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No palco, na praça, no circo, num banco de jardim
Reportagem Seriada

No palco, na praça, no circo, num banco de jardim

Episódio 6

No palco, na praça, no circo, num banco de jardim

Episódio 6
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No Cratim de Açúcar, as paredes dos casarões são pintadas com cores sólidas: amarelo fremente, branco puro feito cal e azul — ah, aquele azul profundo, azul de paz, azul de oração. Nas salas conjugadas das residências menores, compridas, o Sagrado Coração dependurado e a água do filtro de barro oferecem boas-vindas aos visitantes. Há 45 anos, entre esses dias mornos que passam até mais devagar, Orlângelo Leal nasceu.

Filho de pai policial militar e mãe professora, Orlângelo cresceu entre Juazeiro do Norte e Itapipoca, cigano, galego, pedrês. Criou-se no meio da rua, no redemoinho de soluço e espasmos, engolindo com olhos curiosos os reisados que se anunciavam de porta em porta. “Ô, senhor dono da casa, abre a porta e deixe entrar”. Ainda menino, sentiu nos nervos o mistério da criação. Multiartista, intérprete-criador e diretor do grupo cênico-musical Dona Zefinha, Orlângelo Leal é fronteira.

“Tudo começou na escola”, relembra Orlângelo. “Eu sempre tirei nota baixa, até em Religião, mas o meu primeiro 10 foi quando eu montei um grupo de teatro no colégio com os colegas do fundão para uma atividade da disciplina OSPB, Organização Social e Política do Brasil. O assunto era manicômio, então eu fui para casa, escrevi o texto, dirigi, atuei. O nome da peça era Loucos não somos nós”. 

"Gosto muito de fazer (arte) na rua. É inusitado, você vai passando e tem um espetáculo. Na rua, tenho um diálogo de 360 graus"

O interesse pelas artes cênicas, entretanto, cresceu em Orlângelo bem antes: a mãe, Angelita Maria, sempre foi uma sanfoneira de mão cheia. “Também tocava violão em casa, essas meninas prendadas dos anos 1960, de uma veia sensível muito forte”, pontua.

O pai, afeito ao pandeiro, também entretia os filhos Orlângelo, Ângelo Márcio e Paulo Orlando com shows de mágica. “Nada profissional, tudo muito livre”. Quando o primogênito Orlângelo completou oito anos, a trupe se debandou para Itapipoca, experimentar a cidade dos três climas. “Mas nunca perdemos a conexão com o Cariri”.

A casa de Dona Josefa — Dona Zefinha para os mais chegados — foi, durante décadas, o firme nó entre Orlângelo Leal e Juazeiro do Norte. “Dona Zefinha é uma mulher negra, cearense, costureira, mãe de cinco filhos e vizinha da minha mãe.

É de uma família humilde, mas muito batalhadora, e me ensinou muita coisa boa. As filhas dela, Bernadete e Edna, sempre me levavam para as coisas legais que tinham em Juazeiro. Eles todos me mostraram referências”, explica o artista.

No período de férias escolares, o então pequeno Orlângelo se esforçava para não ficar de recuperação só para não perder a visita ao lar da antiga vizinha. “Quando eu chegava no Cariri, o pessoal da Dona Zefinha estava me esperando para eu passar bem uns 20 dias por lá. Eu sou muito afetado por esse carinho”.

Logo, ele comandava os irmãos mais novos em brincadeiras inspiradas em folguedos populares da região, cenas de cinema, novelas televisivas. O jovem encontrou na poesia a primeira linguagem para se expressar enquanto sujeito “invocado que só”.

Autodidata, Orlângelo Leal começou a se conectar com grupos artísticos de Itapipoca ainda durante a adolescência, como a Cia Balé Baião. Ao lado do pedagogo e coreógrafo Gerson Moreno, criou a banda de rock Plebe Juvenil. “Eu era muito influenciado pelo rock dos anos 1980, pelo teatro… Logo comecei a fazer mímica imitando Charles Chaplin, o Chaplin me levou a palhaço e, sem intenção, tudo foi fluindo e acontecendo”, continua o vocalista da Dona Zefinha.

A substância colhida na ruas

Em 1994, criou a Trupe Metamorfose ao lado dos irmãos — um grupo de palhaçaria e teatro musical. A obra Retrato em Preto e Branco foi apresentada até no Festival de Teatro de Guaramiranga, mas foi o espetáculo O Auto da Camisinha que apresentou ao artista a mais importante parceria de seu trajeto artístico: a rua.

