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Beija-flor-de-veste-preta
Foto de Demitri Túlio
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Beija-flor-de-veste-preta

Uma crônica para falar sobre o triz encantador de uma encontro. Porque ninguém aguenta tanta barbaridade uma atrás da outra
Tipo Crônica
Beija-flor-de-veste-preta ou Anthracothorax nigricollis, fêmea. Observação feita no Parque Estadual do Cocó, no enclave do Adahil Barreto, em Fortaleza. Na primavera de 2021, em setembro, na Unidade de Conservação de proteção integral. Foto: Demitri Túlio (Foto: Demitri Túlio)
Foto: Demitri Túlio Beija-flor-de-veste-preta ou Anthracothorax nigricollis, fêmea. Observação feita no Parque Estadual do Cocó, no enclave do Adahil Barreto, em Fortaleza. Na primavera de 2021, em setembro, na Unidade de Conservação de proteção integral. Foto: Demitri Túlio

Há coisas bestas na vida que são boas demais sentir. É aquele triz sublime ou o prazer expandido do descobrir. É quase um gozo, mas pode ser mais. E de criatura para criatura, por alguma constelação do fascinante, cada um se esparrama particularmente diferente. É o corpo retorcido de agrado.

Gosto de cachorros e gatos, mas não tenho uma derramação de carência como já vi gente por aí. E acho bonito não os que querem humanizá-los, prefiro os deferentes que não os vestem de calcinha nem de cueca.

Por mim, os pássaros me voavam sempre. Nunca em gaiolas e eles donos de árvores jamais derrubadas (por qualquer ignorante) e seguindo a certidão de como vieram à Terra.

E já os torturei, quando menino, em prisões minúsculas. Já os enchi de tristezas sem voos porque eram prisioneiros e não passarinhos. E me iludia que amanheciam felizes com água fresca e comida comprada na feira. Nenhum ser vivo nasceu para a ditadura.

Quem é feliz num presídio do Ceará? Nunca. Nem os carcereiros nem os brutos que não enxergam gente, ali, nenhuma. Imagina um passarinho que é parte de uma aurora e ele nunca chega num entardecer desmedido?

 

E já os torturei, quando menino, em prisões minúsculas. Já os enchi de tristezas sem voos porque eram prisioneiros e não passarinhos

 

É do destino dele não conseguir se livrar da tocaia de uma jiboia ou um gavião estraçalha-lo. De traficantes, de alçapões, de criadores autorizados, não. De lojas-cativeiros de vender bichos, também nunca. Não era da escrita das destinações do nascer (livre) desse habitante também do mundo.

Pois bem, na última semana, quando se completaram 17 dias da cirurgia do tímpano, fui testar se ainda ouvia do lado esquerdo o que os passarinhos conversam e não sei traduzir.

Precisava voltar ao Cocó, a floresta que me adotou. Um dia, antes de me internar, fui ao Adahil Barreto. Atrás de um pica-pau-branco que havia feito um ninho em um tronco de coqueiro que havia deixado de ser árvore. Já sem palhas e palitos de arraias. Já sem rios no dossel.

Fui, esperei por ele e o bicho não apareceu. No noutro dia, já no centro cirúrgico com aquele baby-doll ridículo, deitado e arrodeado por gente do bem, só pensava no encontro que não tive com o pica-pau.

Não esqueci o desencontro. Melhor que um almoço chato com um prefeito grosseiro com a existência do Parque das Dunas da Sabiaguaba. Ou com um empresário que só quer saber de construir onde há árvores.

 

Essa besteira foi quase a sensação do Dia das Crianças quando esperava por um presente com seis irmãos. Nem sempre aparecia, mas quando tinha qualquer coisa era um papoco de luz

 

Também calculava os dias durante a cirurgia. Iria perder a chance de fotografar o pica-pau-branco. O pós-cirúrgico não me deixaria e os filhotes já estariam voando. E foi assim.

Mas quando recebi alta parcial, com recomendações de não me meter em maratonas extenuantes, corri de volta ao Adahil. E não houve aparição. Claro.

Porém, teve um indizível ali. Isso na lógica abestada do meu "ser besta". Três jacarandás-roxos e vizinhos (jacarandá é uma palavra cheia de alegria) estavam com os galhos rosados de tantos buquês. As flores não são roxas como sugere o nome da árvore.

Depois de uma hora debaixo deles e só pensando no pica-pau-branco, foi que me entreguei ao pra lá e pra cá de tanto passarinho disputado flor. Dezoito espécies diferentes. E o mais surpreendente foi ter cruzado o olhar, pela primeira vez no Cocó, com um beija-flor-de-veste-preta (Anthracothorax nigricollis) e com uma saíra-de-chapéu-preto (Nemosia pileata). Fêmeas e machos.

É aí, digo. Essa besteira foi quase a sensação do Dia das Crianças quando esperava por um presente com seis irmãos. Nem sempre aparecia, mas quando tinha qualquer coisa era um papoco de luz. Quase igual ao Natal. Espreitava a neve nas goiabeiras do Porangabuçu e nevava numa única madrugada, poucos tinham olhos para ver o frio.

Muitos acham isso uma besteira e o jornal ainda deixar cronistas existirem! Sou um abestado mesmo. E, naquele instante, fui "visitado por delicadezas". Foi um gozo.

 

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Foto do Demitri Túlio

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