"Não me interessa revolucionar o cinema com novas imagens", compartilha cineasta Rafael Luan
João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.
"Não me interessa revolucionar o cinema com novas imagens", compartilha cineasta Rafael Luan
Estreando filme em festival da Áustria e em campanha pelo financiamento de nova produção, realizador cearense Rafael Luan fala à coluna sobre regimes de representação e visibilidade no cinema
"O cinema é uma possibilidade que vejo de falar coisas que podem ser ouvidas". O uso que o cineasta Rafael Luan faz da ferramenta que "costura" som e imagem é interessado em dizer muito. Nascido no município de Jaguaruana, em um contexto sem salas de cinema, o realizador confessa que, durante um tempo, "acreditava que o espaço físico da sala de cinema não existia". As imagens, no entanto, já existiam.
Aquelas das fitas VHS, nas quais ele reconhecia outros corpos negros, porém, não despertavam o interesse do então menino — pelo que ele hoje reconhece como "perspectivas caricatas e estereotipadas". O mais recente projeto de Rafael, o curta "Dessa vez, fogo", espelha, de dada maneira, a relação inicial do diretor com as imagens: a sinopse do filme, com Lucas Limeira e Mateus Fazeno Rock, explica que dois amigos se unem para criar um filme sobre o corpo negro no cinema para, no processo, perceberem que não há imagens suficientes.
A produção independente está, no momento, arrecadando recursos para finalização. Em paralelo, "Preces Precipitadas de um Lugar Sagrado que não Existe Mais" — curta anterior de Rafael, co-dirigido com Mike Dutra, que se baseia em elementos de afrofuturismo — foi selecionado para o primeiro evento internacional, o 31º Festival de Innsbruck (IFFI, na sigla em inglês), na Áustria, onde será exibido no final de maio. Em entrevista à coluna, Rafael compartilha ideias sobre imagens, inspirações e desejos pelo cinema.
O POVO - Como você, o Mike e a equipe toda receberam a seleção para o IFFI?
Rafael - Desde que convidei o Mike (para dividir a direção) e a equipe do filme, algo muito enfatizado tratava da importância que percebo nos processos de distribuição. Acredito que a etapa de distribuição é algo que geralmente se torna secundário nas produções de baixíssimo orçamento, principalmente no nosso caso, com um filme de escola (Vila das Artes) feito através de financiamento coletivo. Então, a participação em festivais e a circulação do filme eram possibilidades que eu almejava enquanto alguém que se dedica aos estudos de distribuição.
O convite para compor a mostra foi feito pela própria curadora da retrospectiva, Claire Diao, e isso por si já foi recebido com muita alegria. Ver no programa do IFFI a relação dos filmes nos deixou muito honrados com a possibilidade de dividir espaço de exibição com grandes referências do cinema afrofuturista mundial, já que filmes como "Pumzi" (2008), de Wanuri Kahiu, "The Last Angel of History" (2016), de John Akomfrah, e "Space Is The Place" (1974), de John Coney, estão compondo a mostra. A equipe do filme foi muito generosa com o roteiro e o curta até chegou a ganhar prêmio de melhor montagem em um festival local, mas a participação na retrospectiva é sem dúvidas uma janela de exibição de importância imensurável.
OP - Tanto "Preces" quanto o "Dessa vez, fogo" elaboram formas de lidar com os tempos, o primeiro trazendo o lugar da encruzilhada temporal, enquanto o segundo parece querer trazer no presente um debruçar- se no passado — revisitar imagens — para construir novas possibilidades. Em que nível pensar isso pelo cinema te interessa?
Rafael - Me parece que o tempo, enquanto medida real e material do espaço, me chega de forma muito específica e de alguma maneira isso reverbera nos roteiros que escrevo, mesmo quando as histórias tratam de um assunto muito factual, como no primeiro filme que dirigi, chamado "Banzo", que trata de um auto de resistência e o luto de uma mãe.
