Estudar os duelos, entender as melhores possibilidades, assistir a um jogo de futebol e ganhar mais que a emoção de ver o time do ganhar. Essa é parte do princípio das apostas esportivas que movimentam elevadas cifras mundo afora e eram, até o fim de 2018, proibidas no Brasil por legislação ainda da metade do século passado. Sancionadas em lei no apagar das luzes do governo de Michel Temer, as apostas esportivas de quota fixa agora aguardam regulamentação por parte do Governo Federal, e permanece suscitando debates da efetividade da fiscalização que a lei pode impor a modalidade.
Com perspectivas de arrecadação da União, promoção da integridade dos resultados nas competições esportivas e proteção da economia popular, a regulamentação é vista como imprescindível e urgente por Pedro Trengrouse, advogado e coordenador acadêmico do Programa Executivo Fundação Getúlio Vargas (FGV)/ Fifa/ Cies em Gestão de Esportes. O especialista é autor de um memorando, apresentado no Senado Federal, que serviu de embasamento para a Lei 13.756/18 – que tirou as apostas esportivas da ilegalidade no País.
“É um dinheiro que vai embora do Brasil todos os anos, afetando inclusive nossa balança comercial, sem nenhum monitoramento, sem nenhum controle”, lamenta Trengrouse. Segundo estima, com a regulamentação esse valor pode chegar a dobrar.
Para o Ministério da Economia, a expectativa de arrecadação aos cofres públicos, durante os primeiros anos de implantação, é entre R$ 40 milhões a R$ 60 milhões ao ano, a partir de movimentação “entre R$ 4 bilhões e R$ 6 bilhões por ano”.
Trengrouse assevera que evitar a ação de máfias é um dos pontos centrais da regulamentação. “Sem um monitoramento permanente das apostas, nós não conseguimos lutar contra máfia de manipulação dos resultados. A regulamentação vai proteger essa integridade. Quem gosta de esporte, e quer continuar assistindo aos jogos sabendo que eles não foram manipulados, tem de defender a regulamentação das apostas. É fundamental”, sustenta.
Um segundo aspecto, para Trengrouse, é evitar que o apostador perca dinheiro devido à falta de regras e à inexistência de punições às bancas e sites de apostas. Nesse ponto, ele acredita que a regulamentação preveja que os sites devam manter provedores independentes de monitoramento de integridade do esporte, “que preencham requisitos estabelecidos em regulamento do Poder Executivo, com objetivo de identificar atividades suspeitas que possam indicar manipulação de resultados esportivos, informações privilegiadas ou qualquer outra atividade proibida ou ilegal”.
O doutor em Educação Física e gestor esportivo Felippe Marchetti, autor de estudo pioneiro na América do Sul sobre manipulação de resultados, acredita que a lei e os mecanismo que serão criados com a regulamentação, apesar de importantes, não serão capazes de impedir o crime organizado. Para ele, o ambiente online facilita a operação de manipulação sem deixar rastros.
"A regulamentação não vai mudar esse cenário. Geralmente, a aposta manipulada é feita em sites que não operam no Brasil. Parte destes sites estão na Ásia, China, os ditos subterrâneos. Essa questão não mudará com a legalização", afirma o especialista.
A manipulação, no entanto, não é novidade no País. O escândalo nacional conhecido como "Máfia do Apito" acendeu o alerta no futebol brasileiro, em 2005, para a manipulação de resultados relacionada a apostas esportivas. Quase 15 anos depois do caso que atingiu em cheio a elite da modalidade no Brasil, quadrilhas especializadas seguem agindo de forma subterrânea e obscura através de sites ilegais.
O cenário, as condições e a operacionalização do esporte no Brasil são fatores atrativos para quadrilhas internacionais atuarem em terras tupiniquins. Felippe Marchetti explica que o País é o maior mercado da modalidade no Continente e o que possui mais partidas no mundo, a maioria envolvendo clubes pequenos.
Projetando o que deverá ser criado no encalço da manutenção de ambiente legal para as apostas, Trengrouse aponta que será necessário que os sites mantenham certificação de equipamentos físicos e programas de computador, para validarem cada aposta captada, e que isso passe pelo crivo de alguma empresa capacitada para demonstrar independência de fabricantes e operadores”. Questionado sobre que procedimentos serão adotados para garantir a legalidade das apostas, o Ministério da Economia afirmou apenas que “o assunto encontra-se em discussão”.
Para Trengrouse, licenciados e sob a égide das mesmas regras, os sites vão competir de igual para igual. Contrapondo-se às alegações de que há a possibilidade das apostas servirem para incrementar lavagem de dinheiro e que o governo detém pouco poder fiscalizador, Trengrouse salienta que o jogo já existe com ou sem regulamentação. “Quem é contra o jogo legal, corrobora para as praticas de jogo ilegal”.
