Data centers: quando direitos sociais e espirituais são ignorados
clique para exibir bio do colunista
Editora-adjunta do O POVO+ especializada em ciência, meio ambiente e clima. Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará (UFC), é premiada a nível regional e nacional com reportagens sobre ciência e meio ambiente. Também já foi finalista do Prêmio Einstein +Admirados da Imprensa de Saúde, Ciência e Bem-Estar na região Nordeste
Foto: AURÉLIO ALVES
O povo anacé do Cauípe vive em Caucaia na margem do rio Cauípe
Não se fala em outra coisa: a chegada massiva de data centers no Ceará. Não vou entrar nos méritos de quem está certo ou errado. Do meu ponto de vista, a base do problema vai muito além do Complexo do Pecém e da comunicação meio capenga da Casa dos Ventos. É uma questão de valores fundamentais que têm sido sistematicamente ignorados por um neoextrativismo que se diz verde, mas é incapaz de entender o que “verde” significa.
Explico: a chegada dos data centers no Ceará tem sido permeada pela água. Não porque o Ceará seja aquele estado assolado pela seca como nos anos 1980 — pelo menos não Caucaia e Fortaleza, municípios litorâneos que a imprensa sudestina esquece de localizar no mapa —, mas porque o acesso à água existente é desigual.
Como apontamos em reportagens do O POVO+, o povo indígena anacé do Cauípe enfrenta há décadas o desabastecimento de água e energia elétrica no território. Eles explicam que não foram consultados pela empresa sobre a instalação do data center, um requisito do licenciamento ambiental.
Eis a dicotomia social. Um povo inteiro sem acesso à água vê-se ignorado por uma empresa que consumirá 30 m³ de água por dia, o equivalente à demanda média diária de 72 residências.
O data center explica que a água será de reúso, ou seja, uma água residual tratada que vem do esgoto doméstico e industrial. No entanto, como questionar a luta dos anacés que se veem preteridos pela iniciativa privada? Como pode um empreendimento, que não se comunica com a comunidade, ter direito a água e eles não?
A reação é justa porque toca em um direito social não atendido. Fala-se em desenvolvimento econômico sem garantir o básico para os originários do território. Ou seja, o problema não é a água de reúso (uma importante estratégia de mitigação de impactos), mas a inexistência de justiça socioambiental.
Foto: AURÉLIO ALVES
Na imagem, Paulo Anacé e Zenaide Anacé
Além disso, há a questão espiritual. O rio Cauípe é sagrado, e isso importa.
Os governos brasileiro e estadual enchem a boca para falar, em convenções ambientais e climáticas, de que os povos indígenas devem ser e são respeitados.
Foto: AURÉLIO ALVES
Canos da Cogerh no rio sagrado Cauípe
Durante a 16ª Conferência das Partes da Biodiversidade (COP16 da Biodiversidade), realizada ano passado em Cali, na Colômbia, os países — incluindo o Brasil — reconheceram a essencialidade da cultura, da espiritualidade e da visão holística dos povos originários para guiar ações de conservação e de preservação ambiental.
Em diversas coletivas de imprensa, representantes de povos indígenas de todo o globo discursaram sobre a espiritualidade da natureza. Um rio não é um recurso, mas um ser mais-que-humano. Uma árvore, um ente ancestralizado. Portanto, devem ser protegidos.
Por isso é insuficiente quando a Casa dos Ventos — e outras empresas do Complexo do Pecém e de energia renovável — explica que não haverá impacto. Que a água é de reúso, que a instalação dos empreendimentos trará empregos e movimentará alguma economia. Quem vê, na prática, os benefícios? Não os anacé do Cauípe. O que eles veem é um corpo sagrado maltratado.
Resolver esse impasse demanda uma transformação total de valores. Envolve levar as demandas sociais e a espiritualidade a sério, e dedicar tempo para ouvir as divergências e para encontrar soluções verdadeiramente verdes.
Se o discurso ESG ignora as dimensões culturais dos povos, então ele é greenwashing — uma estratégia de marketing que usa o discurso ecológico para impulsionar ações socioambientalmente negativas. E esse greenwashing pode até enganar alguns por algum tempo, mas não todos por todo tempo.
Análises e fatos sobre as pautas ambientais. Acesse minha página
e clique no sino para receber notificações.
Esse conteúdo é de acesso exclusivo aos assinantes do OP+
Filmes, documentários, clube de descontos, reportagens, colunistas, jornal e muito mais
Conteúdo exclusivo para assinantes do OPOVO+. Já é assinante?
Entrar.
Estamos disponibilizando gratuitamente um conteúdo de acesso exclusivo de assinantes. Para mais colunas, vídeos e reportagens especiais como essas assine OPOVO +.