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Tiradentes: as jornadas em "Kevin" e "Rosa Tirana"
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João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.

João Gabriel Tréz arte e cultura

Tiradentes: as jornadas em "Kevin" e "Rosa Tirana"

Longas que compõem a Mostra Aurora da 24ª da Mostra de Cinema de Tiradentes, "Rosa Tirana" (BA) e "Kevin" (MG) apresentam olhares singulares para estruturas conhecidas
Tipo Opinião
O filme mineiro 'Kevin' mostra o reencontro de duas amigas quase 20 anos depois (Foto: Cristina Maure / divulgação)
Foto: Cristina Maure / divulgação O filme mineiro 'Kevin' mostra o reencontro de duas amigas quase 20 anos depois

Certas imagens, formas, opções e recortes são encaradas como “formulaicas” pela utilização reiterada. A noção de “ineditismo” escapa por parecer que não há nada novo a ser dito, feito - ou filmado. O que se pode oferecer, então, é um olhar novo e fresco a algo já conhecido. Esta introdução relaciona-se, em diferentes níveis, a dois filmes selecionados para a 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes: o baiano “Rosa Tirana”, de Rogério Sagui, e o mineiro “Kevin”, de Joana Oliveira. O evento, neste ano, ocorre de forma virtual. Toda a programação está acessível gratuitamente no site.

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“Rosa Tirana” - que pode ser assistido até 20 horas desta quarta, 27 - se passa no “sertão nordestino” em um “setembro de um ano qualquer”. Sem demarcação específica de espaço e tempo, o longa acompanha a travessia da menina Rosa (Kiarah Rocha) pela caatinga em busca de encontrar Nossa Senhora para pedir por chuva.

A obra se constrói em um terreno curioso. A utilização de imagens que pertencem a certos imaginários do que é/seria o Nordeste, a seca e o sertão é notada de partida. Aspectos como o apego à religiosidade e a importância da chuva, bem como a aridez das paisagens, estão todos lá.

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Ao mesmo tempo, porém, que utiliza tais elementos reconhecíveis, o filme abre-se em dados momentos a um despojamento e uma liberdade para criar, de fato, outra coisa. Tais aberturas estabelecem, de certa forma, outro olhar e outro imaginário.

Até narrativamente a jornada de Rosa também é facilmente reconhecida em termos estruturais. Fazendo “paradas” em estações distintas, ela enfrenta uma série de desafios, sejam concretos ou simbólicos. Neste percurso, o filme toma para si o olhar da protagonista - algo entre o deslumbre, o receio e a motivação - e constrói estes momentos a partir deste ponto de vista.

A porção mais bem trabalhada e efetiva da obra vem deste olhar compartilhado entre Rosa-filme e Rosa-personagem. Depois de uma série de provações no percurso, a menina depara-se com uma espécie de festejo que, conforme é sugerido, é fruto de uma fantasia. Lampejo de alegria, fabulação e vida, a sequência pulsa não somente pelo aspecto narrativo, mas pela própria leveza com a qual, por exemplo, a câmera se movimenta entre os brincantes.

O diretor Rogério Sagui estreia com 'Rosa Tirana'
Foto: Thais Cassia / divulgação
O diretor Rogério Sagui estreia com 'Rosa Tirana'

Momentos como este se impõem enquanto frescor. Outro exemplo está naquele onde o ator José Dumont, que interpreta o avô de Rosa, performa um forte monólogo no início do filme - ainda que a construção da cena, ressalte-se, perca um tanto do poder por uma indecisão de enquadramento e montagem.

Mesmo enquanto feitura, “Rosa Tirana” também parece estar em outro lugar, dividido entre certo verniz comercial/acessível, aspecto perceptível de partida, e uma verve muito forte de produção independente e coletiva. Cada imagem, cada figurino e cada presença parecem ressaltar que o filme é uma realização de uma cidade inteira. Os créditos de apoio cultural à Prefeitura de Poções, município baiano a 444 km de Salvador, e a diferentes estabelecimentos da cidade são “provas” dessa movimentação coletiva.

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As questões que orbitam o reconhecimento de operações cinematográficas e o frescor de certas escolhas também encontram espaço de ressonância no mineiro “Kevin”. Apresentado enquanto documentário, o filme de Joana Oliveira baseia-se numa viagem que a própria cineasta faz à Uganda para se reencontrar com Kevin, velha amiga.

As duas se conheceram há quase 20 anos na Alemanha, onde estudaram juntas, mas há muito tempo não se viam. O novo encontro entre elas, já chegando aos 40 anos, é marcado por trocas, apoios e reflexões sobre juventude e maturidade. Todo o filme se desenrola num registro híbrido entre documentário e ficção.

Essa relação de contaminação entre os gêneros não é uma operação inovadora em si e o próprio filme não necessariamente inspira alcançar novos níveis de representação. Ele, pode-se dizer, é de forma muito pura, simples e direta uma encenação de vivências reais. A escolha é honesta e revela-se por meio das escolhas de enquadramento, dos planos e contraplanos e, até, pelo registro das performances das protagonistas.

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A opção, efetiva e envolvente, parte desta espécie de autoficção para ressaltar a honestidade das questões íntimas e pessoais das duas mulheres. A jornada de Joana no filme é, em termos dramatúrgicos básicos, também bastante reconhecível. Num movimento para fora - a ida à Uganda -, ela acaba também “indo” para dentro de si.

Em um prólogo, o filme apresenta um rápido contexto de Joana no Brasil, entre a doença do pai, as idas à Universidade e uma condição de saúde não explicitada. No desenvolvimento do documentário, a partir do encontro com a amiga, tais questões vão sendo mais frontalmente abordadas e aprofundam o tecido subjetivo do documentário.

Não há, porém, o peso do ensimesmamento nessa escolha. O filme só existe por conta de Kevin, essa amiga e coprotagonista que apoia e é apoiada. Os gestos de afeto que elas lançam entre si são, também, gestos de autocelebração e autopreservação.

As flagrantes diferenças entre as duas - que vão de questões de nacionalidade e raça à relação com maternidade e as próprias personalidades - são abordadas de forma também frontal e aberta, como a amizade delas parece permitir.

O filme só existe, enfim, porque a relação entre Kevin e Joana existe. E, em certo sentido, Kevin e Joana só são como são porque a amizade entre elas existe. Numa bonita cena, as duas são filmadas de costas, conversando enquanto seguem a pé o caminho dos trilhos de um trem. Alternadamente, tentam se equilibrar, uma em cada trilho. Constantemente caem. Quando tentam ao mesmo tempo, conseguem encontrar o equilíbrio. “É muito mais estável quando fazemos juntas!”, exclama Kevin.

Foto do João Gabriel Tréz

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