Minha relação com a realização é permeada pela vontade de ver "pessoas semelhantes a mim" na tela de cinema, e nisso me refiro a ver um jovem negro, com estereótipos comumente marginalizados e tratado com viés racista pela mídia, se tornando outra imagem, mostrando as complexidades que envolvem ser negro na sociedade brasileira, o que inclusive se pauta por outros desejos além de construir uma luta antirracista.
Nisto, apesar das personagens estarem viajando no tempo, criando formas e realidades diferentes, possuem vontades e medos comuns a mim e a vários sujeitos "parecidos" comigo. Não me interessa revolucionar o cinema com novas imagens, mas garantir um espaço seguro de criação e projeção das questões raciais, longe de perspectivas vanguardistas.
OP - O "Dessa vez, fogo" é um filme que se baseia nessa retomada de imagens e sampleá-las e uma "versão" dele, "Ensaios sobre abismo", foi apresentada como seu trabalho de conclusão do curso de Audiovisual da Vila das Artes. O que te moveu a querer revistar e remixar o que você já tinha realizado?
Rafael - O título do "Dessa vez, fogo" surge de uma obra de um autor importante para minha formação, o escritor James Baldwin, chamada "Da próxima vez, fogo", livro escrito em 1969 que trata-se de um conjunto de cartas que James dedica ao seu sobrinho de mesmo nome e, apesar de se tratar do contexto norte-americano, a leitura me despertou muitas sensações que culminaram nesses processos. "Ensaios sobre abismo" e "Dessa vez, fogo" surgem de uma pesquisa muito próxima na qual me debruço sobre os filmes de John Akomfrah (realizador e integrante do coletivo Black Audio Film Collective) e os de Gabriel Martins (realizador mineiro e cofundador da Filmes de Plástico).
Os dois não possuem uma relação direta, mas para mim são cineastas que de alguma maneira propõem um novo regime de visibilidade para o corpo negro que, me utilizando das palavras de bell hooks (teórica feminista e escritora, 1952-2021), pode nos fazer nos sentir "amados". Apesar das pesquisas dos meus dois filmes serem muito próximas, elas partem de premissas bem distintas. Enquanto o filme "Ensaio sobre abismos" se depara com uma discussão voltada para o consumo da imagem do corpo negro na televisão e no cinema, brincando com a possibilidade de causar um estado de confusão e desorientação de quem assiste através das junções de fotografias em camadas, em "Dessa vez, fogo" a ideia é voltada para uma vontade de trabalhar a metalinguagem no processo fílmico e entender como é possível refazer imagens e dominá-las na tentativa de torná-las outras coisas.
OP - De que forma o mote de "Dessa vez, fogo" se relaciona com suas próprias intenções de filmar?
Rafael - Uma história que sempre conto em debates e conversas cotidianas é sobre a minha relação com cinema enquanto alguém que cresceu em uma cidade do interior e sem salas de cinema. Durante um tempo na minha infância, eu acreditava que o espaço físico da sala de cinema não existia, logo meu contato direto com os filmes se deu através de fitas VHS. Nesse processo, percebi que a maioria dos filmes que haviam personagens negros se tornava desinteressante por se tratar de perspectivas caricatas e estereotipadas do corpo negro. Isso me afastou da possibilidade de "gostar" de ver pessoas negras em filmes ou filmes sobre pessoas negras. A experiência de afastamento dessas narrativas se deu até recentemente com os streamings.
Dito isto, desde que comecei a estudar e fazer cinema uma reflexão que venho tendo é que existe uma dificuldade de ser levado a sério quando se é um jovem negro na sociedade brasileira, e você precisa falar algo e ser escutado. O cinema é, então, uma possibilidade que vejo de falar coisas que podem ser ouvidas, logo o "Dessa vez, fogo" é um filme que muito diretamente se aproxima dessa possibilidade de forma prática.
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A produção tem como meta arrecadar R$ 6 mil para custear diárias de filmagem, compra de adereços, ajuda de custo e passagens e deslocamento da equipe
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