Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
De repente, pessoas próximas desembestaram a morrer. Uma sensação de que a fila se apressou e um falecido foi puxando outro e embarcaram na mesma balsa para o indizível.
Na última semana foram embora Fernando Barroso, Cássio Borges e Déborah Lima. Também um irmão da amiga Regina Ribeiro, que havia perdido a tia branca há pouco.
Uns dias antes, tinham sumido Zé Celso Martinez Corrêa, dona Vera Catarina e Cleto Pontes. Teve ainda a jornalista Camila Holanda. Não conhecia Camila. E não é a Camila Holanda, ex-O POVO. Ela está morando no mar.
Talvez sejamos, mesmo, passageiros agendados e quando chega a vez não adianta insistir na reza besta
Teve, não poderia esquecer, o Milan Kundera. Estive com ele em 1981, quando foi exilado e a França o recebeu em Paris. A ignorância dos checos o impedia de existir entre os checos. Morreu e amargamos mais uma saudade.
Parece que o aeroporto do outro lado do misterioso abriu a temporada de retiradas e foi subindo. Talvez sejamos, mesmo, passageiros agendados e quando chega a vez não adianta insistir na reza besta.
A saudade é uma criação da memória, mas a convivência nos faz rachar as bandas. Os retratos achados, as gavetas, a vontade de um último abraço, os vãos da casa, as roupas cheirando à mãe.
Klara também faleceu e entrou na crônica porque fez retornar algumas saudades dos meus começos de rapaz
Quando estive com Kundera em algum arroundsemant daqueles, lembro de Klara. Uma mulher mais madura do que eu uns 15 anos. Atraente, longilínea, morena de pouco sol, agradabilíssima nas conversas e boa de boca. Não havia cerimônia.
Klara também faleceu e entrou na crônica porque fez retornar algumas saudades dos meus começos de rapaz e dos mortos queridos ou próximos, que se foram há pouco. Soube da travessia dela quando já havia sido sepultada.
Moça de corpo antigo, bonito, cheio de danças ao som do bandoneón francês e das rabecas do Semiárido onde fui parido. Corpo cheirando a feijão verde no coco fresco e uma dilatada exibição sedutora.
Vi que tinha um prazer derramado quando a moça usava vestidinhos estampados e, por debaixo, uma calcinha mínima
Acabei envolvido com a liberdade de grunhidos e com o corpo desamarrado dela. Não se refreava nas convenções e havia um violoncelo nela.
Nos envolvemos às escondidas de Kundera. Não foi o senhor Zaturecky, de "Risíveis amores", o amante.
Vi que tinha um prazer derramado quando a moça usava vestidos curtos, estampados e, por debaixo, uma calcinha mínima quase toda renque na garupa farta. E tinha mais tesão ainda quando os idiotas se entortavam para esquadrinhá-la e ela nem aí com o vento.
Tão avoante a minha falecida na memória! Klara não era para ter fenecido nunca
Soube de Klara, depois que voltei para o Semiárido, num idílio complicado. Outro artista, agora um pintor. Obrigava-a ir às exposições sem calcinhas.
E até tive um ciúme da fantasia alheia, mas Klara ia constrangida e constranger-se não era um traço da moça com quem aprendi a oferecer o corpo todo.
Tão avoante a minha falecida na memória! Klara não era para ter fenecido nunca, quando amamos queremos mais tempo e razões para o deixar de existir.
De repente, pessoas próximas desembestaram a morrer... Rebeca trouxe o fim.
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