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O que faz você feliz?
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

O que faz você feliz?

O vídeo de pessoas disputado o lixo nutritivo do Pão de Açúcar da Bento Albuquerque é um dos retratos da fome em Fortaleza. É deprimente, mas uma oportunidade para o supermercado fazer feliz, também, os que não podem comprar
Tipo Crônica
2410demitri (Foto: 2410demitri)
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O Pão de Açúcar da Bento Albuquerque, no Cocó, ganhou uma chance sublime para fazer os outros felizes. Pra ser feliz, plagiando a fofa da Clarice Falcão e seu doce ukulele, basta desenhar um plano de segurança alimentar destinado aos que catam o lixo nutritivo das mercadorias.

O Pão de Açúcar tem obrigação de fazer isso? Tem não. Mas a tal da empatia com quem, também, precisa ser feliz com a comida é uma fresta com o outro.

É dividir o bolo, mas não como o Delfim Neto prometia na ditadura militar (1964-1985). Ele foi o "Guedes" dos generais ditadores e pregava que a economia tinha de fermentar e crescer para, somente depois, repartir as fatias.

O problema é que o bolo sempre foi comido por alguns poucos e a maioria ficava com o que solava. Ou nem isso.

Talvez a assessoria de imprensa do supermercado me responda que já existe uma iniciativa de segurança alimentar para os que não podem comprar. Ou existiu, caso do Pão de Açúcar da Júlio Ventura.

 

O fato é que o lixo nutritivo do Pão de Açúcar matava a fome de alguém. Mesmo sendo o caminhão das "porcarias", mas satisfazia a barriga de quem não come com a mesma frequência que comemos

 

Incomodado com pedintes cruzando o caminho dos clientes, o mercantil resolveu recorrer aos próprios fregueses para que doassem o valor de uma mercadoria para os sem-nada da calçada. Autorizei algumas vezes. Uma mistura de culpa idiota e não saber o que fazer, mas doei.

Até hoje, não sei qual era o quinhão do Pão de Açúcar na história, além da logística de arrecadação e distribuição. E, também, nunca me informaram (como cliente na hora de ser abordado no caixa) quantas pessoas eram beneficiadas. E ainda há gente pedindo na calçada de lá.

O fato é que o lixo nutritivo do Pão de Açúcar da Bento Albuquerque matava a fome de alguém. Mesmo sendo o caminhão das "porcarias", mas satisfazia a barriga de quem não come com a mesma frequência que comemos em casa ou quando "sexta".

Claro, quem está faminto todo dia troca o pudor pela sobrevivência. Uma pessoa confessar que todo mundo ali precisa muito (do avesso) do supermercado, que são restos de produtos que põem a comida na mesa... É porque está na lona.

 

O melindre era que Fortaleza "não é bem daquele jeito do vídeo", que o desespero de famintos no miolo do Cocó "não é tão assim"

 

E, naquela circunstância, o descarte do supermercado é um almoço, uma janta, uma merenda. É uma sopa de tomate, pepino e batata. Corta a banda podre e aproveita o que dá. "Nem sempre tem carne", mas o que tem é suficiente para sobreviver no agudo da fome.

O episódio do lixo nutritivo do Jumbo da Bento Albuquerque deixou a classe alta de Fortaleza incomodada. E cheguei a pensar, abestadamente, que era compaixão com a condição de humanos-ratos daquelas pessoas.

O choque com gente enfiando mãos e olhos dentro quase dentro da roda trituradora do caminhão do lixo. Disputando tudo que já venceu o consumo, mas o estômago está encostando nas costelas.

Mas não, os que comem ficaram incomodados com as "imagens negativas" que ainda correm pelo Brasil nas redes sociais e pelos jornais.

O melindre era que Fortaleza "não é bem daquele jeito do vídeo", que o desespero de famintos no miolo do Cocó "não é tão assim". E que a culpa era, simplesmente, da falta de uma logística reversa do Pão de Açúcar.

 

Vai uma sugestão: a cada cem reais de compras, o Pão de Açúcar doa um quilo de algo da cesta básica. Divide, sem constrangimentos, com o cliente. Eu aceito

 

Acho que esse povo está para ir morar na Lua ou em Marte, daqui a pouco aparecerá uma matéria sobre o primeiro rico de Fortaleza que foi fazer turismo espacial com o bocó da Havan e ostentador da Amazon.

Pelo amor da alma (saudosa) da elefanta do Jumbo do Center Um! Fortaleza está lotada de gente se derretendo de fome. Nas esquinas, o mais comum é esbarrar em farmácias (a rodo), supermercados (a bambão) e levas de gente pedindo comida ou qualquer coisa.

Comer virou um privilégio, principalmente na pandemia. Ter dinheiro ou cartão de crédito para ir ao supermercado duas vezes na semana é luxo. Nem que seja para comprar um chocolate sem lactose porque estamos "mais ansiosos".

Caro Pão de Açúcar da Bento Albuquerque! Se eu fosse você, iniciaria um projeto de ser feliz com quem não pode comprar comida.

Vai uma sugestão: a cada cem reais de compras, o Pão de Açúcar doa um quilo de algo da cesta básica. Divide, sem constrangimentos, com o cliente. Eu aceito.

E se for difícil fazer, chama o povo da Casa da Sopa e do Movimento Saúde Mental do Bom Jardim. Eles farão em dois tempos, têm estrada. E ainda oferecerão um projeto de qualificação de mão de obra.

Isso não é uma cobrança nem patrulha de cancelamento. É a musiquinha-chiclete de vocês na minha cabeça. "O que faz você feliz? Pra ser feliz, pra ser feliz /...E, às vezes, a felicidade está debaixo do nariz".

 

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