Na natureza, ocupação de terra improdutiva é palavra de ordem
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Editora-adjunta do O POVO+ especializada em ciência, meio ambiente e clima. Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará (UFC), é premiada a nível regional e nacional com reportagens sobre ciência e meio ambiente. Também já foi finalista do Prêmio Einstein +Admirados da Imprensa de Saúde, Ciência e Bem-Estar na região Nordeste
Na natureza, ocupação de terra improdutiva é palavra de ordem
Quando a Constituição Federal diz, no artigo 186, que uma propriedade rural deve cumprir com sua função social, acho que foi um aprendizado da natureza
Foto: Dario Sanches / Wikicommons
Imagem de apoio ilustrativo. Bem-te-vi (Pitangus sulphuratus) fotografado no Jardim Botânico de São Paulo
Tenho um ritual prazeroso ao esperar o ônibus no sol de meio-dia para vir trabalhar: levanto a cabeça e admiro o bem-te-vi alimentando os filhotes no ninho construído no poste de energia. O vejo voar com comida no bico, adentrar ao ninho deixando o rabo de fora, para logo saltar em uma micro queda-livre no impulso de voar. Quando o bem-te-vi some da minha vista, viro o rosto para a esquerda e acompanho as borboletas passeando pelas folhas das árvores do terreno vizinho à parada.
Eu não sei bem o que tem lá. Deve ser um terreno baldio, casa de um outdoor. Tudo o que sei é que ele atrai borboletas, passarinhos, pombos — e com certeza uma imensidão de insetos — com suas plantas floridas e frutíferas. Da parada, vejo um cacho de bananas frondoso e um mamoeiro carregando.
Comigo mesma, desejei que aquele terreno continuasse "abandonado" para sempre. Se ele fosse comprado ou habitado por um ser humano, as plantas correriam risco e as borboletas nunca mais voltariam. Talvez o bem-te-vi desistisse de criar os filhotes ali perto.
Depois, ri com a ideia do abandono. Estou aqui descrevendo um terreno com plantas e bichos vivendo em harmonia, resistindo a uma cidade de asfalto barulhenta, e então a palavra abandono perde o sentido. Mas sabe qual a descreve muito bem? Ocupação.
Na natureza, nenhum local está realmente abandonado. Tudo, em todo lugar, abriga algo ou alguém, ganha sentido e passa a integrar uma sequência de relações interdependentes. O bem-te-vi encarou um poste rodeado de cabos envelopados e idealizou um lar. Juntou graveto por graveto para construir um ninho firme.
Para longe da parada do ônibus, na frente do meu prédio, os morcegos voam às 17h30min em uma dança hipnotizante, cruzando um terreno totalmente descampado, cercado por arame-farpado e por placas de "vende-se". Torço para nunca venderem o terreno. Os morcegos perderiam um palco (acho que eles devem comer insetos enquanto voam ligeiros) e eu perderia o show.
Nas calçadas quebradas e irregulares no caminho para a academia, flores selvagens invadem — não, ocupam — as ranhuras. Uma árvore cercada por um minúsculo quadrado de cimento recebe sanhaços-cinzentos (Thraupis sayaca) no amanhecer.
Quando a Constituição Federal diz, no artigo 186, que uma propriedade rural deve cumprir com sua função social, acho que foi um aprendizado da natureza. As plantas e os bichos nasceram sabendo que a propriedade improdutiva deve ser desapropriada e entregue àqueles que sabem cuidá-la e usufruí-la; e o fazem em cooperativismo.
Vai ver é por isso que, no País que odeia a natureza e deseja dominá-la, a reforma agrária e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) sejam quase criminalizados. Para alguns, deve ser inconcebível esses humanos defendendo que a terra carregue vida o quanto puder. Traidores da espécie, devem pensar os engravatados incapazes de nomear uma ave sequer.
Vai saber. Uma coisa, no entanto, é fato: o topetinho do meu bem-te-vi bem que lembra um boné. Se fosse avermalhado como o do amigo suiriri-cavaleiro (Machetornis rixosa) então... A natureza realmente nunca para de nos ensinar.
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