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Amores desaparecidos
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Amores desaparecidos

Leitor, cheio de saudades, liga para o jornal e quer ter com o cronista que, em figura de raposa, entra na casa dos outros para fabular. Quase tudo é invenção
Tipo Crônica
demitri0608 (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos demitri0608

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Tânia Alves e Ana Rute Ramires, jornalistas e companheiras de Redação, me atalham para um recado. Um leitor do O POVO, de 81 anos de idade, está há tempos tentando ter comigo.

Seu Sílvio Fernandes acabara de conversar com Ana Rute e disse a ela que precisava falar sobre uma crônica que escrevi. Carecia comentar alguns trechos do texto.

Ana e Tânia me avisam que o senhor Sílvio não usava telefone celular e pedem para que eu vá à Redação do impresso, ele avisou que aguardava na linha. Preferia esperar pelo periodista "difícil" e desentalar algumas conversas.

 

Na simplicidade, ele me diz algo genial. Aos 81 anos se tornou um "leitor profissional"

 

No aperreio do jornal, peço o número do telefone fixo e garanto à Tânia Alves que ligarei na sequência para o assinante do O POVO. Prometo que o corre corre não me fará esquecer. Recebo um papelzinho escrito com o nome dele e os numerais. E Ana Rute me envia um lembrete pelo zap.

Para não esquecer entre uma e outra demanda, anoto o telefone na palma da mão. E, em seguida, decido ligar logo. Disco o número, teclo, digito. Uma voz masculina me pede um momento, depois que dou boa tarde e digo quem fala.

Ele retorna e reinicia. Demitri, não irei tomar muito seu tempo, você é jornalista. O tempo deve encurralá-lo. Respondo que não se preocupe, fique à vontade. Na simplicidade, ele me diz algo genial. Aos 81 anos se tornou um "leitor profissional", desde os 14 anos lê O POVO.

 

Diz-me também que é leitor do que escrevo em crônica no jornal, quando em figura de raposa entro na casa dos outros

 

Leio tudo, me diz e se apraz. Agora, mesmo, estou lendo Contardo Calligaris - "O sentido da vida". Livro póstumo. Digo que gostava quando Contardo escrevia no O POVO. Um amigo, o jornalista Émerson Maranhão, compartilhava grifos inquietantes sobre os escritos do psicanalista e dramaturgo, morto em 2021.

Diz-me também que é leitor do que escrevo em crônica no jornal, quando em figura de raposa entro na casa dos outros fuçando coisas. Traficando palavras, oferecendo besteiras e despretensões.

Traz-me, me avisa e vejo pela imaginação sem telas, a crônica que queria demarcar algo.

Antes, ele me conta e muda o tom de voz para um doído carpir, sobre a esposa Nelita Carvalho Fernandes.

 

E você, acredite Demitri, leu palavras minhas, minhas frases, escreveu quase que literal minhas incomodações com a falta que ela me faz

 

Foi um amor de 56 anos, me confidencia sem pedir off. Não o vejo chorar, mas aparenta banzo. Demitri, ela morreu ano passado aos 79 anos, depois de coisas do coração enfraquecido. Eu esperava morrer primeiro. Quem vai primeiro, se ama muito, sofrerá menos.

E você, acredite Demitri, leu palavras minhas, minhas frases, escreveu quase que literal minhas incomodações com a falta que ela me faz. Foi na crônica "Rebeca trouxe a peste". Penúltima.

Você começa assim, lê do outro lado da ligação: "De repente, pessoas próximas desembestaram a morrer. Uma sensação de que a fila se apressou e um falecido foi puxando outro e embarcaram na mesma balsa para o indizível".

 

E aí, a crônica matou-me de vez quando escreveu sobre "a vontade de um último abraço". Matou-me

 

E você continua e vai abrindo meu corpo e arrepios. "A saudade é uma criação da memória, mas a convivência nos faz rachar as bandas".

"Os retratos achados, as gavetas...", puxa vida! Passei a procurá-la nas gavetas de uma vida. "Os vãos da casa...", ando tateando qualquer presença de Nelita. "As roupas dela...". Você parece que estava aqui.

E aí, a crônica matou-me de vez quando escreveu sobre "a vontade de um último abraço". Matou-me, rasgou de novo a saudade. Há semanas, penso sobre abraçá-la pela última vez. Nem que fosse ligeiro...

Fiz cem trovas para ela, ele me diz e pede para ler uma. "Aquele meu abraço, que eu queria lhe dar, ficou solto no espaço. Nunca mais vou realizar".

 

Minha vida meio que está apenas indo, perdeu muitos sentidos. Então, leio para o tempo não me encurralar tanto

 

Era só isso, Demitri. Desculpe. Precisava dizer sobre esse texto, a vida, a morte e as lembranças dela. Minha vida meio que está apenas indo, perdeu muitos sentidos. Então, leio para o tempo não me encurralar tanto.

Agradeço a leitura, tento abraçá-lo, fico meio embargado com o leitor. Desejo que o sublime de dona Nelita apascente as recordações de seu Sílvio. Deve ter sido um amor mesmo.

 

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