Longa "A Última Floresta" é convite e alerta à branquitude
João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.
O caráter urgente e factual disposto no longa "A Última Floresta", dirigido por Luiz Bolognesi e coescrito por ele e pelo protagonista, o xamã e líder indígena Davi Kopenawa Yanomami, pode impressionar à primeira vista, mas é, na verdade, uma constante quando se trata dos avisos e mensagens compartilhadas pelos povos indígenas do Brasil: basta lembrar que o próprio xamã é autor do livro "A Queda do Céu", lançado em português somente em 2015, mas que reúne o que há décadas ele e os yanomami têm a alertar. Alinhavando ficção e documentário, o filme traz um retrato do cotidiano de indígenas isolados e as ações empreendidas pelo grupo para salvaguardar suas tradições e existências.
De partida no filme, Davi expressa o desejo - a necessidade - de produzir troca, compartilhamento e reconhecimento junto aos brancos. Em discurso inicial, o protagonista divide: "Os brancos não nos conhecem. Seus olhos nunca nos viram. Seus ouvidos não entendem nossas falas. Por isso, eu preciso ir lá onde vivem os brancos", atesta, seguindo: "Por que é preciso ir lá? Fazer o quê na terra dos brancos? (...) Eles não conhecem os yanomami de perto. Não quero ir lá para levar comida de festa, nem dança folclórica. (...) Preciso ensinar o nosso pensamento para eles".
A ideia existente na forte fala do xamã traz em si o que é, também, o grande mote da própria obra cinematográfica. Seja pelo caráter observacional que o filme adota em certas partes, seja nas porções mais ficcionalizadas, como aquelas em que mitos originários dos yanomami são dramatizados de maneira envolvente por membros do povo, "A Última Floresta" se constitui enquanto o tal convite que o líder elabora: é preciso que nós aprendamos o pensamento deles.
Ao mesmo tempo que é um convite, porém, o longa não cai no lugar comum do assimilacionismo, da "troca edificante" entre indígenas e uma branquitude interessada no raso - afinal, o foco aqui não é a "comida de festa" ou a "dança folclórica". A intenção passa, em especial, pela honestidade de uma troca de igual para igual que, importante, não ignore as distinções entre as duas realidades. Passa também, talvez acima de tudo, por um caráter de alerta.
Se no livro "A Queda do Céu" o xamã avisava que o extermínio das culturas indígenas e da natureza fará com que o céu desabe na terra e a destrua, "A Última Floresta" reforça as ideias da importância da preservação.
A atualidade dos debates propostos pelo longa, como já dito, depõe de forma frontal sobre a permanência justamente dos problemas que atingem os povos indígenas, como a atividade do garimpo ilegal e a contaminação com doenças espalhadas nos territórios pelos brancos. No contexto em que representantes de diversos povos seguem ocupando Brasília para acompanhar a votação da proposta do Marco Temporal, cuja aprovação seria mais um golpe contrário aos povos originários, a urgência da produção se fortalece.
Um problema posto na relação de trocas entre indígenas e brancos é que, por vezes, os últimos encaram as pautas dos primeiros como separadas da própria realidade, como se o que os atingisse só a eles interessasse. Tal visão segmentada não poderia ser mais descolada dos fatos.
A ligação, atualidade e urgência das pautas dos povos originários, por exemplo, são ressaltadas em cenas como aquela em que um personagem aconselha os companheiros: "Se garimpeiros chegarem aqui de surpresa, derem espingardas, não aceitem! Espingarda não alimenta!". Qualquer semelhança com a recente dicotomia estabelecida pelo presidente da república entre fuzil e feijão não é mera coincidência; é projeto.
Cada mito, história, defesa e ideia dos povos originários representa uma reflexão ou aviso que tem estrita ligação com o hoje e o amanhã não somente do Brasil, mas de todo o mundo. As ideias de quem acha ou diz o contrário se baseiam em interesses e pautas, estas sim, apartadas da realidade e aliadas ao extermínio, à violência e à exploração.
Mais do que nunca, é tempo de religar as noções de preservação, cuidado e conexão. "Fiquem com seus ouvidos atentos. Meu nome é Davi Kopenawa Yanomami e vou ensinar algumas coisas para vocês", professa o xamã na cena final. "Vocês que vivem aqui na outra margem, daqui vocês não enxergam", segue ele. Os povos originários estão convidando; resta, a nós, estarmos dispostos a enxergar, ouvir e agir.
Confira trailer:
A Última Floresta
Quando: a partir de hoje, sessões às 20 horas (sáb e dom às 18 horas)
Onde: Cinema do Dragão (rua Dragão do Mar, 81)
Quanto: R$ 16 (inteira); R$ 10 às terças. Vendas na bilheteria e no site ingresso.com
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