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Sem a pequena morte à noite
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Sem a pequena morte à noite

As insônias não não eram para existir. Tenho inveja das galinhas livres que atravessavam a noite numa tacada só, tinham de se preocupar somente com os cassacos que aproveitavam da dormência alheia
Tipo Crônica
Ilustração Demitri DOM 1007 (Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos Ilustração Demitri DOM 1007

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Há quatro ou mais dias uma insônia chata insiste em me visitar quando o melhor sono da noite escapa. E é ruim. Olhos arregalados, sem assunto com o silêncio e um redemoinho de pensamentos liquidificando.

Tenho vontade de escrever, mas acho uma sacanagem com o resto do corpo. Levantá-lo à força, forçá-lo a catar palavras e encontrar caminhos para campear um texto. A noite foi feita também para dormir, para nos aquietarmos do sol.

Pelo celular, com a cara na luz da tela da besta fera, me animo com a frase nos stories da psicóloga Sarah Monteiro. "Amo como a linguagem formata e modela o mundo. Nada é o que é. Tudo é pra quem for". E há vários desenhos para testar a memória de esquecidos.

 

Ela esqueceu o verbete, mas ri satisfeita quando encontra em alguma gaveta da cognição o achado 'fruteira'. Basta, ressignificou

 

O desenho de uma "árvore", muitas vezes, não traz a palavra "árvore" para a memória em estado de derretimento. Ela esqueceu o verbete, mas ri satisfeita quando encontra em alguma gaveta da cognição o achado 'fruteira'. Basta, ressignificou.

Poderia ser "derradeira" a palavra para definir a figura da "árvore" de copa expandida. Isso sou eu na insônia, projetando daqui a alguns anos e esquecido.

Tentando buscar a palavra e querendo falar de uma floresta que já existiu e só resta aquele último testemunho de pé de pau.

 

Sem o sono dormido da noite anterior, irei me estranhar com alguém. Não levarei para casa desaforo no trânsito de motoqueiros de aplicativos cometendo barbaridades por centavos

 

É uma tentativa de trazer de volta o sono. Não há como se divorciar dele, nunca. É parte do corpo, pra no outro dia poder dançar ou reassumir as mil performances que repetimos. Sem a justa dormida seremos nada quando amanhecer.

Sem o sono dormido da noite anterior, irei me estranhar com alguém. Não levarei para casa desaforo no trânsito de motoqueiros de aplicativos cometendo barbaridades por centavos. Melhor aquietar-se. 

Esses caras vivem pilhados, correndo enlouquecidamente na contramão, atravessando preferenciais, avançando sinais vermelhos. Viraram os novos escravos da tecnologia que prometeu libertar o homem e fazê-lo a rainha de Sabá do ócio. Tudo lorota.

 

Começo a me irritar pensando nisso e aí é que o sono se distancia. Jogo o celular de lado, é um vício enlouquecedor. É outro ladrão de dormidas dos outros

 

Para os donos do ifood e de outros aplicativos do fim do mundo, sim. Eles vivem como os novos barões do engenho e com milhões de escravos sem fronteiras. E nós ainda os ajudamos demandando muito e reclamando quando a pizza não chega em até dez minutos.

Começo a me irritar pensando nisso e aí é que o sono se distancia. Jogo o celular de lado, é um vício enlouquecedor. É outro ladrão de dormidas dos outros. Você não para de olhar besteiras e coisas interessantes.

Não dormir é meio um rio que, repentino, desaparecem todos os peixes. Ele terá um corpo estranho, trêmulo, nervoso, à beira de cometer uma indelicadeza com o barco. O psicólogo me perguntou qual era a causa de tanta insônia, disse que não sabia.

 

As galinhas ficam cegas durante a noite e meio dormentes, uma pequena morte noturna 

 

Até sei, mas não quis colocar na berlinda nem aceitei tomar remedinho para dormir. Felizes eram as galinhas, pensei comigo. Trepavam cedinho nos galhos das goiabeiras e atravessavam a noite numa tirada só.

Fosse elas, teria medo somente de ser atacadas por cassacos. As galinhas ficam cegas durante a noite e meio dormentes, uma pequena morte. Teria medo também das raposas, mas elas não sobem em árvores.

Bem, nem todas as galinhas eram atacadas. A maioria escapava por anos dos cassacos e, coitadas, iam morrer nas panelas lá de casa. Mas não amargaram insônias seguidas.

 

Penso, enquanto armo uma arapuca para o sono. Preciso dormir, sonhar, acordar somente pra fazer xixi e voltar a dormir...

 

No momento em que estive escrevendo a coluna, pesquei algumas piabas com os olhos. O sono voltou! Animo-me. Penso no final da crônica, sonho com alguns minutos de sono na cama esparramada e bem perto de mim. Mas tenho dezenas de tarefas.

Se eu dormisse pelo menos duas horas?! Entregasse o corpo ao sono que não me visita há tempos nem me usa?

É julho, domingo. Tem um vento frio londrino (kkk), cedinho da manhã, no alto dos prédios de Fortaleza. Se eu voasse!!! Penso, enquanto armo uma arapuca para o sono. Preciso dormir, sonhar, acordar somente pra fazer xixi e voltar a dormir...

 

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