
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Em geral as pessoas gostam de lembrar da infância como uma época iluminada, repleta de alegrias e brincadeiras, quando o jugo era suave, a vida leve, os caminhos floridos e a brisa da vida soprava refrescante, cantarolando certezas de um continuar sorridente e benfazejo.
Abraços afetuosos de avós, bolo saindo do forno, presentes de Natal, viagens encantadoras, passeios marcantes, presença constante e incentivadora dos pais e companhia de irmãos, primos e amigos fiéis.
Tudo fazia parte de um cotidiano tranquilo e morno como o aconchego materno na hora de dormir.
Tudo isso é muito bonito e quem dera todos vivessem essas memórias.
No entanto, outras realidades ocorrem em paralelo a essa idealizada. E não estou falando de infâncias afetadas pela fome, violência, doença e descaso estatal, mas de outras tantas que ocorrem ao nosso lado, no apartamento vizinho do condomínio, com o colega de sala dos nossos filhos, com os amigos do futebol, com as meninas da dança ou do inglês.
São vivências que passam mudas, sem quase ninguém sequer desconfiar, encobertas pela vergonha, por segredos impostos e mágoas sem cicatrizes que sangram gotas de esperança desperdiçadas.
São crianças que sobrevivem dilaceradas por brigas familiares, por situações de drogas na família, por abalos emocionais de mães narcisistas, por pais negligentes e omissos, por inseguranças econômicas divididas com tutores irresponsáveis e por ansiedades silenciosamente cultivadas.
Isso sem falar nas perversidades intencionais, friamente elaboradas e impingidas a crianças indefesas e solitárias.
Boa parte desses meninos e meninas recorre a mecanismos de resistência silente — estratégias mínimas de sobrevivência emocional — e jogam para os porões da memória as tormentas vividas, em uma tentativa de esquecerem os monstros que mostravam as presas afiadas debaixo da cama.
A maioria dessas vítimas prefere não manter contato com ninguém da época e recusam reencontros de companheiros de colégio, na sugestão de evitar gatilhos e deixar o passado com os sussurros de suas próprias assombrações agonizantes. Talvez por tudo isso tenha me tocado uma reunião em que estive recentemente.
Era a comemoração de sessenta anos das colegas de colégio da minha esposa. Todas se conheciam há no mínimo cinquenta anos. Eram do mesmo colégio e da mesma classe, no tempo em que as turmas caminhavam juntas a vida inteira.
Ouvi inúmeras histórias de amizades, companheirismo, ajuda mútua e empatia vivenciadas por décadas. Mesmo com profissões diversas, maridos, filhos e netos, as “Juvenaletes”, nome do grupo do tradicional colégio Juvenal de Carvalho, “no tempo que era só para meninas”, frisam, conservaram elas a mesma união de então, com o carinho sincero compartilhado.
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Enquanto ouvia as histórias daquelas mulheres (elas detestam serem chamadas de senhoras), me perguntei quantas delas teriam vivido, em silêncio, tempestades em meio às tardes de brincadeira. Quantas risadas escondiam feridas, quantos abraços dados entre amigas eram também pedidos calados de socorro.
Talvez ali estivesse o segredo: algumas infâncias machucadas encontram consolo não nos adultos que as cercaram, mas nos laços que, por sorte ou milagre de Nossa Senhora Auxiliadora, foram capazes de se formar entre iguais — entre crianças que, mesmo sem saber, se salvaram umas às outras.
Aquela celebração não era apenas um reencontro, mas talvez um memorial invisível de resistências compartilhadas.
Porque os primeiros anos podem não ter sido perfeitos — raramente são —, mas quando há memória coletiva, afeto sustentado no tempo e vínculos que se recusam a morrer, eles podem ser, ainda assim, um lugar possível de volta. Mesmo que só na lembrança de quem teve, no meio do caos, alguém que segurasse sua mão.
Mas e os que não tiveram isso? Os que cresceram isolados no meio da multidão, os invisíveis, os que não encontraram acolhimento nem nos colegas, nem nos brinquedos, nem nas tardes de domingo, os que aprenderam cedo a calar, a esconder, a desconfiar do toque e da promessa?
Muitos desses hoje são adultos que evitam o espelho da memória, fogem de convites, trocam afeto por silêncio e seguem carregando, sozinhos, os escombros de tempos de criança sem abrigo, abraços ou simples pertencimento.
Talvez por isso encontros como aquele me toquem tanto: não pelo que mostram, mas pelo que sugerem — pela lembrança do que pode ser, e da falta que faz. Porque nem todas as infâncias florescem, mas todas deixam raízes.
E é na escuta, no cuidado e no reconhecimento dessas histórias esquecidas que, quem sabe, a gente ainda consiga, em alguma medida, reparar o passado — mesmo que tardiamente, mesmo que só um pouco. E, quem sabe, um dia as sombras deem lugar ao sol.
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