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Ele me deu um beijo na boca
Reportagem Seriada

Ele me deu um beijo na boca

Episódio 4

Ele me deu um beijo na boca

Episódio 4
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“Toco a tua boca, com um dedo toco o contorno da tua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a tua boca se entreabrisse e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar (...) As bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, (...) e se nos mordemos, a dor é doce; e, se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela”, versou o escritor argentino Julio Cortázar na memorável obra O Jogo da Amarelinha (1963).

No encontro entre bocas, beijo alentado no desejo, a língua mapeia recintos, descobre cavidades úmidas, toca cada rugosidade do outro. Língua é músculo, mucosa, papilas. Língua é, sobretudo, sentido. Com dentes fortes, Sérgio Gurgel morde a vida e enche a boca, explora com a língua cada sabor, cartografa passado, presente, futuro.

Artista visual, o cearense nascido na caatinga atrai-se pelo acaso, pela sujeira. Sérgio Gurgel deu um beijo na boca da Cidade. E Fortaleza correspondeu àquele beijo.

"Sempre tive uma relação mística com a vida. Essa questão do mistério da existência, ‘por que estou aqui no meio desse sol quente do sertão?"

Em 1982, sete astros se alinharam em Escorpião no céu de Acopiara, região localizada ao Centro-Sul do Estado, e Sérgio Gurgel nasceu. “Desde criança, sempre tive uma relação muito mística com a vida. Essa questão do mistério da existência, ‘por que estou aqui no meio desse sol quente do sertão?’”, começa Sérgio.

Filho temporão, rebentou ao mundo em uma família de idosos: mãe, avós, tias, as mulheres da vida de Sérgio caminham de braços dados com o tempo. “Cresci com uma cabeça de velho. Eu não tinha primos diretos, então a brincadeira que eu tinha com a minha avó, os meus amigos tinham com os videogames deles”.

Neuma Gurgel, tia de Sérgio, era dona de um ateliê de noivas — e foi nessa casa de criação, entre vestidos rendados e decorações de casamento, que a trajetória artística dele se iniciou. “Minha tia era estilista e conta que eu pedia muito pra ela colocar papéis para eu desenhar. Ela viu que eu gostava e começou a comprar tinta, pincel, me dar livros para estudar... Já minha avó queria que eu seguisse uma carreira religiosa, então eu vivia nesse universo meio profano e meio sagrado”.

O encantamento por formas e cores tomou o cotidiano de Sérgio durante a infância, mas as notas de Matemática e Física na escola caíam.

“Fizeram, então, uma semana cultural no colégio eu fiquei sabendo que desenho e pintura somavam pontos na média final — me inscrevi em tudo! Uma das matérias era vídeo e uma coisa que me pegou de surpresa foi a paixão pelo vídeo que me arrebatou... Na locadora, eles alugavam uma filmadora para casamento e eu aluguei. Devia ter uns 13, 14 anos. A primeira coisa que filmei foi a minha tia Neuma matando uma galinha para fazer à cabidela. Editei como se fosse um filme de terror, era uma coisa bem mambembe, ficou muito trash, assustador”.

O segundo vídeo, ainda para atividades curriculares, foi filmado com uma lavadeira. “Eu acordava todo dia com ela cantando a mesma música, Negue. Ela cantava ‘Negra, seu amor, seu carinho’... Eu comecei a conversar sobre as histórias e ela me contou transgressões, das traições do marido ao assassinato do filho. Coisas que foram bem pesadas de ouvir uma senhora falando, porque a senhora sempre está no lugar do romântico, do sagrado, ‘vá pedir a bênção à sua avó’, e eu comecei a conhecer um outro lado que essas pessoas carregam”.

As senhoras de Acopiara

Câmera em mãos — presente da tia Neuma, fascinada pelos progressos do sobrinho no audiovisual —, Sérgio embebeu-se na necessidade de registrar histórias silenciadas. “Geralmente de senhoras por conta da minha própria vivência afetiva mesmo...

A questão do que me atrai, a questão magnética. É uma procura de afago, o que eu tinha de representação de segurança para mim eram essas senhoras. Quando eu via essas senhoras enrugadas, eu não sentia repulsa: elas representavam acolhimento, atração de estar junto. Depois que eu perdi a minha tia e a minha avó, eu me prendi muito às senhoras de Acopiara”, narra o artista.


“O estopim para eu dar uma olhada nessas figuras é que, além de uma questão afetiva, tem uma questão de pensamento. Numa dessas semanas culturais da escola, me pediram pra entrevistar pessoas importantes da cidade ligadas à área da cultura. Existia uma coisa muito monotemática em cima do que se entende por sertanejo, como a rendeira, o boiador, o tocador de viola, o sanfoneiro...