“O Auto da Camisinha foi o nosso primeiro contato com a rua — e eu me apaixonei! A rua é um espaço democrático, livre. É na rua que eu colho personagens, que eu colho histórias, que eu colho poéticas para composições. Um dia, eu estava no Rio de Janeiro andando e uma senhora que estava fritando batata falou a seguinte frase: ‘Ó o cheirinho da maresia, ó".

E eu entendi que aquela frase dizia ‘eu não queria estar aqui, eu queria estar na praia, tomando banho’. Na hora que ela falou aquilo, já veio nascendo uma música."

 



É na rua onde o artista colhe a substância, conta. "Mas eu devolvo pro espectador. Eu gosto muito de fazer (arte) na rua. É inusitado, você vai passando e tem um espetáculo, você não saiu de casa programado. Na rua, eu tenho um diálogo de 360 graus. Tem gente em cima do prédio, tem gente ali atrás trabalhando e assistindo. Um artista que trabalha na rua expande sua capacidade expressiva, de comunicação, de diálogo".

Ele expressa a gratidão à rua em seu processo de criação e também pelo processo de expressão. "Eu, como intérprete, mostro muito na rua. É um exercício de expansão do sensorial: do olho, do ouvido, do olfato, do tato, da dinâmica da fala. As pessoas interagem, mandam. O Júnior Santos, do teatro, me disse uma vez: 'Escute o espectador, ele vai lhe ensinar muita coisa'", compartilha Orlângelo.

A rua e Dona Zefinha

A rua, feito ruga na paisagem urbana, é por excelência o lugar do múltiplo. Na pluralidade de ébrios e trovadores à deriva, Orlângelo conheceu a cultura popular. “E a cultura popular fundou a Dona Zefinha em 2000”, resume.

Entre 1997 e 1998, o artista mudou-se para Fortaleza a fim de estudar direção teatral com Herê Aquino e permaneceu na Capital até 2010. Pagava as contas fazendo trabalhos como clown em shoppings, atuando na palhaçoterapia em hospitais e até substituindo o Palhaço Trepinha na porta do Theatro José de Alencar.

“Eu pensei: ‘eu não vou arrumar um emprego para fazer teatro! Eu vou viver da arte’. Até hoje eu consegui pagar as contas fazendo arte mesmo”, pontua. No torvelinho da criação, reuniu diversas composições e o trio — composto pelos irmãos — lançou o primeiro álbum do grupo Dona Zefinha em 2001, Cantos e Causos.

“A Dona Zefinha... O mais fácil de explicar o que é a Dona Zefinha é ter música e a cena junto; é um grupo cênico-musical. Numa das críticas que recebemos em Recife, o repórter começou o texto dizendo ‘os musicômicos do grupo Dona Zefinha’ eu achei essa palavra incrível! É palhaço, é música, é uma fronteira”. Em 2002, Orlângelo casou com Joélia Braga e ela ingressou no grupo, tornando-se figurinista e a primeira voz feminina da companhia.

"a Dona Zefinha é uma coisa que a gente consegue fazer em qualquer tipo de espaço"

“Entre 2004 e 2007, a gente rodou muito. Dona Zefinha caiu na moda”, relembra Orlângelo. O grupo encabeçou o Movimento Cabaçal ao lado de Dr. Raiz, Soul Zé e Jumenta Parida, uma busca pelo som do Ceará que movimentou a cena artística.

A produção autoral enquanto Dona Zefinha é extensa: além Cantos e Causos, a banda lançou também Zefinha vai a Feira; o infantil O Circo sem teto da lona furada dos Bufões; Invocado – Um jeito brasileiro de ser musical e Da Silva: El Hijo de las Américas, em co-produção com os argentinos Pato Mojado.

 

 

“Tem um know how por trás que a gente foi adquirindo e a Dona Zefinha é uma coisa que a gente consegue fazer em qualquer tipo de espaço. Aos 25 anos de carreira, já rodamos bastante Brasil, América Latina, Europa... Visitamos 13 países e apresentamos em todos os lugares uma bagagem”, complementa Orlângelo.

“É muito intuitivo meu processo criativo. Eu posso estar dirigindo e, de repente, estou compondo. Acontece muito estar num lugar e esse lugar abrir um canal... Eu gravo no celular, anoto. Eu geralmente não sento para compor; vem a primeira estrofe e daqui a três dias chega a segunda estrofe. É totalmente ligado à vida mesmo. Eu componho bastante, sou muito criador. Mas quem paga minha vida é Orlângelo artista de palco, é esse cara que está com violão na mão, nariz de palhaço e figurino”.

Entre tanta vida vivida, Orlângelo Leal promete: “Eu quero fazer outras coisas, eu quero me aventurar em outros lugares”. No palco, na praça, no circo, num banco de jardim — mas sempre na rua.

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