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Num duplo som como que sampleados num Synclavier
Reportagem Seriada

Num duplo som como que sampleados num Synclavier

Episódio 3

Num duplo som como que sampleados num Synclavier

Episódio 3
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Caio Castelo é dois. Corpo franzino, ombros suavemente curvados como que afeitos à sinuosidade do violão, sorriso tímido que nasce insistente no canto da boca, voz macia ao ouvido, sem muito alarde — Caio é chegada. Carne viva, osso, emaranhado de cachos e composições na cuca fresca, distração, cacos de espelho quebrado, “te pego na volta, meu bem” — Caio é partida.

Como “partir também é chegar”, Caio é um, Caio é muitos sampleados num Synclavier. Produtor cultural, diretor musical, compositor, multi-instrumentista e cantor, o músico cearense é silêncio e arrebentação.

Na casa de Caio, ainda menino, a primeira referência musical foi o tio Ari Monteiro. Sanfoneiro, achegava-se de Recife vez ou outra para se hospedar com a família cearense. Certa feita, ensinou o Tema da Vitória — canção composta pelo maestro Eduardo Souto Neto para as transmissões da Fórmula 1 na Globo, eternizada nas corridas de Ayrton Senna — ao sobrinho de 12 anos num teclado qualquer.

“Na escola, a galera falava de Nirvana, de Legião Urbana... Eu não me interessava, não sabia o que era, nada me pegava muito. Eu não tinha interesse muito grande por música. Meus pais me colocaram em uma aula de teclado, eu fiz bem pouco tempo e me desinteressei. Mas, um dia, um primo meu estava aprendendo a tocar guitarra e eu segui a ideia. Toquei logo Smooth, do Santana”, relembra Caio.

"A música pode ser uma forma de você chegar a lugares que você não iria normalmente, uma forma de você se relacionar com pessoas"

Remexendo em heranças do avô, o músico encontrou um violão velho e arranhou os primeiros acordes acompanhando as cifras em revistas de banca. “Assim comecei a criar uma relação mais afetiva, conhecer a música e coisas mais musicais, e a partir de então comecei a me divertir com isso”, complementa.

A primeira banda do instrumentista foi ainda com colegas de escola — entre eles, o também cantor Tom Drummond. “A gente sempre quis fazer as nossas músicas, essa era nossa pira. A primeira coisa que fiz quando peguei no violão foi inventar, até porque eu não sabia tocar…”.

Graduado em Comunicação, Caio uniu-se aos amigos da faculdade para compor o Comparsas da Vivenda, coletivo de escritores e intérpretes, em 2010.

Três anos depois, o músico lançou seu primeiro álbum solo: Silêncio em Movimento. “O disco é uma pesquisa frenética porque eu não tinha banda, então chamei muita gente para fazer coisas diferentes... Não sei como, mas ele acabou tendo uma unidade, é consistente”, avalia. O trabalho ganhou o mundo. Em 2014, Caio realizou uma turnê em Cabo Verde.

Selecionado para o Laboratório de Música do Porto Iracema das Artes em 2014, Caio lançou o álbum Dois Olhos (2016) sob tutoria do produtor e ganhador do Grammy Alê Siqueira. Em 2018, divulgou a primeira parte do disco Pontes de Vidro; no ano seguinte, a segunda.

Embriaguês poética

Num franco exercício de “se embriagar de poesia até vomitar o peso tanto das palavras”, Caio descobriu a voz — tímida, melódica, dele. “Contei com a ajuda de uma galera muito massa para descobrir a voz... O primeiro momento foi com a cantora Lia Veras, eu fiz aulas de canto semanais com ela. Até então, eu tinha questões sobre a minha voz não ter potência e ela me orientou no sentido de encontrar uma coisa autêntica, ver as potencialidades dentro disso. Foi muito mais um trabalho interno que na voz física, entender que a timidez não é defeito — é uma característica, na verdade".

