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É preciso estar atento e forte
Reportagem Seriada

É preciso estar atento e forte

Episódio 5

É preciso estar atento e forte

Episódio 5
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“Certas coisas se podem dizer com palavras, e outras, com movimentos. Há instantes, porém, em que perdemos totalmente a fala, em que ficamos totalmente pasmos e perplexos, sem saber para onde ir. É aí que tem início a dança”. Na boca da coreógrafa e bailarina alemã Pina Bausch (1940-2009), grã-sacerdotisa da dança-teatro, o nascimento da dança é, sobretudo, explosão.

O alfabeto abriga 26 letras — 21 consoantes, cinco vogais — , mas a palavra ainda não é o bastante. O infindável balé de combinações não dá conta. Como letrar o corpo que, retorcido em si mesmo e emaranhado ao outro, expande-se e movimenta o mundo? Tarefa ingrata aos pesquisadores e jornalistas, como Rosa Primo. Para que ajustar o corpo aos grafemas dos sistemas de escrita, entretanto, se é possível dançar?

Rosa Primo é doutora em Sociologia, jornalista, pesquisadora em dança, bailarina, professora do Programa de Pós-Graduação em Artes e coordenadora dos Cursos de Bacharelado e Licenciatura em Dança da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Nascida na Fortaleza de 1972, Rosa rebentou ao mundo com os pés tímidos, voltados para si mesmos. Aos cinco anos, já usava bota ortopédica para corrigir a lesão — e foi entre prontuários médicos que a trajetória da bailarina se iniciou.

“A gente morava na Jovita Feitosa e lá tinha uma escola chamada Pavlova, a dona era uma bailarina que dançava com o Hugo Bianchi. Como eu usava bota, minha mãe me matriculou e eu fui ficando… Um dos professores sempre dizia que eu tinha que eu tinha que ir pro Hugo, que era uma academia maior, mais conceituada”, relembra.

Certa feita, convencida pela insistência dos coreógrafos, dona Almisa questionou a filha: “Você quer ir, Rosa?”. “E eu disse ‘quero’. Fui pro Hugo, nessa época de 1980 ainda funcionava no Theatro José de Alencar. Depois passei muitos anos como aluna da Mônica Luíza, até a Madiana Romcy chegar do Rio de Janeiro e eu seguir com ela…”, complementa.

"Na dança, a criação é fundamental. É como se o palco me desse a condição de estar presente... uma energia, uma vontade de viver"

Bailarina de formação clássica, Rosa ensaiava seis, sete, oito horas por dia. Entre sapatilhas e pliés, conciliar dança e estudos era um desafio — mas, ávida por livros, a cearense decidiu mudar-se para São Paulo e cursar nível superior na capital paulistana.

“Entrei em Jornalismo na PUC e fiquei muito apaixonada. Pensei ‘vou parar de dançar, meu sonho é ser jornalista, não quero mais saber de dança’”. Como um pas de deux, contudo, a vida de Rosa se entrelaçou novamente ao movimento: na época, educação física era disciplina obrigatória no currículo e ela ingressou em uma turma de ginástica rítmica.

“Quando eu vi, já estava oito horas de novo dentro de uma escola de dança. Comecei a dançar com a Célia Gouveia, uma coreógrafa de São Paulo bastante importante. Ela tinha um grupo chamado Teatro de Dança e, pra mim, foi uma referência. Foi aí que eu me deparei com outro universo da dança que eu não conhecia, a dança contemporânea, porque até então eu era bailarina clássica, de ponta. A Célia me mostrou um mundo completamente diferente, inclusive de criação. Na dança contemporânea, o material vem do corpo da gente. Eu achei meu lugar”.


Entre convites para dançar na França com Maguy Marin negados em meio ao fim de um casamento, idas e vindas de São Paulo a Fortaleza e até uma breve passagem pela redação do O POVO, Rosa Primo construiu a si mesma na dança.

Na capital cearense, tornou-se professora em escolas como Edisca e dedicou-se à academia — desta vez, no Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Rosa elaborou uma das primeira pesquisas científicas sobre dança no Estado.

“No Mestrado, por exemplo, investiguei o Colégio de Dança, que foi o lugar de virada na dança em Fortaleza. As pessoas se encontram para repensar tudo o que faziam. Escrever uma dissertação é um processo de criação, de invenção. É como a dança, só que em um lugar diferente. É muito interessante esse lugar da invenção, onde se está aberto a se pensar a ter atenção ao que se diz e ao o que se ouve; estar imerso nessas questões que te fustigam. É estar com esse corpo nesse processo de inventar”.

Encontro, desejo e potência

Em sua aventura autopoiética, Rosa Primo mantém-se, sobretudo, atenta e forte.

“Quando você está com esse corpo nesse processo de invenção, a sua atenção é muito outra para a vida — de ficar atenta a tudo que se diz, a tudo que se faz, a tudo que se escuta. É como se você estivesse juntando material para dar conta de uma realidade que está ali. Invenção não quer dizer que é uma coisa que não dá em nada: é criação, é ir na realidade e ver o que importa naquilo para responder uma série de questões. Eu sempre pergunto aos meus alunos se eles escovaram os dentes escovando. A gente não está nos lugares, a gente faz tudo correndo. Isso é um exercício, atenção é hiper necessária para um processo de criação”, defende.

 

 

"Na dança, a criação é fundamental. É como se o palco me desse a condição de estar presente. Estar na sala de aula também é assim; me dá uma força, uma energia, uma vontade de viver. O corpo treme, é um rebuliço, eu saio do palco pensando ‘que energia é essa? Tudo está ligado ao encontro, ao desejo, à potência. Quanto mais você acessa o corpo, mais coisas surgem”.

Iracema e Tudo passa sobre a terra, espetáculos mais recentes de Rosa Primo, são fruto dessa cuidadosa observação de si e do outro — no processo de construção das obras cênicas, a intérprete-criadora se reconheceu também indígena e filha pródiga de múltiplas Fortalezas.

“Eu saí de Fortaleza para poder entender isso aqui. Eu não sei como ser o que eu sou hoje sem o lugar que estou. Minhas pesquisas, meu corpo, minha família, meu trabalho, meu tempo de produção, em tudo Fortaleza está presente. É uma coisa muito potente essa Cidade e as pessoas que trabalham com dança”.

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