Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Antes, a morte era parte da existência. Não deixou de ser, mas virou uma tragédia cansativa e demorada durante a pandemia
Nunca a morte foi tão cansativa. Isso porque morrer, nos dois últimos anos, deixou de ser um evento normal de parte da existência. Ainda é, mas virou uma tragédia demorada.
E posso estar escrevendo de um lugar confortável. De uma família que, hoje, não está nas zonas onde o Estado é menos e não viu os filhos pretos serem mortos pela polícia nem em guerrilhas da miséria.
Mas não vou entrar em modo de culpa, um pardo (tenho abuso dessa certificação racial de limbo) também sujeito a preconceitos e suspeitas.
O caso aqui é a morte covidária, celerada com todos. Dos donos dos moinhos de trigo no Mucuripe ao coveiro (já exausto) do cemitério popular do Bom Jardim. Sim, ela impacta mais cruel em que tem quase nada na vida segundo a meritocracia babaca.
Mas a cipoada na alma, na tal de saudade (sem poesia) ou no insalubre fundo de cacimba para onde se cai, geme em qualquer um que tenha nervos. Pelo menos em mim. A saída repentina de Gilmar Carvalho ainda é uma queixa.
Antes, é fato, os quase cinco mil homicídios por ano no Ceará já choviam no molhado. Quem se importava, mesmo, com os assassinatos nos "sombrios" da Cidade? Das zonas onde um Centro Dragão do Mar jamais seria erguido?
Morrer uma trinca de "novinhas", esquartejadas, separadas da cabeça e enterradas na lama do mangue do Parque Leblon? E daí?
A ladainha "toda vida importa", usada para seres vivos vulneráveis e marcados pelo tiro certeiro, nem deveria existir.
Sobre a morte como extremo simbólico da vida, no bairro onde fui criança era de vez em quando um sepultamento. Demoravam anos para se amanhecer com a notícia de alguém falecido.
E era um susto porque a falecida (que tinha nome e convivência) não estaria mais ali no outro dia. Fazia falta do bom dia ao boa noite.
Vida que segue! É muito chata a frase. Tal qual "vai dar certo" em meio a uma pandemia tratada por "gripizinha" e já se vão quase 400 mil enterros e cremações.
Foi assim com o Leôncio, rapaz magro que um dia se afoitou na Praia do Futuro e ficou no último mergulho. E com dona Maria, falecida com uma barriga d'água. Passei dias pensando na vida deles.
Não se morria toda hora naquele mundinho e havia despedida. Tia Mariana, na verdade minha bisavó paterna, morreu com um câncer no intestino. Ganhou um velório na sala de visita, um cortejo de carros até o Maranguape e discursos melosos (e alguns falsos) na beira do túmulo.
Do Gilmar não nos despedimos, não vi seu corpo, não tiveram abraços entre os amigos, foi cremado e pronto. Sua mãe adotiva, dona Maria, semanas antes, foi ainda mais melancólico na covid também.
Dona Araci Furtado, mesmo com a idade avançada e outros problemas de saúde que se misturaram à covid, também foi uma falta de despedida estranha. Milhares estão sendo... Mas não vou me adaptar.
É muito chato ter saudade de quem se quer bem e saber que não haverá mais convívio. Nem que levasse um mês, um ano sem vê-la, mas você sabia que poderia bater à porta e ela receberia com o mesmo prazer de sempre...
Um café, um artigo científico, uma fofoca, as sessões com o psicanalista, o jornalismo, o novo livro em escrita, a vida conjugal e a parceria com Francisco Sousa, a falta de grana para novas expedições de Gilmar pelos sertões...
Vida que segue! É muito chata a frase, não me consolem com ele. Tal qual "vai dar certo" em meio a uma pandemia tratada por "gripizinha" e já se vão quase 400 mil enterros e cremações. Tenho vontade de gritar "aí, dento"... Mas vou ficar na minha, preparando um bote.
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