Logo O POVO+
"Tá lá o corpo estendido no chão"
Foto de Cláudio Ribeiro
clique para exibir bio do colunista

Jornalista formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Desde 1991, atua nas redações dos principais jornais cearenses. Trabalha no O POVO desde 1995. Passou pelas editorias Cidades (como repórter e editor), Ciência & Saúde (repórter), editor de Primeira Página, Núcleos de repórteres especiais e de Jornalismo Investigativo e Núcleo Datadoc, de jornalismo de dados. Hoje, é repórter especial de Cidades. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, incluindo nacionais e internacionais

"Tá lá o corpo estendido no chão"

A hipótese é de um julgamento pelo tribunal do crime, mas a cena macabra de um corpo mutilado, que lhe arrancaram a cabeça e o coração, achado de cadáver nesta semana em Maracanaú, fala também sobre outras indiferenças e barbáries do cotidiano local
Foto ilustrativa para matéria sobre violência no Estado do Ceará (Foto: DANIEL GALBER/ESPECIAL PARA O POVO)
Foto: DANIEL GALBER/ESPECIAL PARA O POVO Foto ilustrativa para matéria sobre violência no Estado do Ceará

Nunca será comum que matem um homem, lhe deixem o corpo estendido na grama, decapitado, com a cabeça largada sobre o assento do balanço da pracinha do bairro. 

A vítima, além de várias perfurações, também teve o tórax aberto. Dois rasgões feitos a faca. As costelas à mostra. Feito um bicho de abate. Quando é na carne humana, é barbárie.

Não bastasse, o homem também teve o coração arrancado. O órgão foi deixado mais uns palmos ao lado, a grama ensaguentada. Havia facas sujas largadas por perto. Cabeça, corpo, coração, separados e expostos como numa vitrine da maldade. A mensagem é de castigo extremo, não se sabe a motivação. 

A cena é de horror, mas não ficção. Vida real, um caso local. Não é guerra alheia.

"AIS 12 – Achado de cadáver a faca na Região Metropolitana. Local: Trav. Dezessete – Alto Alegre II, Maracanaú. Data/Hora: 30/09/25 - 06h57min. Vítima: Sexo masculino, decapitado. Suspeito(s): Sem informações".

É o que está indicado no registro da Ciops, o mesão de operações da Segurança Pública cearense, cada vez mais movimentado.

LEIA TAMBÉM | Trapalhadas e xeretagens dos espiões cearenses 

As fotos causam mal-estar. Seria sensacionalista publicá-las até borradas. O corpo tinha as mãos atadas para trás. A indicação é de que o homem foi julgado pelo tribunal de rua. Difícil imaginar qual a ordem cronológica dos fatos, o que aconteceu primeiramente, quantos teriam participado.

Cheguei a escrever a maior parte da coluna sem saber o nome da vítima. A identidade apareceu já com o texto quase fechado: Anderson Matheus da Silva Santos, 31 anos. Era natural de Fortaleza, consta que morava no Canindezinho. Fez aniversário no dia 1º de setembro, no mesmo mês em que foi morto.

Há um processo por roubo que cita seu nome como réu, instaurado em 2023 na 7ª Vara Criminal de Fortaleza. De algo mais característico, era canhoto e aposentado - sem detalhes sobre isso -, conforme seu registro de identificação. 

Na resposta da SSPDS, a informação protocolar de que o caso segue sendo investigado. Não há ninguém preso pelo crime.

Falar dessa morte diz muito sobre como estão as ruas nessa escalada da violência. É sobre quem morre, quem mata, onde e também como estão matando.

Decapitação não é caso inédito. Mas a história chega perto da linha da indiferença. "Só mais um", "quem quer saber?", "estão tudo se matando", "deve ser de facção". Para muitos, é mais do mesmo, parece irrelevante. Não foi manchete. Muitos leram e pularam para a notícia seguinte.

Se tudo que foi descrito na cena do crime não cabe no comum, o mais chocante é parecer banalizado. Como se não nos interessasse.

"Tá lá o corpo estendido no chão/ Em vez de rosto uma foto de um gol/ Em vez de reza uma praga de alguém/ E o silêncio servindo de amém". Aldir Blanc e João Bosco explicaram bem, meio século atrás. Irretocavelmente. 

O celular de alguém registra, a imagem viraliza e logo o caso escoa para o esquecimento. Vira mais um.

Como as chacinas, tentativas de chacina, triplos homicídios, crianças e adolescentes mortos ou baleados dentro de escola. Ou idosos assassinados dentro de casa, moradores expulsos, pichações ameaçadoras, comunidades em microguerras...

Criminosos picharam os muros de um condomínio do bairro José de Alencar para obrigar moradores a deixarem o local(Foto: Reprodução/Redes Sociais)
Foto: Reprodução/Redes Sociais Criminosos picharam os muros de um condomínio do bairro José de Alencar para obrigar moradores a deixarem o local

É fod@, uma merd@ isso! E piora. A sensação de que a onda vai nos encobrir em algum momento. A água já bate a altura do pescoço.

Quais culpas ou vacilos foram punidos no esquartejamento? O que justificaria uma degola?

O homicídio é investigado pela Polícia Civil, inquérito conduzido pela Delegacia de Maracanaú. O corpo ainda estava numa das gavetas da Perícia Forense (Pefoce) até a publicação desse texto. Ainda não foi sepultado. 

Quem matou? Um ponto que não é apenas detalhe: a pracinha onde o corpo e suas partes foram desovadas é de domínio do Terceiro Comando Puro (TCP).

A facção recém-chegada ao Ceará veio do Rio de Janeiro. É inimiga do Comando Vermelho (CV) e aqui se aliou à organização local Guardiões do Estado (GDE).

Pichações da sigla TCP foram registradas em Fortaleza (Foto: Reprodução/Leitor Via WhatsApp O POVO)
Foto: Reprodução/Leitor Via WhatsApp O POVO Pichações da sigla TCP foram registradas em Fortaleza

Nas suas regras de violência, adota discursos e práticas radicais, com doutrinação religiosa evangélica. Expõe símbolos com a Estrela de Davi e a bandeira de Israel - tanto nas pichações como nos tabletes de maconha e cocaína que negocia.

O TCP não chegou de mansinho. Soltou fogos, fechou e ameaçou povos de terreiros, vem demarcando suas novas áreas, atacando comunidades no Interior. Não tem santo nem piedade. São intolerantes e cruéis.

O que escrevo não é só sobre a vítima ou quem o decapitou e lhe arrancou o coração. Diz mais sobre nós também. A barbárie nossa de cada dia.

"Sem pressa, foi cada um pro seu lado/ Pensando numa mulher ou no time/ Olhei o corpo no chão e fechei/ Minha janela de frente pro crime"

Foto do Cláudio Ribeiro

Histórias e personagens que traduzem Fortaleza. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?