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O rio Pajeú, volta e meia, volta
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

O rio Pajeú, volta e meia, volta

Numa chuva temporã de junho, eis que o Pajeú retoma seu leito na avenida Heráclito Graça. A Cidade e nós da imprensa chamamos de "transtorno". Ali, onde há asfalto e prédios, é um rio. Ele está vivo e ainda resiste
Tipo Crônica
2006demitri (Foto: 2006demitri)
Foto: 2006demitri 2006demitri

Tenho orgulho e inveja do rio Pajeú. Mesmo asfaltado, enterrado vivo e tratado como morto pela Prefeitura de Fortaleza, pelo Estado e pelas pessoas da Cidade, quando chove um pouquinho acima do normal, ele vem chinelando.

Foi assim, mais uma vez, na última sexta-feira. O rio vivo se "des(alfatou)" e tomou a Heráclito Graça, leito que é dele desde quando indígenas e invasores europeus se enfrentaram aqui. E antes também.  

O massacre contra o Pajeú, até hoje, é maior do que a capacidade de resistência dele. Mas ele não desiste.

Tenho dó de quem boia nos carros ali, quando a chuva vem e inunda. Mas também é muito desconhecimento sobre os caminhos d'água em Fortaleza.

Ali tem um rio. E o rio sofre com torturas há mais de 500 anos até hoje.

Derrubaram a mata ciliar dele, soterraram as margens, construíram prédios, extinguiram os bichos e as pessoas que viviam das águas.

Vejam, ele voltou numa chuvinha temporã de junho. E quem, na arrogância urbana, achou que um carro pequeno ou um carrão poderia fazer a travessia ficou na inundação. Uma cena tantas vezes vista na várzea que a Heráclito Graça tem há séculos.

 

Pois que o Pajeú siga inundante, rebelde ao concreto. Não foi ele quem errou na arrogância. E ainda assim, há um jeito de conviver com o rio na Cidade saturada

 

Podem voar mundos, morrer astros, o Pajeú é como um Deus: princípio e fim. Florbela de Alma da Conceição Espanca. Ela fez o poema por amor ao rio da aldeia ibérica daqui. Depois, o arrependido Fagner cantou.

Sonhei com isso, de quinta para sexta, depois de achar que havia fumado um baseado na varanda molhada de chuva e de insônia.

Imagine se tivéssemos o inconformismo do rio Pajeú? Uma hora, não aguentando mais tanto concreto no corpo, tanto enterro (perto dos 500 mil só por Covid), rebentarmos inundando quem tem desprezo pela vida e dá milho à mentira?

O Pajeú, me disse um amigo idiota desse tempo que não deixará uma saudade sequer, é um rio comunista. kkkkkkkkkk... Tive de rir do coitado, das crenças que não param de colocar na cabeça dele e do coração de asfalto entupido nele.

 

Vou terminar com Florbela Espanca para quebrar qualquer lógica narrativa tentada aqui. Só para ter a desculpa de falar também sobre algo amável nesse País difícil

 

Não é possível, mesmo de sã inconstância, alguém continuar no culto ao maldoso. Achar que uma arma nos quartos resolve. Concordar com o desmatamento. Com a invasão e a morte em terras indígenas. Que bandido bom é bandido morto. De se derramar por alguém que desdenha do outro "sem ar" e ainda faz do sofrimento alheio uma piada.

Será possível achar bom perder a soberania energética da Eletrobras? Enxergar normal o gás de cozinha subir 14 vezes? Continuar venerando um cara que lutou contra a vacina? Que fala em Deus e, abençoado por falsos pastores, defende milícias e justiceiros? Não dá para aceitar. Já é hora de o rio subir e transbordar.

Pois que o Pajeú siga inundante, rebelde ao concreto. Não foi ele quem errou na arrogância. E ainda assim, há um jeito de conviver com o rio na Cidade saturada.

Vou terminar com Florbela Espanca para quebrar qualquer lógica narrativa tentada aqui. Só para ter a desculpa de falar também sobre algo amável nesse País difícil, mas ainda possível. Não tem relação com o que escrevi hoje? Ah, tem sim.

Procurei o amor que me mentiu. Pedi à vida mais do que ela dava. Eterna sonhadora e edificava meu castelo de luz que me caiu. Tanto clarão nas trevas refulgiu e tanto beijo a boca me queimava. E era o sol que os longes deslumbravam. Igual a tanto sol que me fugiu... Eu já te falei de tudo, mas tudo isso é pouco...

 

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