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Medo de filho
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Medo de filho

Comecei o texto para desejar que mamãe tivesse se encontrado na vida dela com Zé Celso Martinez, ele se despediu na última quinta-feira
Tipo Crônica
0907demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 0907demitri

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Tenho a impressão de que mamãe não gosta mais da vida que tem. Depois que foi salteada por um derretimento das memórias, largou de mão as histórias e descaminha para algo que os seis filhos não sabem.

Mas isso é um pensamento cartesiano, finito, de olhar com senso comum os deslocamentos de um ser vivo pela jornada previsível da heroína. Um receituário de Campbell para os enredos de viradas epopeicas.

O problema, talvez, adoro um talvez, é que somos muito folhetinescos e acabamos querendo enquadrar até a vida "real", quase toda ela, numa narrativa aristotélica. Dramalhões e superações.

 

Imagine uma mulher que pariu duas meninas e quatro meninos e foi obrigada a mantê-los vivos e protegidos

 

É assim, mamãe a "mulher onça"... Que pariu seis crias... Que foi "esposa exemplar" de um machista que a "deixou" vendo navios... Que "deu a volta por cima"... Mas que não pode, no último quadrante da existência, exercer o direito de desistir do que encheu o saco na vidinha que herdou...

Imagine uma mulher que pariu duas meninas e quatro meninos e foi obrigada a mantê-los vivos e protegidos porque não teve a opção de ir embora feito o "macho alfa da casa"?

Os homens vão mais embora do que as mulheres e não costumam carregar os erês no samburá, deixam pra ela a peanha de ser mãe.

Mamãe ainda tem memória, mas ela é volátil no presente imediato. Daí, quando se viu sendo retirada das lembranças aos 70 e poucos anos, decidiu deixar de envelhecer no modo forçado dos "corres" au jour le jour.

 

Vestiu-se de camisolas, calcinhas confortáveis, sutiãs desabotoados na fartura, ligou o televisor e foi permitindo a memória se ir

 

Um dia, disse que não trabalharia mais – era vendedora de coisas. Todas as coisas para sobreviver. Decretou que não tinha mais interesse em sair de casa, pegar ônibus, cortar a Cidade e negociar para escapar.

Vestiu-se de camisolas frescas, calcinhas confortáveis, sutiãs desabotoados na fartura, ligou o televisor e foi permitindo a memória se ir. Sem dramas, assistindo missas e padres bodejantes. E assim vai indo.

Dramas fizemos nós, os seis filhos. Claro, mesmo homens e mulheres, quase todos acima dos 50. Era a primeira vez que a enxergávamos em despedidas.

 

Sinto uma apertura no corpo como se fosse minha mãe – dona Edmar. Sinto um medo de filho em perder a mãe

 

Enquanto estou escrevendo a crônica, ainda às 21h06min da sexta-feira, recebo um bilhete de Fá Sudário sobre a travessia de dona Vera – mãe da Joelma e do Jocélio Leal. Duas amizades e companheiros de Redação, no O POVO. Mãe do Jozivan também.

Sinto uma apertura no corpo como se fosse minha mãe – dona Edmar. Sinto um medo de filho em perder a mãe, mesmo já tendo vivido 56 anos na existência dela de 81 aniversários.

É bobagem dizer que estamos preparados para perder a moça que nos fez nascer, ainda que uma peinha de vida lhe reste e seja melhor livrá-la de qualquer dor. É um silêncio danado, ela sorrindo e chorando na saudade.

 

Zé Celso Martinez - um ser vivo que não envelheceu, mesmo aos 86 anos

 

Tive o texto atravessado por dona Vera, os pensamentos batendo em sustos de uma revoada de avoantes. Estava me perdendo nos labirintos da crônica, atrás de findar.

Comecei o texto para desejar que mamãe tivesse se encontrado na vida com Zé Celso Martinez, ele se despediu na última quinta-feira. Um ser vivo que não envelheceu, mesmo aos 86 anos.

Não ficou antigo, apesar de ter nascido quando o ditador Getúlio Vargas tocava terror, existiu durante a ditadura militar de 1964-1985 e foi fazer manifestos pela vida, pela Terra e por homens e mulheres sem nunca ser ultrapassado. Jamais deixou-se idoso. O corpo quis, mas ele teimou. Até quando encarnou a volta do Conselheiro a Quixeramobim. Era vigor político pelas ruas.

 

Eu quis ser um ator dele – do Antunes e do Ricardo Guilherme. Um Antônio Conselheiro, cheio de Sertões

 

Não viveu melhor que mamãe nem a de dona Vera, mas transgrediu sem nenhum pudor "obcênico" as jornadas santíssimas. Excomungou e partilhou.

Eu quis ser um ator dele – do Antunes e do Ricardo Guilherme. Um Antônio Conselheiro, cheio de Sertões e muito além da nudez e da possibilidade de curras em cena.

Ele foi além da sexualidade incômoda nos outros, tinha a ver com o teatro ruminado o conservadorismo social a caretice política de uma sociedade autoritária desde as invasões europeias e estupros por cá.

 

Mamãe teria um papel. Ainda noviça, em Recife, as freiras alemãs a mandaram de volta para Aratuba porque ela ria

 

Era só um encontro que desejei de mamãe com o Zé Celso, lá nos começos da vida de moça ou numa peça que sonhei em montar com o Oficina. Em Barbalha, conservadora e monarquista, e pais e filhos se repetindo no machismo da derrubada do pau dos jatobás.

Mamãe teria um papel. Ainda noviça, em Recife, as freiras alemãs a mandaram de volta para Aratuba porque ela ria em desembesto quando via o mangue e procissões de caranguejos. Era o encanto e medo da orgia do riso.

Talvez por agora, o fim da crônica incompleta...

Abraço fraternalmente Joelma, Jocélio e Jozivan. E dona Vera e Zé Celso, que se encontrem onde o infinito é existência.

 

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