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Oração ao tempo
Reportagem Seriada

Oração ao tempo

Episódio 2

Oração ao tempo

Episódio 2
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Na rua onde Margarida Girão floresceu casa, os aromas de sua cozinha feiticeira confundiam a insistente fumaça de óleo diesel. Os temperos ganhavam o olfato de cada vizinho, numa vitoriosa batalha contra as emissões dos automotivos. Sabia-se: ali morava uma cozinheira de mão cheia, farta. A filha de Margarida enamorou-se ao filho de Maria Bitu.

No lar dos Bitu, os primos cresceram herdando roupas uns dos outros. Uniforme da escola ficou largo? Um pontinho cá. Sobrou tecido de uma saia esquecida no armário? Logo a almofada ganhava uma nova capa, colorindo o sofá. Da união entre as famílias, nasceu Marina — afeita às artes manuais como as avós.

Marina Bitu, três décadas de vida, graduou-se em Design de Moda pela Universidade Federal do Ceará em 2011 e especializou-se em Gestão de Negócios da Moda pela Universidade de Fortaleza. Integrou as equipes de estilo das marcas Anamac, Água de Coco e Florinda — mas foi ao número 150 da Av. Senador Virgílio Távora que Marina transformou o substantivo casa em verbo e criou o ateliê que carrega seu nome, seus desejos.

"O Ateliê Marina Bitu nasceu desse processo de contar histórias através de uma peça de roupa"

“Algumas amigas me pediam roupas para festas. ‘Minha irmã vai casar’, ‘eu vou me formar’, ‘você não conseguiria fazer um vestido?’. Eu tinha essa capacidade de pegar a individualidade das pessoas e transformar em um produto final.

O Ateliê Marina Bitu nasceu desse processo de contar histórias através de uma peça de roupa; e nela ter algum símbolo que tenha a ver com sua construção de identidade. O Ateliê Marina Bitu nasceu desse sentimento que eu tenho em relação às necessidade das pessoas”, compartilha a fashion designer.

O processo criativo de Marina é, sobretudo, um exercício de escuta: “A maior parte das minhas clientes são artistas, arquitetas, jornalistas; são pessoas que entendem a narrativa no desenvolvimento do produto. Eu faço perguntas sobre gosto, identificação, símbolos, elementos. Certa vez, fiz um vestido para uma noiva e perguntei o que ela mais gostava depois do noivo e da família. ‘Eu gosto de ata, a fruta’. Eu criei, então, um bordado de máquina que imitava os gomos da ata. Ela teve o vestido de noiva”, exemplifica.

 


“Normalmente, o mood do evento me fornece muitas informações importantes, como o clima e a decoração. Se é noiva, peço imagens do convite, história do casal, como os noivos se conheceram... Uma história com a Praia de Flecheiras retoma o bilro do Trairi... É, de fato, momento de escutar. Depois, tenho um momento só meu em que eu tento transformar as informações em ideias e aí acontece meu processo criativo, que é muito em cima de palavras”, complementa.

Papel kraft levinho, páginas de cartolina colorida, canetas Posca e até corretivo líquido — em linhas suaves, mas firmes, os croquis ganham forma entre os dedos ágeis de Marina.

Entre vestidos atemporais, túnicas de seda e fluidas camisas, Marina cria peças que comungam respeitosamente com a sazonalidade, feito fruta da estação. A busca por materiais locais e sustentáveis guia o trabalho da fashion designer: o labirinto chega de Icapuí; o bilro é de Aquiraz, Pindoretama e Trairi; o richelieu vem de Maranguape e Itapajé.

Slow fashion e mão de obra local

“A minha ideia, na criação, é também valorizar o que a gente pode me emprestar de melhor daqui. O ateliê cria roupas que condizem mais com a nossa realidade”, defende. Em 2019, nos idos da floração do caju, desenvolveu também uma linha de moda casual com a marca Marina Bitu.

“O ateliê sempre desenvolveu peças por encomenda, mas nasceu o desejo de uma moda casual criada com cuidado, tempo, durabilidade; peças que passam de pais para filhos. Eu queria criar peças com valor, com seda, bordado, linho, uma peça que você guarda”.

Numa oração ao tempo, Marina encontrou na prática do slow fashion e na produção em baixa escala, com mão de obra local, a missão do ateliê. “Eu acho que todos sentiram uma necessidade de parar quando tudo pareceu acelerado demais no mercado de moda. Na nossa história, existem coisas atemporais: nem tudo é vanguarda ou fashion.

O Ateliê Marina Bitu me fez conversar com o outro. Eu tentei me encaixar dessa forma porque uma peça do ateliê não é desenvolvida rapidamente. Assim como o processo produtivo é lento, desejo que a vida daquela peça seja lenta, que se tenha um carinho e um afeto por ela e seja possível ressignificar, usar de tantas outras formas”.

E se?...

A casa de Marina Bitu "vem floreando, vem floreando" — como versa canção do grupo carioca Fino Coletivo, tão presente na playlist que suavemente completa o ambiente. Ao número 150 da Av. Senador Virgílio Távora, o Ateliê Marina Bitu é um convite ao sossego.

 

 

A sala 602 é compartilhada com a ilustradora Auxi Silveira, amiga de Marina ainda dos tempos universitários: juntas, elas escolheram as cores das paredes e refizeram a parte estrutural. Logo na entrada, um provador confeccionado em cipó oriundo de Guaramiranga recebe os visitantes.

"É um espaço que está em construção, como a gente mesma", define Marina.

"Eu e a Auxi pensamos 'e se?'. E se a gente reunisse interesses e montasse um espaço que contasse a nossa história, nossos valores, nossas vontades, nossos horários? Surgiu, então, essa sala que estava abandonada há um tempo e a gente viu potencial no layout dela", explica a fashion designer.

"Mas me divido muito em outros ambientes, são muitas as casas de criação. O ateliê consegue ser uma parte só, só que é onde eu me sinto em casa para criar. Meu processo criativo é também dentro do carro, é um trabalho de peregrinação. Está aqui, no bairro de Fátima, no Siqueira, em todo canto...", complementa.

"O Ateliê Marina Bitu é um espaço criativo, de encontros. Minha criação de se dá no silêncio, com a mente calma. Eu gosto dessa iluminação mais quente, mais acolhedora. No ateliê, a coisa flui de uma forma mais natural".

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