O pesquisador Marcelo Soares é professor do Instituto de Ciências do Mar (Labomar), da Universidade Federal do Ceará, atuando na área de biodiversidade marinha e ciências do meio ambiente. Nessa entrevista, ele alerta para os impactos das mudanças climáticas no Estado e a necessidade de o Ceará adotar medidas que atenuem esses efeitos
O POVO - Qual é a situação atual do avanço do mar na costa brasileira?
Marcelo Soares - ► Esse avanço do mar é um fato. Ele está acontecendo e vai se acelerar nas próximas décadas. Principalmente motivado por dois pontos: 1) as mudanças climáticas, porque você está tendo uma mudança ambiental com o degelo das calotas polares e o consequente aquecimento das águas; e 2) o problema da ocupação costeira desordenada. Nós ocupamos a zona costeira, em muitas regiões do Brasil e aqui no Ceará, muito próximo da linha de costa. Ou seja, muito na praia. Isso inevitavelmente vai entrar em choque. O mar se elevando, com as estruturas urbanas, turísticas, estradas, lugares de pesca, vão entrar em choque.
OP - Quais são os danos principais?
Marcelo - A gente pode conceituar a questão do avanço do mar, do ponto de vista dos ecossistemas, da biodiversidade. Ele vai afetar alguns dos nossos principais sistemas, como nossas praias, estuários (que são o encontro do rio com o mar), onde temos os manguezais e também os recifes de corais, presentes em todo Nordeste. Esses três sistemas vão ser totalmente modificados pelo avanço do nível do mar. Porque não se tem só o avanço do nível do mar, mas também a ocorrência de eventos extremos. São as tempestades. Ondas de alta energia que impactam contra a costa. Dentro dos estuários com os manguezais, essa elevação do nível do mar faz com que a salinidade se estenda mais para dentro do rio. Em algumas regiões do Ceará, a salinidade entra demais. Isso é um fenômeno bem interessante. Junto disso há um caso particular no Ceará porque há a redução das chuvas, que são as secas, e há também as barragens segurando a água doce lá em cima (no continente). O mar se elevando vai gerando a salinidade entrando no rio. Por exemplo, no rio Jaguaribe existe a barragem de Itaiçaba e, lá perto, já foram encontradas água viva e estrela do mar. Você está a vários quilômetros do litoral (cerca de 35 km). Você tem essa salinidade entrando no estuário. Isso muda totalmente, por exemplo, os peixes que os pescadores encontram. Os moluscos, búzios, que as marisqueiras coletam. Isso se modifica. Às vezes mata alguns organismos ou faz com que alguns peixes adentrem mais o rio.
OP - A velocidade desse avanço tem aumentado ano a ano?
Marcelo - Ela tem uma taxa que está aumentando e a tendência é se acelerar. Também pela aceleração da temperatura e do degelo das calotas polares.
OP - Há planos para conter isso?
Marcelo - As mudanças climáticas são um fato. Quanto mais a gente demorar para reconhecer isso mais vai se demorar para criar esses planos. Infelizmente, algumas pessoas no mundo, também no nosso País, dizem que as mudanças climáticas não existem. Isso é totalmente contraproducente. As mudanças climáticas existem e já estão acontecendo. A gente tem que criar os planos de adaptação e de mitigação. ► Porque quanto mais se demorar para executar esses planos mais vamos ter perdas econômicas com a pesca, com a infraestrutura imobiliária, com a infraestrutura das cidades, mais perdas nos ecossistemas, mais perdas sociais. Quando o nível do mar avança há não só uma perda nos ecossistemas como perda também na qualidade daquela praia. Reduz o valor dos imóveis, as pessoas deixam de ir pra lá porque o local está degradado, principalmente em lugares turísticos. Isso faz com que as pessoas percam seus empregos, sua renda, mudem de cidade. Ou seja, há uma dinâmica social e econômica alterada. Morei muito tempo no Icaraí e tinha um colega lá que era borracheiro. Ele dizia que com o nível do mar teria que se mudar. “Não vem mais carro pra cá, o pessoal não vem mais passear nessa praia, não tenho mais nem pneu pra trocar”. A renda dele foi alterada por causa da mudança do ambiente. É uma cadeia que vai afetando. Do exemplo simples de um borracheiro, imagine as perdas sociais e ambientais que se tem atreladas a isso. A gente precisa fazer esses planos. Vários países estão fazendo, alguns Estados brasileiros estão fazendo. Mas aqui, infelizmente, estamos atrasados. Precisamos fazer (os planos de mitigação) porque esse fenômeno vai acontecer. Na verdade, já está acontecendo.
OP - Que cenários você vê para Fortaleza nos próximos anos, em relação a esse problema?
Marcelo - A costa de Fortaleza é muito urbanizada. Nós temos aterros, píers e não vejo a instalação dessas estruturas considerarem a elevação do nível do mar. Não vejo nos estudos de impacto ambiental, nos planos que estão sendo feitos isso ser contabilizado. Muitas dessas estruturas que estão sendo feitas, em dez, 15 anos, vão se perder. A gente não pode investir um dinheiro tão elevado nessas estruturas sem considerar a sustentabilidade delas nas próximas décadas. Tem que começar a pensar as coisas nesse sentido, não em dois, três anos, que vai vir uma onda e destruir toda aquela infraestrutura. Vejo que esses planos têm que cada vez mais considerar essa situação. E tem um ponto importante: temos que considerar os locais em que ainda não temos a urbanização, poder colocá-los mais para trás. Não só porque a lei pede 33 metros após a linha de maré mais alta. A gente tem que começar a colocar essas estruturas de 100 a 150 metros depois da linha de maré. Porque o nível do mar vai avançar. A gente vai começar a instalar barracas, hotéis, o mar vai avançar e essas casas, hotéis, restaurantes, barracas, vão começar a cobrar do poder público as obras costeiras. Cadê o aterro, cadê o píer, cadê não sei o quê? E isso vem do imposto das pessoas. Em Miami já estão reorganizando a orla porque isso vai acontecer. E em várias outras cidades do mundo. Fortaleza é o município mais rico do Ceará e tem recursos para captar dinheiro de banco internacional. Ele consegue fazer algumas obras, mas e o resto dos municípios?
Série especial mostra o impacto da ação humana no avanço do mar e os prejuízos causados ao meio ambiente