Eu saía na rua e não via mais essas pessoas. Eu percebi que essas figuras folclóricas estavam diluídas e tinham mudado. Algumas pessoas na cidade, principalmente essas senhoras, tinham o papel de aglutinar a cultura do lugar e comecei a investigar a vida delas, como elas passaram a ser esse ponto de convergência”.

As divas e santas

As “três divas de Acopiara”, carregando a narrativa de uma ópera, são coroadas no trabalho de Sérgio Gurgel: Dona Maria, Maria Miranda e Madalena Cintura Fina, todas entre 80 e 93 anos. “São minhas santas, minhas divas”.

No ateliê do artista, um sem fim de objetos se acumulam na reconstituição dessas trajetórias. São fotos, vídeos, quadros, gravuras, pinturas, cada ruga ampliada e examinada sob o olhar visceral de Sérgio.

“A Dona Maria é lavadeira de roupa, rezadeira de ramo e gosta de cantar muito. Tem uma vida sofrida em relação aos filhos, à condição financeira. A Maria Miranda é uma cantora de rádio que já é o oposto. É o auge da felicidade, da alegria, do bem-viver, de aproveitar o máximo a vida.

Ela se veste escandalosamente de dourado e tem um programa de rádio em Acopiara. Todo domingo, umas 11 horas da manhã, a gente almoçava ouvindo ela cantando no rádio.

Já a Madalena Cintura Fina é uma senhora viúva, sempre de preto na cidade, sempre muito misteriosa... Eu tinha um pouco de medo, ela era essa pessoa que desestruturava tempo e espaço na minha cabeça. Certa vez, cheguei na casa dela, ela estava rezando um terço e me disse ‘vamos tomar cerveja?’. E nós tomamos um porre gigante”, ri.

Vida vivida

Entre a pesquisa etnográfica que Sérgio realiza há décadas em Acopiara, muita vida viveu-se. Aos 18, mudou-se para Fortaleza para cursar Publicidade e entrou no Salão de Abril de 2005. Começou logo a trabalhar na indústria têxtil como designer de estamparia e, frustrado com a desaprovação de alguns desenhos, montou uma marca de roupas próprias chamada SG Oversize.

O cantor gaúcho Filipe Catto apresentou-se em Nova York usando um parangolé criado por Sérgio, numa brincadeira experimental com o figurino.

Apaixonou-se por Patrícia Justa, a fruta gogoia de Gal Costa, e construiu mais uma família com a paternidade de Teodora e Estevam. “Quando eu tinha 33 anos, tomei a decisão de arriscar e jogar tudo para o ar.

Pensei ‘eu nunca vou fazer tudo que eu quero com a estamparia’ e comecei a ter condições de alugar um espaço fora de casa. Eu tinha uma pesquisa enorme que eu não tinha adentrado e aquilo ficou me correndo”, relembra Sérgio.

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Sérgio Gurgel, artista plástico. - Foto: Julio Caesar - O POVO

 

No ateliê, Sérgio dedica-se a um intenso e ininterrupto processo de criação. “Eu sinto a necessidade de trabalhar, de produzir. É uma coisa orgânica, tem até relação com a saúde do meu corpo.

O que me dá o estalo é o encontrar, principalmente essa questão dos idosos, da pessoa com história, com bagagem grande de vida e experimento, tudo isso me interessa muito”, resume o artista.

“A Simone de Beauvoir ensaia sobre a velhice, que a velhice não tem nenhuma iconografia, na arte ou na música, em que o velho possa se enxergar ali. Existe sempre uma assepsia. Até mesmo na arte. Você vê que a arte vai para um lugar que o menos é mais. Já eu acredito o contrário: o mais é mais. Eu acho que a gente está só empurrando a sujeira para as periferias, seja a periferia que for.

"Meu trabalho de ação, de resgatar esses objetos, é justamente trazer para o centro essa sujeira que foi abandonada. Volta pra cá. Ó, não desapareceu não. Tá aqui, ó, o banco que você jogou fora. É uma forma revoltada de ver essas senhoras reclusas a um quarto, presas num asilo, pessoas que têm histórias incríveis”, contesta Sérgio.

“O acaso e a sujeira são dois lugares que me interessam. Eu gosto de trabalhar com a sujeira porque a sujeira não desaparece, o lixo não desaparece. Todo essa matéria que se produz é um reflexo de um comportamento, de uma sede de consumo. Eu trago esses objetos para esse lugar de discussão da memória”.

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Como se fosse casa

Série traz à tona o ambiente de criação artística como personagem das narrativas em prosa e em vídeo.