Sambista do próprio destino, Caio ingressou no curso de Música da Universidade Federal do Ceará e descobriu, na experiência de paternidade do pequeno João, a força da coletividade.


“Com a prática do canto coletivo e longe dos palcos, na Universidade, comecei a perceber a música para além dessas coisas que limitamos como rádio, palco, sala de aula... A música pode ser tão mais! Pode ser uma forma de você chegar a lugares que você não iria normalmente, uma forma de você se relacionar com pessoas que estão querendo aprender música ou estão querendo ensinar, uma forma de você se reunir com amigos, de você fazer amigos. O canto coral propiciou muitas dessas experiências galerosas, assim como a paternidade. Tudo isso deixa a pessoa mais forte, mais segura”, pontua Caio.

O músico soma colaborações com nomes como Marcelo Jeneci, Chico Salem, Tiago Araripe, Lorena Nunes e Clau Aniz. Atualmente, toca com os Argonautas. Como “recomeçar, às vezes, é o melhor desfecho”, Caio inventa-se a cada trabalho, a cada parceria.

“Para mim, é um outro momento, um outro mundo. Uma frase que eu acho massa é que ‘música é o que acontece entre as notas, entre os sons’. Depois que eu me formei como músico, tenho uma característica completamente diferente daquela do começo da vida musical: hoje, vou dirigir um show e chego com as partituras debaixo do braço. Eu tenho a consciência que isso pode mudar — eu viajo muito nos métodos e processos para alcançar um fim”.

São as sutilezas que costuram tantos artistas em um. “Coisas particulares e até muito minuciosas, como o som do meu baixo. Cada trabalho pede uma coisa diferente, cada ideia vai para um caminho diferente — e é isso que eu acho massa”.

Orelha

A casa de Caio Castelo é uma casa dentro da outra — feito membros, músculos, órgãos e sangue moldados em barro ao corpo. Ao número 1089 da rua Pereira Valente, na Aldeota, o coração é a sala de estar, que reúne amigos em tardes quentes de domingo; o estômago é, por certo, a cozinha, de onde um cheiro de suco fresco alcança narizes desavisados; as mãos, por sua vez, são o quarto de João, com todos os cuidados e afagos protagonizados pelos pais Caio e Camila. Mas é na Orelha que todo som se transmuta em música feito alquimia.

 

 

Estúdio criado no antigo quarto de João, a Orelha é um oásis suspenso dentro do comprido apartamento: criado por Bruno Silveira numa aventura errante com Caio, a pequena sala tem camadas de borracha, berço de madeira, painel absorvedor com lã de rocha, refletores e isolamento acústico até no teto para que o músico possa tocar bateria de madrugada sem acordar o filho.

“A Orelha é uma ideia muito doida que eu tive… Eu sempre gostei de gravar e ouvir depois e, com a maior parte dos músicos, eu sei da necessidade de um lugar para gravar minhas coisas e ouvir na hora que eu quiser. Comecei a gravar umas coisas na sala do apartamento e soava bem para caramba, aí eu comecei a sonhar com essa coisa.

A Orelha não é o estúdio de ensaio: é um laboratório lugar de criação mesmo, meu processo criativo passa total e completamente por esse espaço físico. Aqui a gente fica horas e horas e horas... O pessoal até brinca que é como um shopping center, chega a noite e você nem nota”, ri.

“O estúdio se chama Orelha porque, quando eu entrei pela primeira vez e vi essas luzes, lembrei das cores e texturas de um quadro do Van Gogh. Faz toda diferença do mundo ter um estúdio em casa.

Sempre gostei de trabalhar em casa, eu me dou muito bem comigo mesmo sozinho, eu gosto de ter o meu espaço, mas também é lugar dos meus encontros. As pessoas passam por aqui, é muito rico ter um lugar que eu vejo todo tipo de coisa acontecer artisticamente”, finaliza o músico.

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