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Medo do avião da Vasp
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Medo do avião da Vasp

Onde você estava no dia do acidente da Vasp, na serra da Aratanha, em junho de 1982? Há alguma memória ou história cruzada com a das 137 vítimas que desapareceram no desastre em Pacatuba?
Tipo Crônica
2702demitri (Foto: 2702demitri)
Foto: 2702demitri 2702demitri

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Manhã de 7 de junho de 1982, em Fortaleza, numa rua sem saída do bairro Couto Fernandes, perto da antiga estação do trem de ferro. Tive uma vontade doida de voar. Deixei o racha de lado, enquanto buscavam a bola embarcada, e de uma castanholeira salto para um mortal no ar.

As pernas sobem na vertical, mas antes de completar o rodopio o corpo perde a força para rodar 360º e desço em queda livre de bico. Primeiro, os braços contra o calçamento coberto por areia para improvisar um campo de futebol.

Depois, o resto do corpo ossudo nas pedras. Uma porrada que parecia tudo se quebrando. Quase faço uma arte, na verdade fiz. No alvoroço, os pivetes correm pra me acudir.

 

"O dia vira e, escondido de mamãe, passo a noite e a madrugada uivando fino com uma dor nos punhos"

 

Levanto-me com dores no corpo todo, mas o sangue ainda está quente do racha. Quando esfriou, restava o inferno nos dois braços e punhos. Peço aos irmãos que fiquem calados, mamãe viria feito uma onça. Mesmo daquele jeito, sobraria uma peia.

O dia vira e, escondido de mamãe, passo a noite e a madrugada uivando fino com uma dor nos punhos. Meus brothers trazem água gelada e derramam em cima na tentativa de sarar o que estava fraturado.

Na mesma madrugada e manhã, a notícia sobre a queda de um avião da Vasp, na serra da Aratanha, em Pacatuba, toma Fortaleza e perplexa o País.

 

"Esbraveja, ralha e só não me açoita porque tinha de me socorrer. Enraivecida, me leva de ônibus para o HGF"

 

Mamãe descobre que estou com os dois braços quebrados porque não consigo segurar uma xícara de café. Ela nota e vem pra cima.

Esbraveja, ralha e só não me açoita porque tinha de me socorrer. Enraivecida, me leva de ônibus para o HGF. Longe pra caramba e a dor de nem conseguir subir as escadas do Praia do Futuro/31 de Março.

No trajeto custoso, escutamos no rádio que Edson Queiroz - dono do gás butano e da Verdes Mares, está entre os passageiros. Descemos no HGF e mamãe não para de me chamar de irresponsável.

 

"Entre as histórias do acidente, a de Fernando Antônio Vieira ainda me atormenta. Ele teria se suicidado e levado 136 pessoas. Era o boato à solta"

 

 

Aos 14 anos de idade, a gente é livre e acha que pode até voar sem asas. Quase me lasco, mas fazia parte de uma inquietação que me acompanha até hoje. Incomoda ainda, mas não como a sofreguidão do desastre da Vasp.

Entre as histórias do acidente, a de Fernando Antônio Vieira ainda me atormenta. Ele teria se suicidado e levado 136 pessoas. Era o boato à solta. O mineiro de 43 anos de idade estaria com problemas conjugais. Assim, assado e não sei mais o que.

Coitado. Como não foi defendido por ninguém, ficou a narrativa do suposto proposital. O Centro de Investigação de Acidentes Aéreos da Aeronáutica registrou que não tinha como aferir isso e concluiu falha humana dele e do co-piloto Carlos Roberto Duarte.

 

Acho que o rapaz não faria isso. Nem levaria à morte (despedaçada) de tanta gente sem nenhuma relação com a vida dele, supostamente, atravessada por turbulências.

O desastre da Aratanha tem 137 histórias multiplicadas por mil. Depois de postar no Instagram sobre o filme "168 - A Tragédia da Aratanha", do O POVO+, recebi mensagens tanto de familiares quanto de personagens paralelos.

Um deles, pessoa confiável, garante que tem um amigo que achou uma das mãos de Edson Queiroz. Nela, a aliança de casamento e o nome de dona Yolanda. Não ocorreu isso.

É o imaginário sobre o horror de um acidente onde morreram 137 pessoas, mas nenhum corpo inteiriço. Apenas fragmentos de ausências campeadas na montanha de Pacatuba.

No OP+ (https://mais.opovo.com.br/webdocs/voo-168), você pode conferir o documentário "Voo 168 - A Tragédia da Aratanha". Longa-metragem dirigido por mim, Cinthia Medeiros e Arthur Gadelha. Histórias sobre a tragédia da Vasp. Ou já pode clicar abaixo e assistir agora.

 

 

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