainda que todos os árbitros são acompanhados de um inspetor no hotel onde se hospedam para as partidas. "Ninguém chega perto. O árbitro é blindado. Sempre tem um inspetor controlando e blindando o contato com a arbitragem", comenta Almeida, deixando claro que este é o padrão para os profissionais das principais divisões.

A função de Almeida Filho atualmente é de justamente avaliar o desempenho dos árbitros, como um fiscal do responsável por apitar a partida. O analista, quando escalado para os jogos, faz relatórios sobre a atuação do juiz de campo e envia para a CBF.

Além do analista de campo, o árbitro é monitorado por um analista de vídeo. "A gente faz uma interpretação para entender as marcações dele. Há relatório, inclusive, de minuto a minuto", conclui.

Empresário de jogadores orienta contra manipulação

Ex-dirigente e atualmente empresário de dez jogadores de futebol, Evandro Ferreira faz questão de passar para seus clientes os riscos de envolvimento com a manipulação de resultados em meio ao cenário obscuro das apostas esportivas. O agente nunca teve contato direto com alguém envolvido em uma fraude no esporte, mas sabe que é um problema existente na modalidade.

“Não dá para tapar o sol com a peneira. Ou seja, tem. Mas é difícil de provar. É um campo totalmente minado. Não se prova nada contra ninguém, mas se fala”, afirma Evandro.

No trabalho de gestão de carreira, o empresário é direto na conversa com seus jogadores. “Nunca se meta nesse tipo de coisa, evitem papos estranhos. É a minha orientação. Clubes menores são alvo, jogadores que não têm tanto comprometimento, clubes que não almejam mais nada. O ambiente e o contexto são diversos”, comenta.

"Não dá para tapar o sol com a peneira. Ou seja, tem. Mas é difícil de provar. É um campo totalmente minado. Não se prova nada contra ninguém, mas se fala" Evandro Ferreira, ex-dirigente e atual empresário

Para Evandro, que trabalha no futebol há mais de uma década, a legalização das apostas esportivas traz pontos positivos e negativos. Apesar do lado sombrio da manipulação, a movimentação financeira legalizada a partir dos sites pode aumentar as receitas para os clubes de futebol.

"As empresas de apostas certamente irão ao mercado de patrocínio esportivo para anunciar suas marcas e isso gerará receita para os clubes", explica.

O empresário acrescenta ainda mais dois pontos positivos. "A legalização vai poder permitir a entrada de empresas de apostas em investimentos no Brasil, abrindo negócios locais e gerando tributos para o Estado. Além disso, a legislação vai coibir as más condutas e possíveis violações, protegendo a chamada integridade esportiva das competições, atletas e agentes do futebol."

FORTALEZA, CE, Brasil. 08.01.2020: No universo das apostas esportivas, os cuidados ue devem ser observados (Fotos: Deísa Garcêz/Especial para O Povo)(Foto: DEÍSA GARCÊZ/Especial para O POVO)
Foto: DEÍSA GARCÊZ/Especial para O POVO FORTALEZA, CE, Brasil. 08.01.2020: No universo das apostas esportivas, os cuidados ue devem ser observados (Fotos: Deísa Garcêz/Especial para O Povo)

A esparrela das bancas de apostas

Apesar de ilegal, as bancas de apostas - estratégia consiste na unificação de apostas por meio de um intermediário - continuam sendo organizadas e podem levar a prejuízos. Um autônomo, que terá identidade preservada, liderou uma banca por cerca de um ano e meio. Segundo ele, por mês, o negócio gerava lucro de R$ 2 mil a R$ 3 mil. No melhor mês, ele chegou a lucrar R$ 15 mil reais.

Ele organizava as apostas via Whatsapp, onde recebia as bets dos clientes e dava o aval. Todo começo de semana havia o acerto de contas entre clientes e banca. O pagamento variava, podendo ser efetuado pela banca ou pelo cliente, dependendo do vencedor da semana.

O organizador de apostas relata que a época que a banca acumulou mais cliente foi na Copa do Mundo de 2018, quando 40 pessoas chegaram a participar. “Não tive que contribuir em nada, com nenhum valor mínimo, e era muito vantajoso, porque na aposta a longo prazo, para quem não é apostador profissional, a pessoa perde”, comentou.

"Não tive que contribuir em nada, com nenhum valor mínimo, e era muito vantajoso, porque na aposta a longo prazo, para quem não é apostador profissional, a pessoa perde" Ex-organizador de banca de aposta

Apesar das vantagens, o momento da cobrança corriqueiramente era um problema. Muitos clientes se recusavam a pagar o que deviam por causa da ilegalidade da organização. “Muitos apostadores não pagavam, muitos me devem até hoje, porque na hora de pagar questionava: olha, isso é ilegal, se eu não quiser pagar eu não pago. Mas a maioria pagava”, revelou.

Ele detalha que a banca tinha um cobrador para facilitar o pagamento, no caso dos clientes desejarem facilitação do abatimento, ou na situação de recusa do embolso da dívida. Além disso, o autônomo fala que a banca, nunca foi descoberta. Para ele, basta “não espalhar a notícia, é difícil uma banca ser descoberta”, o que mostra como essa prática, apesar de ser ilegal, não tem a devida fiscalização. (Gabriel Lopes / Especial para O POVO)

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