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A diaba rabuda
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

A diaba rabuda

Quase todo mundo faz de conta que o tataravô dificilmente não foi um estuprador de indígenas, de negras e um pilhador de terras.
Tipo Crônica
Demitri 3007 (Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos Demitri 3007

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É uma besteira brancos bodejarem sobre a "árvore genealógica" que os pariu. Depois, fui entender por que há tanto abuso em mim sobre os vãos de onde fomos forjados.

Claro, pobre e classe média peba nunca tiveram tempo de fiar incunábulos. Não havia dinheiro e fotografia não enchia barriga. No máximo, fazíamos fotos 3x4 para documentos.

Álbuns de família existiam, claro. Ocasiões especialíssimas, situações coletivas e a passagem de um retratista pelo colégio ou na rua de casa. O cenário com o cavalinho de caubói, o telefone entre irmãos, o globo terrestre, a caneta e a bandeira do Brasil.

 

Um trecho da vida para trás era contada de um ponto de vista quase único. E ainda sombreado pela mentalidade de quem vigorava

 

Documentação? No máximo a certidão de nascimento, a de casamento, a carteira de trabalho, a identidade e o atestado de óbito de defuntos não tão avoengos.

Um trecho da vida para trás era contada de um ponto de vista quase único. E ainda sombreado pela mentalidade de quem vigorava na escola, na igreja, nas bodegas, no colégio, nas novelas, nos filmes e no cemitério.

Nunca houve arquivo nem uma genealogia cotidiana. E a despensa afetiva tem ocultações, trechos truncados e desaparecimentos no tempo escorrido.

Quase todo mundo que fala em juntar os cacos da origem, geralmente, persegue a perspectiva do português branco "descobridor". E faz de conta que o tataravô dificilmente não foi um estuprador de indígenas, de negras e um pilhador de terras.

 

O brasileiro branco, a maioria, tem na árvore genealógica a violência sexual dos avoengas estupradores que nos invadiram

 

Há o tronco, também, de outros europeus escrotos. De naipe não menos bárbaro que o lusitano. Deram, por exemplo, nos morenos "exóticos", de olhos verdes, de Icapuí. Os holandeses, os franceses, os ingleses, os espanhóis...

O brasileiro branco, a maioria, tem na árvore genealógica a violência sexual dos avoengas estupradores que nos invadiram. Mas ninguém é capaz de contar isso num chá revelação na sala de estar de um Doutor Honoris Causa, na Aldeota.

Quem teve a história apagada e mal contada fez-se, às avessas, à imagem semelhança do abusador ancestral. Dificilmente isso é um exagero. É meio que nascer depois de um estupro porque a mãe não teve o direito de escolher.

 

Nunca ouvi na escola nem na igreja alguém dizer que descendia dos pretos da baixa da égua de alguma África

 

Minha família, como boa parte do povo do Semiárido, é acaboclada, tem gente branca, há povo preto e misturados. E ainda se ilude que o mais bonito e civilizado é o que veio alvo do mundo de lá.

Nunca ouvi na escola nem na igreja alguém dizer que descendia dos pretos da baixa da égua de alguma África. Nem que indígenas de uma nação tal deram na gente do Maranguape.

Contrário, vovô, para espezinhar a sogra dele - minha bisavó Mariana Tavares -

xingava-a de "índia ignorante da Guabiraba". O pai dela era português e a mãe, uma cabocla.

Meu avô Afonso era branco dos olhos verdes, povo do Lago Seco, no Camocim. Gente que se casou com primos legítimos. Ele era filho de minha bisavó Ritinha (racista até o talo), que se casou com o bisavô Florêncio.

 

E não há enredo, mesmo troncho, da parte com o afro nem com os povos originários

 

Provavelmente, ramas de criptojudeus, cristãos à força que chegaram à região do Ceará e os filhos quase todos morreram com glaucoma e o câncer de pele caindo aos pedaços.

Sei, ainda assim com interrogações seculares, da versão "caucasiana" lá de casa. Aliás, não sei. É confuso e faltam capítulos e personagens. E não há enredo, mesmo troncho, da parte com o afro nem com os povos originários.

Um padre branco, de uma família da Aldeota, resolveu investigar seus esquecidos mais longínquos. Porque uma tia-avó portuguesa tinha "do Porto" no sobrenome. Então, imaginou "sangue azul", berço, nobreza na cidade do Porto e outras frescuradas.

 

Diferente do padre, quando descobri que Marília descia do Maranguape para o Farol do Mucuripe, tive imaginações em jorro

 

Fuçou até não querer mais e quando descobriu, deixou permanecerem ocultados os defuntos do passado. "do Porto", na verdade, era um advérbio que colou no nome dela porque fez história como quenga dos marítimos de um ancoradouro na costa portuguesa. A "diaba rabuda". O padre fez questão de sepultar.

Diferente do padre, quando descobri que Marília descia do Maranguape para o Farol do Mucuripe, tive imaginações em jorro. Fui conhecê-la já velha, bonita ainda, sedém avantajado, seios miúdos e brechei pelos no derredor dos mamilos.

Ela era afilhada de minha bisavó Mariana e foi puta no Farol. Na "árvore genealógica" lá de casa há raparigas também.

 

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