Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Uma mãe quebra o silêncio sobre o estupro do filho e transforma a dor em amor para conseguir refazer a rede de proteção e não deixar impune o estuprador
"Porque o mundo precisa de amor, de possibilidade de vida, de alguma esperança". Recebi a mensagem como sugestão de motivo para a rebentação de uma crônica. Uma moça leitora me enviou pelo Instagram, via direct.
Pediu que eu não tivesse vergonha de escrever textos sobre o amor. Por mais que pareçam bestas diante, por exemplo, de um empresário que manda confeccionar uma faca com o retrato da ruindade e ainda faz apologia à violência. Um coitado.
Pois bem, por causa de outra mensagem, desviei um pouco da rota e acabei escrevendo sobre o amor de uma mãe pelo filho estuprado duas vezes. Sim, fiquei chocado com a postagem de Ana Paula Ponce no Instagram. Ela é fotógrafa, estudante de psicologia, 39 anos.
Quase sempre, em família, o estuprador acaba "vencendo" por causa do silenciamento da vítima e dos acochambres do "deixa pra lá"
Chocado pela dor da mãe, pela violência contra a infância aos 11 anos e pela coragem dela em romper com a imposição de um silêncio que não voga mais. Ela quebrou o pacto da hipocrisia da família caiada de cal.
Quase sempre, em família, o estuprador (vou chamá-lo de "M de macho" por causa do segredo de Justiça) acaba "vencendo" por causa do silenciamento da vítima e dos acochambres do "deixa pra lá", do "vamos evitar o escândalo". E do machismo do judiciário que deixa o tempo se alongar e vai ferindo mais ainda a vítima.
O silêncio, me disse Ana Ponce, só favorece o abusador. E ainda permite, escrotamente, que outras meninas e meninos sejam estuprados nos subterrâneos da vida privada e da porta de casa para fora. E isso fica nas entranhas e no corpo de quem foi invadido violentamente.
Meu filho foi estuprado. Não, infelizmente, você não leu errado. Meu filho, atualmente com 11 anos, uma criança de sorriso iluminado e coração sensível, foi vítima de um crime hediondo" praticado pelo tio
"Meu filho foi estuprado. Não, infelizmente, você não leu errado. Meu filho, atualmente com 11 anos, uma criança de sorriso iluminado e coração sensível, foi vítima de um crime hediondo" praticado pelo tio. Está no @anaponcemalzac.
Perguntei a Ana Ponce se ela tinha consciência da exposição da criança nas redes sociais, na rua, na escola, em família e no viver imprevisível de um trauma assim.
Sim, ela me disse que sim. Tomou a decisão de tornar público e discutir abertamente o que pode servir para evitar outros estupros em família ou na rua.
A criança abusada acha que a culpa é dela pelo acontecido. Primeiro porque confia em quem era para lhe proteger, depois porque é posta em uma situação que ela sabe a razão de ser
Os abusadores acabam sendo blindados pelo "medo de se falar sobre o crime". O tio que estuprou o filho de Ana já havia respondido um inquérito por abuso. Em 2014, com a desculpa de pegar um livro, ele manipulou o pênis de um adolescente de 15 anos no elevador do prédio onde morava.
Nem o inquérito o impediu de atuar novamente. No dia 7 de setembro de 2020, durante o auge da pandemia, voltou a atacar. Aproveitando-se de uma confraternização em família, foi ao quarto onde a criança repousava por causa de uma dor de cabeça e o molestou.
A criança abusada acha que a culpa é dela pelo acontecido. Primeiro porque confia em quem era para lhe proteger, depois porque é posta em uma situação que ela nem sabe a razão de ser.
Dessa vez numa piscina e ninguém deu conta. Claro, ninguém espera que um tio, um avô, um sobrinho, um irmão sejam estupradores. Ou sabe e se cala
O menino estava com parentes paternos já que os pais são separados e dividem a guarda. De volta à casa da mãe, introspectivo, envergonhado, o garoto apresentou uma febre que médico nenhum encontrou a causa. Era o avassalamento.
Um ano depois, exatamente num 7 de Setembro em que o País era mais violentado por discursos de ódio de Bolsonaro e seus mortos-vivos, o estuprador tornaria a agir contra o filho de Ana.
Dessa vez numa piscina e ninguém deu conta. Claro, ninguém espera que um tio, um avô, um sobrinho, um irmão sejam estupradores. Ou sabe e se cala.
Falta ele ser preso. A Polícia Civil indiciou o estuprador e o Ministério Público pediu a prisão preventiva. Não poderia ser diferente. Por três vezes ele agiu e se sentiu livre para invadir dois meninos
Em casa com a mãe, a criança teve febre, vomitou e botou pra fora a brutalidade sexual que o devastou na inocência.
"Há seis meses, desde quando ele me contou entre soluços, que o tio "M de macho" o violentou por diversas vezes, nossas vidas se transformaram no pior pesadelo".
Falta ele ser preso. A Polícia Civil indiciou o estuprador e o Ministério Público pediu a prisão preventiva. Não poderia ser diferente. Por três vezes ele agiu e se sentiu livre para invadir dois meninos. A justiça não mandou prendê-lo, determinou uma medida protetiva por formalidades cumpridas.
Não foi um rompante. Passei seis meses calada, sei das possíveis consequências para ele e para mim, mas o estuprador não pode ficar por aí. Captando mais e mais crianças
E o que não se sabe sobre outros prováveis abusos e que permanecem no silêncio do medo? Mais meninos e meninas que irão crescer no dano.
Ana Ponce resolveu ir contra a regra de que não se deve falar sobre a dor dilacerante do estupro de filho.
"Não foi um rompante. Passei seis meses calada, sei das possíveis consequências para ele e para mim, mas o estuprador não pode ficar por aí. Captando mais e mais crianças". Desmanchando infâncias.
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