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Mostra de Cinema de Tiradentes: Olhos Livres e os tempos "do fim pra frente"
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João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.

João Gabriel Tréz arte e cultura

Mostra de Cinema de Tiradentes: Olhos Livres e os tempos "do fim pra frente"

Filmes que compõem a Mostra Olhos Livres na 24ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes lançam propostas de sobreposições e torções de tempos
Tipo Opinião
Documentário mineiro 'Nũhũ yãg mũ yõg hãm: Essa Terra é Nossa!', de Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero, reafirma pertencimento e ancestralidade (Foto: divulgação)
Foto: divulgação Documentário mineiro 'Nũhũ yãg mũ yõg hãm: Essa Terra é Nossa!', de Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero, reafirma pertencimento e ancestralidade

Abordando os seis filmes que compõem a Mostra Olhos Livres, o texto “Olhos Livres – Os territórios do cinema brasileiro como um arquipélago continental” - assinado pelos curadores Francis Vogner dos Reis e Lila Foster e disponível no catálogo da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes - aponta que as obras dividem entre si um “espírito de época que os atravessa”. Um “lastro comum” das obras aponta à “experiência de viver um tempo em que o passado se faz presente e o futuro parece inviável”, escrevem. “Todos esses filmes recuperam o passado de alguma forma, vivem seu tensionamento no provisório convulsivo do presente e se indagam quanto ao futuro”, arrematam, ao fim do texto. A precisa leitura ajuda a entender preocupações do recorte curatorial proposta na mostra em 2021.

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Estão disponíveis para acesso até o próximo sábado, 30, os filmes “Nuhu yãgmu yõg hãm: essa terra é nossa!” (MG), de Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero; “Subterrânea” (RJ), de Pedro Urano; “Amador” (MG), de Cris Ventura; “Voltei!” (BA), de Ary Rosa e Glenda Nicácio; “Rodson ou (Onde o Sol Não Tem Dó)” (CE), de Cleyton Xavier, Clara Chroma, Orlok Sombra; e “Irmã”, de Luciana Mazeto e Vinícius Lopes.

É possível, num olhar pragmático, reconhecer neles dois “grupos temporais” mais explícitos: aqueles que voltam-se ao passado - notadamente “Nuhu yãgmu yõg hãm: essa terra é nossa!”, “Subterrânea” e “Amador” - e os que prospectam o futuro - “Voltei!”, “Rodson” e “Irmã”. No entanto, como indicam os curadores, as abordagens dos tempos operadas pelo conjunto dos filmes não se desenrolam de maneira cristalizada ou definitiva.

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“Irmã”, por exemplo, arrisca uma abordagem fantástica e com elementos de distopia, mas traz no tecido narrativo um contexto de paleontologia, no qual o asteroide que há mais de 66 milhões de anos dizimou os dinossauros ressurge no filme enquanto elaboração subjetiva. Mais frontalmente futuristas, “Voltei!” e “Rodson” se situam, respectivamente, nos anos de 2030 e 3000.

Ambos, no entanto, estruturam propostas de mundos que têm ligação direta com processos e fatores históricos marcados na trajetória sócio-política do Brasil. Se o longa baiano segue irmãs que acompanham durante uma madrugada, num rádio de pilha e sem energia em casa, uma votação que poderá destituir o “governo do disparate” instaurado anos antes, o longa cearense apresenta um cenário caótico onde qualquer fagulha de criatividade é reprimida e as instituições da “família tradicional” e da igreja reinam plenamente.

“Voltei!” e “Rodson”, com abordagens formais distintas entre si - o primeiro é mais econômico enquanto o segundo amontoa estéticas, indo do VHS ao videogame e passando por uma emulação de cinema mudo -, buscam especular futuros possíveis a partir de diferentes níveis de esperança, ironia e referências ao passado-presente: no baiano, não há energia e uma unidade de pilha custa R$ 10; no cearense, não há água e quem tem uma das “últimas garrafas” do mundo para oferecer impõe humilhações ao potencial consumidor; em ambos, artistas são perseguidos.

Em um olhar mais declarado àquilo que passou, "Nuhu yãgmu yõg hãm: essa terra é nossa!" desenrola-se como um filme de repetição - no sentido mais efetivo do termo. Ao longos dos 70 minutos de duração, o filme segue um grupo de maxakalis andando por territórios no Vale do Mucurí (MG) e retomando, pela presença e pela palavra, o pertencimento a seus ancestrais de cada espaço visitado. A afirmação no presente formula caminhos futuros.

O documentário “Amador”, por sua vez, dedica-se a traçar um retrato de Vidigal, multiartista mineiro conhecido em circuitos underground da capital Belo Horizonte. O filme se constrói a partir de série de encontros entre a diretora e o protagonista que foram gravados ao longo dos anos. Cada um deles traz em si a presentidade do momento, mas, reunidos enquanto obra, lançam um olhar de nostalgia e desvendamento de contexto.

É em “Subterrânea” que se dá, porém, uma das mais singulares operações de sobrepor e retorcer não somente tempos, mas registros e referências. O filme de Pedro Urano é protagonizado por Silvana Stein e Negro Leo, que interpretam a professora Stein, uma geóloga e pesquisadora, e seu sobrinho e aluno Leo. A dupla se envolve numa trama quase farsesca de aventura arqueológica que desenvolve-se enquanto uma escavação do passado - recente e nem tanto - da formação do Rio de Janeiro.

O longa 'Subterrânea', com direção de Pedro Urano, aborda aspectos da formação histórica do Rio de Janeiro a partir de trama que mistura gêneros e tempos
Foto: divulgação
O longa 'Subterrânea', com direção de Pedro Urano, aborda aspectos da formação histórica do Rio de Janeiro a partir de trama que mistura gêneros e tempos

A partir da lenda do tesouro do Morro do Castelo e da demolição - ou, como prefere um engenheiro da construtora responsável pela ação, implosão - da Perimetral na capital fluminense, a professora Stein e Leo entram numa espiral de especulações sobre passado, presente e futuro.

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Misturando elementos de aventura, fantasia, ficção-científica, ensaio e documentário, bem como doses centrais de ironia e História, o longa remexe fatos, relações e crenças do passado que vão cada vez mais se impondo na contemporaneidade - como a água que teima em jorrar do subterrâneo em uma das passagens iniciais do filme.

Quanto mais a professora Stein e Leo se aprofundam na busca que os move - e na terra -, mais o longa extrapola limitações de forma e narrativa. O que a máxima profundidade subterrânea guarda, enfim, é um terreno do fantástico onde autores mortos há um século se comunicam por charadas, buracos numa parede rochosa oferecem visões contemporâneas, olhos-mágicos brotam do chão e, como canta o artista Cabelo Cobra Coral, a lógica temporal desenvolve-se “do fim pra frente”.

24ª Mostra de Cinema de Tiradentes

Quando: até 30 de janeiro
Onde: www.mostratiradentes.com.br
Mais informações: @universoproducao

Foto do João Gabriel Tréz

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