Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Li uma miúda declaração de saudade que me comoveu. Na saudade também continha uma declaração amorosa de quem, provavelmente, escolheu um amor para viver durante anos e até a morte.
"Esposo faleceu. Não quer ver o jornal para não lembrar dele". Estava escrito assim na tradução da justificativa de uma leitora que acabara de cancelar a assinatura do O POVO.
Pois bem. Tive até vontade de ligar para ela, mas achei invasivo incomodá-la e poderia soar interesse para que mantivesse a assinatura do periódico. Também por isso, não escrevo os nomes deles.
O jornal tão ligado à imagem do marido era uma recordação forte que, naquele momento de falta que ele fazia, ela teria de sarar primeiro a ausência.
"... ainda não me acostumei com a omissão do fauno e com o desaparecimento de mais de 530 mil pessoas até aqui"
No pouco que colhi, vi que o senhor que se foi (no ano passado) havia convivido com a leitura do jornal por 14 anos. Muito tempo e, com certeza, um hábito de recordação (nada fácil de esquecer). Um ritual, imagino, que os dois se punham à leitura de notícias ou outras predileções.
E aqui me permito à fabulação e remontar as manhãs de leituras ao lado do companheiro. O café cedinho, a dramaturgia dos dois bordando o convívio e o jornal, por esses anos todos, ali feito um gato.
Até pensei, sem forçar a barra e com carinho, achar uma forma de agradecer o tempo que o casal foi assinante e homenagear a memória dele para o afago nela. Um gesto de reconhecimento e atenção.
Fui parar na história deles porque vi que 40 assinaturas do jornal haviam sido canceladas porque pelo menos 40 leitores e leitoras faleceram do ano passado para cá. Achei muito.
Como vivemos a tragédia prolongada da Covid-19, quando se fala em padecimentos já me alerto para a razão da partida. Porque ainda não me acostumei com a omissão do fauno e com o desaparecimento de mais de 530 mil pessoas até aqui.
Boa parte dos 40 leitores teve a infelicidade de ir embora por causa da pandemia. Muitas famílias perderam pais, mães, avós, tios, irmãos... O POVO está preparando um jeito de abraçar quem perdeu afetos. Tanto pela Covid quanto por outros motivos.
Segue a vida, mas não é assim. Há duas sextas-feiras, voltei a ficar espantado. Foi a vez de Carlinhos Perdigão, moço de 52 anos, partir inesperado sem despedidas em decorrência desse thriller interminável da Covid.
Posso até ter amanhecido morto hoje, domingo, 11/7, por causa de mal súbito. É do corpo. Ninguém espera, no entanto, que eu seja tungado (repentino) pela pandemia. Só para dizer que não caibo na perplexidade da retirada do músico afável.
"Centenas de mortos fazem parte de minha vida e os reverencio com alegria de ter convivido. Na Covid, a lista saltou na desproporção"
Ando pensando em meus mortos. Das pessoas que se foram ao longo de meus 54 anos. Da primeira vez que ouvi que alguém de dentro de casa tinha morrido. Lúcia, minha tia da parte de pai, foi novinha. Levada por um câncer.
Uma vizinha, dona Maria, morreu de barriga d'água. Minha bisavó Mariana foi para o Cura D'Ars e voltou para ser levada ao cemitério, no Maranguape. Meu avô Afonso, minha avó Marieta, meu amigo Totó, Tânia Furtado, Landry Pedrosa, minha amada tia Auxiliadora, a Fabíola do Érico, meu querido Gilmar de Carvalho...
Centenas de mortos fazem parte de minha vida e os reverencio com alegria de ter convivido. Na Covid, a lista saltou na desproporção. Não teria problema, seria natural se não houvesse negacionismo e muitos tivessem tido a chance de socorro e vacina na antecipação de quem tinha de cuidar.
Vai o meu afeto para os leitores que se foram e abraços para os parentes que aqui estamos. Agradeço a generosidade da leitura e a parceria.
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