Responsável pela regulamentação, o Ministério da Economia tem até 2022 para publicar decreto com as regras para bancas e sites de apostas esportivas operarem. Porém, a normatização deve vir bem antes. Uma minuta do decreto do Ministério sobre o assunto foi publicada em setembro e passou por duas consultas públicas. Conforme dados da assessoria do órgão, foram recebidas 4,4 mil respostas de entidades, mercado e usuários. Uma nova minuta estava prevista para ser divulgada entre o fim de 2019 e o início de 2020. Acredita-se que até junho, toda a atividades já esteja normatizada.
Há ainda impasses a serem sanados até lá. Sobre o texto da lei, reforçado na primeira minuta, há uma projeção de percentuais de divisão de faturamento, com previsão de repasses para fundos de segurança pública e de educação, por exemplo. O modelo segue o que está posto para loterias de rateio no País, mas, para Trengrouse, subverte a lógica matemática.
“Na loteria, é possível simplesmente dividir o valor que foi arrecadado. Nas apostas esportivas, não, é um jogo bancado e a banca pode perder dinheiro numa rodada. Como é que você vai distribuir percentual da mesma forma que faz com as outras loterias?”, aponta o advogado, afirmando que isso poderá engessar a regulamentação, caso se mantenha. Em nota, o Ministério da Economia contra-argumenta, afirmando que “essa modalidade lotérica é operada dessa forma em diferentes mercados globais”.
"Trazer para a luz do sol da legalidade. É um conceito universal. Não existe no mundo caso de sucesso do ponto de vista econômico e de segurança pública e social dos estados que se afastaram ou não legalizaram o jogo", avalia José Magno, presidente do Instituto Brasil Jogo Legal.
Em diálogo com o Congresso Nacional para a liberação dos jogos de azar, entre eles a aposta esportiva online, a organização desenvolveu pesquisas para conscientizar e esclarecer sobre os benefícios da legalização. Para Magno José, tornar a atividade legal vai proteger a operação e dificultar a manipulação de resultados.
"O principal fator, além da tributação e investimentos da moldagem destas casas, é a proteção do cidadão com o jogo legalizado. Em relação às apostas esportivas e a manipulação de resultados, existem empresas que controlam protocolos e o controle sobre os eventos esportivos", afirma Magno.
Entre as empresas as quais Magno se refere está a Sportradar, que monitora todas as Séries do Campeonato Brasileiro em parceria com a CBF. "A própria companhia (site de aposta) tem o interesse que não haja manipulação de resultado por que se houver ela vai ter prejuízo. No mundo todo, são feitos convênios com empresas de monitoramento de resultado, palestras educativas com jogadores em início de carreira, conscientização sobre os efeitos da manipulação", comenta.
Na minuta de regulamentação, ressalta Magno, está previsto o monitoramento por parte de empresas da área. "A gente estima que no Brasil os sites de apostas vão gerar até R$ 5 bilhões. Essa operação cresceu no mundo todo. Estimativa de crescimento até 2023."
O presidente do Instituto explica que a legalização do jogo vai movimentar 1% do PIB no Brasil, algo em torno de R$ 68 bilhões. "Isso se legalizar todas as modalidades. Vamos formalizar 150 mil empregos e alcançar a geração de 200 mil novos empregos", diz Magno.
Para o gestor esportivo Felippe Marchetti, é preciso investir na integridade do esporte com a tributação em cima dos sites de apostas esportivas. "Identificamos no trabalho que os clubes e as federações alegam custo caro (para implementação de departamentos de monitoramento). Jogos pequenos, muitas vezes, não têm público, não têm ninguém. Esses jogos nem gravados são. É complicado de provar", explica o especialista.
Marchetti afirma que é extremamente necessário intensificar as medidas educacionais e de conscientização. Ele lembra do caso do jogador italiano Simone Farina, que denunciou caso de manipulação na Itália e teve que se aposentar pela falta de clubes interessados. "Ele passou a ser visto como 'X9'. Ninguém mais quis ter relação com Farina, e ele fez o certo. É importante criar mecanismos para manter o anonimato para quem fizer a denúncia não sofrer retaliação. O Farina acabou prejudicado", conta.
Entre as organizações tidas como exemplo, Marchetti cita a Federação Internacional de Tênis. "Os atletas têm cursos online. São passadas todas informações, os riscos, os casos e etc. Têm palestras, discussões com os clubes e treinadores sobre manipulação até na base. Tornar o atleta informado é uma arma fundamental."
A Suíça e a Noruega, de acordo com o especialista, largam na frente quando o assunto é proteger o atleta que denuncia o esquema criminoso. "Há um aplicativo que o atleta pode utilizar e denunciar. Ele tem um código irrastreável. A partir do código, se ele for procurado, coloca a informação no sistema e chega ao Departamento de Integridade da Federação. É um mecanismo que funciona também em cooperação com as autoridades".
Esta série de reportagens mostra em detalhes como funciona o universo das apostas que movimenta o esporte no Brasil.