Guimarães Rosa e outros escritos em pontos de cruz, laçada e rococó
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Jornalista formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Desde 1991, atua nas redações dos principais jornais cearenses. Trabalha no O POVO desde 1995. Passou pelas editorias Cidades (como repórter e editor), Ciência & Saúde (repórter), editor de Primeira Página, Núcleos de repórteres especiais e de Jornalismo Investigativo e Núcleo Datadoc, de jornalismo de dados. Hoje, é repórter especial de Cidades. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, incluindo nacionais e internacionais
Guimarães Rosa e outros escritos em pontos de cruz, laçada e rococó
Há 11 anos, o grupo Iluminuras transfere os escritos literários de autores renomados, através da agulha, linha e outros instrumentos para a linguagem e a arte do bordado. É poesia e terapia
Foto: FERNANDA BARROS
Criação em bordado retrata o personagem Jacinto, do livro A Cidade e as Serras, romance de Eça de Queiroz
Imaginei um Guimarães Rosa bordadeiro, sentado num canto de alpendre da sua natal Cordisburgo. Ele inspirado, como se fez em costume, agarrado em agulha e linha e valsando as mãos sobre frente e verso de um tecido. Um branco linho, com bordas em renda, esticado pelo bastidor arredondado de madeira. Na cadeira, olhos mirando o pano e alinhavando um daqueles seus sertões que nos preenchem.
Em vez das teclas da máquina de escrever e as folhas à espera de letras, agora são os novelos, dedais, passa-fios e o repertório de pontos de cruz, rococós, laçadas e outros do gosto e domínio. Em vez do palavreado imenso, surpreendente e belo, abre a malinha de costura e volta à valsa manual. As linhas recontam do que antes entregaram as palavras e entrelaçam as meninices, tristezas e descobertas do mundo Mutúm de Miguilim, do livro Corpo de Baile (1956).
“Um certo Miguilim morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-d'Água e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no Mutúm. No meio dos Campos Gerais, mas num covoão em trecho de matas, terra preta, pé de serra. Miguilim tinha oito anos”. Assim teceu João Guimarães Rosa.
Veja fotos de aula e criações bordadas do grupo Iluminuras:
(Foto: FERNANDA BARROS)Alunas mostram criações e explicam o que foi alinhavado dos autores estudados
(Foto: FERNANDA BARROS)Aula do grupo Iluminuras, curso de extensão da UFC, que usa o bordado para reinterpretar obras literárias de renome.
(Foto: FERNANDA BARROS)Aluna do grupo Iluminuras retoca peça de bordado produzida a partir do livro de Eça de Queiroz
(Foto: FERNANDA BARROS)O castelo de Jacinto, o personagem rico e entediado do livro A Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz
(Foto: FERNANDA BARROS)A aluna Lúcia Galvão já bordou Miguilim abraçado à mãe, personagens do conto Campo Geral, de Guimarães Rosa, do livro Corpo de Baile, de 1956
(Foto: FERNANDA BARROS)O castelo de Jacinto, o personagem rico e entediado do livro A Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz
(Foto: FERNANDA BARROS)A pedido, alunas mostraram criações feitas no último semestre, com bordados que traduzem o romance A Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz
(Foto: FERNANDA BARROS)No bordado, passagem do livro A Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz
(Foto: FERNANDA BARROS)Aulas do grupo Iluminuras acontecem na Faculdade de Educação (Faced), da UFC
(Foto: FERNANDA BARROS)Neuma Cavalcante conduz as aulas do grupo Iluminuras desde sua criação, em 2014
(Foto: FERNANDA BARROS)Criação em bordado retrata o personagem Jacinto, do livro A Cidade e as Serras, romance de Eça de Queiroz
Pensei nos fios desenhando o menino abraçado aos sofrimentos de sua mãe, ou choroso por terem levado sua Pingo-de-Ouro, cadela de quem gostava demais e ela dele. Ou esboçando os demais da matilha caseira: Caráter, Catita, Soprado, Floresto, Seu Nome… As serras ao redor, a confiança no irmão Dito, os sabugos colhidos que gostava de se deitar por cima, o pai raivoso, a admiração pelo tio Terêz, as curiosidades, o aprender a ser criança naquele cafundó mineiro.
Como nos livros, tudo cabe num bordado. Miguilim é a inspiração atual para as participantes do grupo Iluminuras, que completaram o 11º ano de releituras de obras literárias através da arte do bordar. O projeto nasceu em 2014, como curso de extensão da Universidade Federal do Ceará (UFC), comemorativo à época ao centenário do contista cearense Moreira Campos. Porém as linhas da proposta nunca mais se desfiaram. Nem durante a pandemia, em encontros online. O nome se baseou na ideia das iluminuras medievais, brilhos que adornavam os manuscritos em pergaminhos.
Um autor é estudado ao longo de um semestre, encontros às quartas-feiras numa sala da Faculdade de Educação (Faced), no Benfica. E deles se debulha a obra e se espeta a mente criativa para a reinterpretação. Os panos são livres. Guimarães não está só. Eça, Patativa, Moreira Campos, Rachel, Clarice, Natércia, Graciliano, o Brasil de Pero Vaz ou o de Mário de Andrade e seu Macunaíma, Castro Alves, José de Alencar, a Capitu de Machado de Assis, outros e outras desse quilate alto já tiveram seus momentos bordadeiros, transferidos para o entremeado por agulha e linha. Outras lindezas foram fiadas.
A coordenadora, fundadora da ideia, segue sendo a professora Neuma Cavalcante. Em seus 83 anos, aposentada, depois de uma vida dedicada à educação, ainda se mostra cativada pelo que tem sido poetizado nessa década e o porvir. “Eu me emociono muito com cada aula. Parece até uma terapia, elas vão fundo lá na infância. É um conforto para mim, aposentada, fazer alguma coisa pelas pessoas. Eu digo ver a literatura como uma coisa que possa trazer algo a mais, além do prazer, além de tudo que ela pode dar”. O bordado foi um aprendizado de infância, de quando era da idade de Miguilim e a mãe lhe fazia bonecas de pano. Os livros estavam ali na mesma prateleira de afeição.
As alunas são jovens senhoras, experientes, da vida acadêmica e profissional ativa ou aposentada, a maternidade e outras vivências tão boas ou difíceis quanto e se realinham no momento próprio, particular. O bordado ganha protagonismo. Uma e mais uma e mais delas confirmam o ambiente terapêutico que se cria, partilha e autoconhecimento. E entre elas há quem nem saiba desenhar ou bordar. Mas o trabalho final surge e encanta. O último concluído foi da obra "A Cidade e as Serras", de Eça de Queiroz, de 1901. A cada final de curso sempre são programadas exposições. A do livro de Guimarães Rosa ainda não tem data prevista.
Há até quem vá sem nenhuma habilidade manual, pela revisita a autores já lidos. E delas que estão desde a primeira turma e ficaram. Como Sílvia Cavalcante, professora de história aposentada, justamente uma das mais habilidosas. Cada uma descreve significados próprios sobre o curso, o bordar e a obra esmiuçada. De “não brigar com a linha”, entender “até o significado do avesso, que também tem sua beleza”, “bordar o que sentiu, o que pensa”, “o mais difícil é traduzir”, o envolvimento, “e que todo mundo tem seu jeito de fazer, seu ponto”, não é sempre necessário um padrão. Vai-se perdendo o medo de errar. Fazer “do seu jeito, do seu melhor”. Estão por se quererem bem. E aos livros e às linhas.
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