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Pra gente ser ridículo
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Pra gente ser ridículo

Um menino vai a uma oficina de palhaço e incomoda por causa do corpo ainda desconstruído, sem adulterações do tempo nem o lamaçal de ordenações
Tipo Crônica
0207demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 0207demitri

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Peguei-me olhando para o corpo dançante de uma criança com autismo. Foi durante uma oficina de palhaçaria no Theatro José de Alencar.

Eu estava de aluno também e ele, 46 anos mais novo, sem nenhum arrelho para domar os movimentos.

A cabeça ia para trás com os cabelos, os braços e as pernas longas pareciam se separar e voltar para o tronco infantil solto.

Lembrei-me daquele bonequinho da infância, comprado na feira ou na quermesse, sacudindo-se quando apertávamos as duas hastes de madeira e ele a trapeziar.

 

O menino da oficina de palhaços parecia que ia cair, rolava, corria, dava cambalhota e se punha em pé na ponta dos dedos 

 

Brincar com o bonequinho dava vontade de correr, subir na goiabeira alta, se pendurar, andar de galho em galho, correr risco de ir ao chão e conseguir se safar rindo, quase lascado.

O menino da oficina de palhaços parecia que ia cair, rolava, corria, dava cambalhota e se punha em pé na ponta dos dedos. Ora se desequilibrava, mas encontrava outra extensão do movimento que o expandia em cima ou no solo. Numa isenção fascinante.

Foi inevitável comparar a folia do corpo dele com o meu rebolado estagnado e o dos outros adultos. Enquanto a criança fluía, ensaiávamos coisinhas cartilhadas e imitações.

 

Só havia ele de menino ou de menina. O resto, todos ali, eram pessoas adulteradas. Cheias de tempos

 

Mesmo o palhaço oficineiro não voava tanto quanto o corpo do menino, que vi a hora subir pelas paredes a lagartixiar, tamanha falta de amarras para o deslocamento no nada.

Só havia ele de menino ou de menina. O resto, todos ali, eram pessoas adulteradas. Cheias de tempos. E não é questão de idade, é um corpo atingido e que foi se desacostumando do se mover em redemoinhos, folhas, chuvas e ridículos.

Adulto é assim, represado por barragens. Anda e fala feito um médico, soberbo no domínio do corpo doente dos outros.

Uma promotora ou juiz de Direito, quase sempre de preto clássico, ombros duros, bunda que não mexe, cintura dura, palavrórios enrijecidos...

 

Bulir-se diferente, quase livre, vi que o erê tapuia incomodou. Claro, todas as moças e homens feitos e um menino

 

Corpo adulterado porque cresceu. Controlado até na hora de se esparramar para penetrar ou ser completado. Quase toda gente assim e a escrita particular de uma repressão dos gestos.

Bulir-se diferente, quase livre, vi que o erê tapuia incomodou. Claro, todas as moças e homens feitos e um menino na contramão da propositura adulta.

Mas o movimento não normatizado, mesmo para os menos atarracados e aprendizes de palhaços, soou atabalhoado. E não haveria problema nisso, mas o aturdido quebrou a regra do mexer-se.

O corpo pode ser palhaço, mas nem tanto. Talvez seja uma regramento para não dar vexame.

Haverá quase sempre um lamaçal de ordenações, mesmo no clown, "lógico". Aquele corpo-menino me incomodou porque era livre demais...

 

Marmota por aqui é quando não temos o desprendimento do corpo ridículo e mangamos a liberdade

 

A cabeça só faltava cair do pescoço. Os braços e as pernas experimentaram, vi isso, movimento parecido com os do teiú, com os das garças. Ele nem dava conta que é desconstruído.

Marmota por aqui é quando não temos o desprendimento do corpo ridículo e mangamos a liberdade do outro.

No final, o menino não gostou da oficina de palhaçaria. Adulta demais, empapada de representações. Achou que ser ridículo não teria problema nem envergonharia o derredor. Ainda mais um clown.

Ser vivo ridículo desde a rebentação.

 

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