Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Se tem uma coisa que é difícil para mim é desenvolver aquele tipo de conversa social sem futuro. Não é que ache isso errado, nem nada, mas realmente não sei ser agradável em situações em que os mais simpáticos puxam conversas aleatórias, como o tempo ou qualquer assunto que permita uma conversa civilizada e inconsequente.
Até que me esforço para ser leve na vida e quebrar essa minha cara de pedra, mas puxar conversa com alguém calado me parece meio rude. Afinal de contas, se a pessoa está calada, quem sou eu para interromper seus pensamentos?
Ninguém pode me acusar de não ter tentado. Já o fiz em elevadores, filas de supermercado e até mesmo em velórios, mas os progressos foram ínfimos. No máximo, recebi um sorrisinho leve ou um cumprimento de meio pescoço — daqueles em que a pessoa só mexe um pouquinho a cabeça e volta ao mutismo.
Mesmo assim, tenho teimado em desenvolver esse lado árido e inexplorado da minha personalidade e, em eventos sociais — principalmente aqueles que envolvem frango com molho madeira, mesa de doces e sete desconhecidos em volta de uma toalha branca — eu ligo o modo interação social gentil, sorrio para o garçom e aceito a presença do destino com resignação e alguma ousadia. Só que o destino, meus caros, tem suas tendências irônicas.
Nos últimos tempos, ele me presenteou com uma figura recorrente: o marido de uma amiga. Não vou dizer nomes — vamos chamá-lo de o Interrogador. Ele tem o olhar de quem leu todos os livros que você comprou e deixou empilhados, e a segurança de quem fichou cada exemplar. E ele me tem, sabe-se lá por quê, como uma espécie de oráculo sociológico.
A cada casamento, ele aparece. Brota, materializa-se, invariavelmente sentado ao meu lado. É gente boa, simpático e educado, mas enquanto todos à mesa discutem a quantidade de camarões por porção ou o vestido da madrinha, ele se inclina e pergunta:
— E aí, o que você acha da ascensão do autoritarismo digital nas democracias frágeis do hemisfério sul?
Eu penso em dizer algo mais produtivo, como “Acho que a moça da coxinha esqueceu da gente”, mas ele já emenda outra:
— E o impacto das inteligências artificiais no imaginário coletivo das ordens monásticas?
Eu olho pra banda, esperando que a banda começasse, como de costume, a tocar tão alto que ninguém conseguisse mais conversar. Seria a salvação.
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As primeiras vezes, saí-me como pude. Lancei frases genéricas, tipo “é um fenômeno complexo” ou “isso tem raízes históricas profundas”, que servem tanto para geopolítica quanto para justificar o empate do time. Ele concordava, entusiasmado. Às vezes até anotava.
Mas depois do terceiro casamento, passei a me preparar. Se ele ia aparecer com seu arsenal de perguntas existenciais, eu precisava de munição. Comecei a estudar.
Sim, estudar. Li artigos sobre política externa, vi documentários sobre agroecologia, até podcast de filosofia estóica eu ouvi no caminho para o último evento. Tudo para manter viva a lenda que ele criou a meu respeito.
Cheguei afiado. Quando ele me perguntou sobre a crise energética na Europa, eu respondi com dados. Ele piscou. Quando comentou a militarização dos algoritmos, eu citei Foucault. Ele lagrimejou. Por um momento, achei que ia me oferecer um contrato de consultoria. Mas aí ele olhou no fundo dos meus olhos e provocou, intenso:
— E você, o que pensa sobre a transcendência do ser à luz do renascimento das espiritualidades alternativas na era pós-capitalista?
Nesse momento, o garçom passou com o brigadeiro. Eu escolhi viver. Com a boca cheia, fiz mímicas de que iria ao banheiro e emendei na pista de dança o resto da noite. Preferi pular e suar feito um leitão numa sauna baiana do que desgastar meus neurônios já cansados e pouco sociáveis.
Hoje, quando recebo convite de casamento, não vejo o nome dos noivos. Leio só o nome dele: estará lá?
Se estiver, já separo um documentário do BBC Ideas, uma TED Talk e dois artigos da Piauí.
Afinal, viver é resistir. E resistir, às vezes, é parecer inteligente enquanto você só queria comer um bem-casado em paz.
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